Nem sempre a pessoa culta, inclinada a livros, reflexiva sobre os grandes sistemas de significação do universo, cuida de ocupar-se das coisas prosaicas do real. Você conhece em sua família ou amigos: ela domina línguas, lê com prazer livros complexos, pensa sistemas filosóficos e possui alguma dificuldade com atos, como amarrar cadarços, abrir latas ou ir a supermercados. Parecem vocações diferentes: lidar com o real miúdo e refletir sobre grandes sistemas abstratos.
Filósofos trabalhando na resolução de problemas comezinhos também esbarram em asperezas. O grande Platão saiu dos espaços protegidos da sua Academia, em Atenas, e foi ser político prático em Siracusa (Sicília). A vontade de frônese (phrónesis, termo usado por Aristóteles), de sabedoria prática e aplicação concreta dos princípios teóricos, foi um desastre em Siracusa. As teorias de um rei-filósofo sábio e equilibrado terminaram com o tirano vendendo o pensador como escravo.
Em Roma, Sêneca desejou influenciar o jovem Nero. Transmitiu princípios estoicos. Nero também foi aconselhado por Afrânio, iniciando seu governo com medidas prudentes e sensatas. O jovem Nero foi comparado a Augusto. Porém, o tempo e o poder mudam muita coisa, e o imperador tornou-se um monstro sanguinário, mesmo para os padrões violentos de Roma. Idoso, implicado em uma conspiração, Sêneca se matou no ano 65 da nossa era. Afrânio morreu, retirado da vida pública, desfavorecido pelo imperador e sob suspeita de envenenamento.
No começo da Idade Média, outro intelectual trabalhou para um rei. Boécio, quando foi preso, servia a Teodorico e acabou executado. Do cárcere emergiu o belo livro A Consolação da Filosofia (em latim: Consolatio Philosophiae), uma influente obra por toda a Idade Média.
Em pleno Renascimento, Thomas Morus era um humanista culto que servia ao rei Henrique VIII. Utopia, sua obra de 1516, foi de enorme influência sobre a imaginação filosófica. Contrário ao afastamento entre o rei e a igreja de Roma, Morus foi decapitado no verão de 1535.
Citei Platão, Sêneca, Boécio e Morus – exemplos de pessoas virtuosas que se viram enredadas em tramas de poder. Nem todas foram assim. Joseph Goebbels foi ministro do Terceiro Reich. Antes de participar do horror nazista, ele se doutorou em Filosofia, pela prestigiosa Universidade Heidelberg, com tese sobre um escritor menor do século 19: Wilhelm von Schütz.
Poucos se lembram de que Hitler o nomeou para cuidar da cultura, da propaganda, dos livros, rádio, cinema e do “esclarecimento do povo” (Reichsministerium für Volksaufklärung und Propaganda). Por doze anos, foi o filósofo mais poderoso do mundo... e o mais letal.
Dando apenas mais um exemplo, um bem formado francês, Luc Ferry, foi também ministro da educação na França. Tanto os livros com linguagem mais acessível (O Que É uma Vida Bem-Sucedida; Aprender a Viver) como o projeto político de Ferry tinham um diálogo com a tal da frônese. Há um anseio de sabedoria prática, de ações, até mesmo de busca da felicidade: um choque a Schopenhauer.
Como vimos, os problemas são muitos. Quando são éticos, os filósofos (em geral) são tragados pelo sistema político realista e amoral. Quando são canalhas, reforçam o mal do mundo, por meio da habilidade estratégica de pensar. E existe o caso mais complexo de Luc Ferry...
Se os pensadores ficarem encastelados na universidade, abrem caminho para outros codificadores de sistemas. O “intelectual público”, como Sartre, já foi uma referência. Geralmente, qualquer pensador que se aproxime da fama é mais atacado pelos colegas universitