Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Millán-Astray desapareceu esquecido até pelos franquistas, Unamuno é lido até hoje: Viva a vida!


Millán-Astray e Unamuno travaram embate entre dois modelos de civilização

Por Leandro Karnal

O ditador Francisco Franco (1892-1975) tinha um homem que o influenciava e o orientava: José Millán-Astray y Terreros (1879-1954). Muito jovem, Millán-Astray foi combater os rebeldes filipinos que lutavam pela independência. Ao defender uma pequena localidade no arquipélago asiático, tornou-se um herói nacional. Recebeu promoções e condecorações, sempre se esforçando para limpar o nome do pai. José Millán-Astray y Pilar Terreros Segade administrava um presídio e criou o hábito ilegal de liberar, mediante dinheiro, presos. Num dia, um deles cometeu um assassinato, lançando lama no nome do diretor.

Enviado a estudar o modelo da Legião Estrangeira Francesa, trouxe ideias de como importar certos padrões de autoridade, disciplina e castigos ao lidar com os nativos do Norte da África. Perecer em combate era a maior honra, e um culto à morte penetrou no imaginário do agora coronel. Havia até influências da sua leitura do código do Bushido, regras para a vida dos guerreiros samurais japoneses. Deixou famoso o lema ¡Viva la muerte! Ferido várias vezes na guerra brutal do Marrocos, orgulhava-se da ausência do braço esquerdo e de um olho. Seu comportamento histriônico misturava nacionalismo, ideias de hombridade e de catolicismo. Veio a ser um herói da direita espanhola e de Franco.

Há um episódio cercado de controvérsias da tumultuada carreira de Millán-Astray. O dia era 12 de outubro de 1936, celebração da viagem de Colombo. O local? A tradicional Universidade de Salamanca. O reitor? O intelectual Miguel de Unamuno. O ambiente era polarizado, devido ao começo da trágica Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A data 12 de outubro recebia leituras políticas diversas na chamada Festa de La Raza. Unamuno tomou a palavra em meio aos discursos, para dizer que não apoiava o ódio. O episódio tem versões variadas. Millán (ou um assessor) teria gritado ¡Viva la muerte! Unamuno rebateu a ideia estranha, acusando de culto à necrofilia, invocando Cervantes e a alta cultura hispânica. Furioso, o militar gritou: “Morra a inteligência!” O reitor lembrou aos presentes que aquele era o templo do intelecto; os fascistas poderiam até vencer por terem força bruta de sobra, mas “vencer não era convencer”. Parece que a esposa de Francisco Franco, presente ao evento, acalmou o militar e impediu que o debate exaltado virasse tiroteio. Os falangistas andavam com pequenas metralhadoras e já estavam sacando suas armas, quando decidiram retirar-se do ambiente.

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Picasso, inconformado com a violência da guerra civil, foi rápido em pintar a atrocidade franquista em Guernica: obra está exposta no Museu Reina Sofia, em Madri  Foto: Juan Medina/Reuters

O episódio é muito significativo, de um embate entre vários modelos de Espanha e de civilização que se estavam enfrentando. Miguel de Unamuno pensava na tradição cultural; Millán, na força para manter outro modelo. Os republicanos, contestadores de Franco e de Millán, também cometeriam inúmeros abusos e assassinatos. Nenhum dos dois lados da Guerra Civil era formado por anjos pacifistas, mas o lado de Millán tinha o estranho culto à morte e à violência, que consagraria também parte das forças fascistas da Itália e da Alemanha. Todas as exaltações da destruição se uniram no criminoso bombardeio a Guernica, ocorrido em abril de 1937. Picasso, incapaz de se comover com a violência stalinista, foi rápido em pintar a atrocidade franquista.

O culto à morte estava muito presente na extrema direita europeia. Foi analisado por psicanalistas. A caveira (em alemão Totenkopf) estava em algumas unidades nazistas. Tal como a suástica, era um símbolo bem mais antigo. Traduzia desprezo diante da morte e marca de força. Aparece em tropas do mundo todo, inclusive nos uniformes do Bope, do Rio de Janeiro. Signo aberto: pode representar o caráter passageiro do corpo e aparecer em ambientes religiosos. Os ossos estão no uniforme das SS e próximos da figura de Francisco de Assis. A relativização da vida existe também nas democracias. A celebração da morte faz parte de uma exaltação muito associada à masculinidade. Ter medo parece diminuir a potência viril.

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A base do enfrentamento em Salamanca era esta: Unamuno pensava no templo do conhecimento. Saber implica tempo, sedimentação, contradições variadas e debates. Conhecer é uma estrada infinita que nos excede. Tudo era excessivo para Millán-Astray. A mentalidade daquele militar era maniqueísta e polarizada. Não admitiria meio-tom. Acostumado a disparar contra filipinos e magrebinos, transferiu a lógica da violência colonial para a Espanha. Construiu sua cruzada contra o inimigo interno. Seu túmulo em Almudena informa: “D. José Millan-Astray y Terreros, Cavaleiro Legionário. Por Deus e pela Pátria”. Desapareceu esquecido até pelos franquistas. Enfim, a morte venceu. Na bateia do tempo, separam-se pedregulhos e pepitas reluzentes. Unamuno é lido até hoje, o que alimenta minha esperança. Viva a vida!

O ditador Francisco Franco (1892-1975) tinha um homem que o influenciava e o orientava: José Millán-Astray y Terreros (1879-1954). Muito jovem, Millán-Astray foi combater os rebeldes filipinos que lutavam pela independência. Ao defender uma pequena localidade no arquipélago asiático, tornou-se um herói nacional. Recebeu promoções e condecorações, sempre se esforçando para limpar o nome do pai. José Millán-Astray y Pilar Terreros Segade administrava um presídio e criou o hábito ilegal de liberar, mediante dinheiro, presos. Num dia, um deles cometeu um assassinato, lançando lama no nome do diretor.

Enviado a estudar o modelo da Legião Estrangeira Francesa, trouxe ideias de como importar certos padrões de autoridade, disciplina e castigos ao lidar com os nativos do Norte da África. Perecer em combate era a maior honra, e um culto à morte penetrou no imaginário do agora coronel. Havia até influências da sua leitura do código do Bushido, regras para a vida dos guerreiros samurais japoneses. Deixou famoso o lema ¡Viva la muerte! Ferido várias vezes na guerra brutal do Marrocos, orgulhava-se da ausência do braço esquerdo e de um olho. Seu comportamento histriônico misturava nacionalismo, ideias de hombridade e de catolicismo. Veio a ser um herói da direita espanhola e de Franco.

Há um episódio cercado de controvérsias da tumultuada carreira de Millán-Astray. O dia era 12 de outubro de 1936, celebração da viagem de Colombo. O local? A tradicional Universidade de Salamanca. O reitor? O intelectual Miguel de Unamuno. O ambiente era polarizado, devido ao começo da trágica Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A data 12 de outubro recebia leituras políticas diversas na chamada Festa de La Raza. Unamuno tomou a palavra em meio aos discursos, para dizer que não apoiava o ódio. O episódio tem versões variadas. Millán (ou um assessor) teria gritado ¡Viva la muerte! Unamuno rebateu a ideia estranha, acusando de culto à necrofilia, invocando Cervantes e a alta cultura hispânica. Furioso, o militar gritou: “Morra a inteligência!” O reitor lembrou aos presentes que aquele era o templo do intelecto; os fascistas poderiam até vencer por terem força bruta de sobra, mas “vencer não era convencer”. Parece que a esposa de Francisco Franco, presente ao evento, acalmou o militar e impediu que o debate exaltado virasse tiroteio. Os falangistas andavam com pequenas metralhadoras e já estavam sacando suas armas, quando decidiram retirar-se do ambiente.

Picasso, inconformado com a violência da guerra civil, foi rápido em pintar a atrocidade franquista em Guernica: obra está exposta no Museu Reina Sofia, em Madri  Foto: Juan Medina/Reuters

O episódio é muito significativo, de um embate entre vários modelos de Espanha e de civilização que se estavam enfrentando. Miguel de Unamuno pensava na tradição cultural; Millán, na força para manter outro modelo. Os republicanos, contestadores de Franco e de Millán, também cometeriam inúmeros abusos e assassinatos. Nenhum dos dois lados da Guerra Civil era formado por anjos pacifistas, mas o lado de Millán tinha o estranho culto à morte e à violência, que consagraria também parte das forças fascistas da Itália e da Alemanha. Todas as exaltações da destruição se uniram no criminoso bombardeio a Guernica, ocorrido em abril de 1937. Picasso, incapaz de se comover com a violência stalinista, foi rápido em pintar a atrocidade franquista.

O culto à morte estava muito presente na extrema direita europeia. Foi analisado por psicanalistas. A caveira (em alemão Totenkopf) estava em algumas unidades nazistas. Tal como a suástica, era um símbolo bem mais antigo. Traduzia desprezo diante da morte e marca de força. Aparece em tropas do mundo todo, inclusive nos uniformes do Bope, do Rio de Janeiro. Signo aberto: pode representar o caráter passageiro do corpo e aparecer em ambientes religiosos. Os ossos estão no uniforme das SS e próximos da figura de Francisco de Assis. A relativização da vida existe também nas democracias. A celebração da morte faz parte de uma exaltação muito associada à masculinidade. Ter medo parece diminuir a potência viril.

A base do enfrentamento em Salamanca era esta: Unamuno pensava no templo do conhecimento. Saber implica tempo, sedimentação, contradições variadas e debates. Conhecer é uma estrada infinita que nos excede. Tudo era excessivo para Millán-Astray. A mentalidade daquele militar era maniqueísta e polarizada. Não admitiria meio-tom. Acostumado a disparar contra filipinos e magrebinos, transferiu a lógica da violência colonial para a Espanha. Construiu sua cruzada contra o inimigo interno. Seu túmulo em Almudena informa: “D. José Millan-Astray y Terreros, Cavaleiro Legionário. Por Deus e pela Pátria”. Desapareceu esquecido até pelos franquistas. Enfim, a morte venceu. Na bateia do tempo, separam-se pedregulhos e pepitas reluzentes. Unamuno é lido até hoje, o que alimenta minha esperança. Viva a vida!

O ditador Francisco Franco (1892-1975) tinha um homem que o influenciava e o orientava: José Millán-Astray y Terreros (1879-1954). Muito jovem, Millán-Astray foi combater os rebeldes filipinos que lutavam pela independência. Ao defender uma pequena localidade no arquipélago asiático, tornou-se um herói nacional. Recebeu promoções e condecorações, sempre se esforçando para limpar o nome do pai. José Millán-Astray y Pilar Terreros Segade administrava um presídio e criou o hábito ilegal de liberar, mediante dinheiro, presos. Num dia, um deles cometeu um assassinato, lançando lama no nome do diretor.

Enviado a estudar o modelo da Legião Estrangeira Francesa, trouxe ideias de como importar certos padrões de autoridade, disciplina e castigos ao lidar com os nativos do Norte da África. Perecer em combate era a maior honra, e um culto à morte penetrou no imaginário do agora coronel. Havia até influências da sua leitura do código do Bushido, regras para a vida dos guerreiros samurais japoneses. Deixou famoso o lema ¡Viva la muerte! Ferido várias vezes na guerra brutal do Marrocos, orgulhava-se da ausência do braço esquerdo e de um olho. Seu comportamento histriônico misturava nacionalismo, ideias de hombridade e de catolicismo. Veio a ser um herói da direita espanhola e de Franco.

Há um episódio cercado de controvérsias da tumultuada carreira de Millán-Astray. O dia era 12 de outubro de 1936, celebração da viagem de Colombo. O local? A tradicional Universidade de Salamanca. O reitor? O intelectual Miguel de Unamuno. O ambiente era polarizado, devido ao começo da trágica Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A data 12 de outubro recebia leituras políticas diversas na chamada Festa de La Raza. Unamuno tomou a palavra em meio aos discursos, para dizer que não apoiava o ódio. O episódio tem versões variadas. Millán (ou um assessor) teria gritado ¡Viva la muerte! Unamuno rebateu a ideia estranha, acusando de culto à necrofilia, invocando Cervantes e a alta cultura hispânica. Furioso, o militar gritou: “Morra a inteligência!” O reitor lembrou aos presentes que aquele era o templo do intelecto; os fascistas poderiam até vencer por terem força bruta de sobra, mas “vencer não era convencer”. Parece que a esposa de Francisco Franco, presente ao evento, acalmou o militar e impediu que o debate exaltado virasse tiroteio. Os falangistas andavam com pequenas metralhadoras e já estavam sacando suas armas, quando decidiram retirar-se do ambiente.

Picasso, inconformado com a violência da guerra civil, foi rápido em pintar a atrocidade franquista em Guernica: obra está exposta no Museu Reina Sofia, em Madri  Foto: Juan Medina/Reuters

O episódio é muito significativo, de um embate entre vários modelos de Espanha e de civilização que se estavam enfrentando. Miguel de Unamuno pensava na tradição cultural; Millán, na força para manter outro modelo. Os republicanos, contestadores de Franco e de Millán, também cometeriam inúmeros abusos e assassinatos. Nenhum dos dois lados da Guerra Civil era formado por anjos pacifistas, mas o lado de Millán tinha o estranho culto à morte e à violência, que consagraria também parte das forças fascistas da Itália e da Alemanha. Todas as exaltações da destruição se uniram no criminoso bombardeio a Guernica, ocorrido em abril de 1937. Picasso, incapaz de se comover com a violência stalinista, foi rápido em pintar a atrocidade franquista.

O culto à morte estava muito presente na extrema direita europeia. Foi analisado por psicanalistas. A caveira (em alemão Totenkopf) estava em algumas unidades nazistas. Tal como a suástica, era um símbolo bem mais antigo. Traduzia desprezo diante da morte e marca de força. Aparece em tropas do mundo todo, inclusive nos uniformes do Bope, do Rio de Janeiro. Signo aberto: pode representar o caráter passageiro do corpo e aparecer em ambientes religiosos. Os ossos estão no uniforme das SS e próximos da figura de Francisco de Assis. A relativização da vida existe também nas democracias. A celebração da morte faz parte de uma exaltação muito associada à masculinidade. Ter medo parece diminuir a potência viril.

A base do enfrentamento em Salamanca era esta: Unamuno pensava no templo do conhecimento. Saber implica tempo, sedimentação, contradições variadas e debates. Conhecer é uma estrada infinita que nos excede. Tudo era excessivo para Millán-Astray. A mentalidade daquele militar era maniqueísta e polarizada. Não admitiria meio-tom. Acostumado a disparar contra filipinos e magrebinos, transferiu a lógica da violência colonial para a Espanha. Construiu sua cruzada contra o inimigo interno. Seu túmulo em Almudena informa: “D. José Millan-Astray y Terreros, Cavaleiro Legionário. Por Deus e pela Pátria”. Desapareceu esquecido até pelos franquistas. Enfim, a morte venceu. Na bateia do tempo, separam-se pedregulhos e pepitas reluzentes. Unamuno é lido até hoje, o que alimenta minha esperança. Viva a vida!

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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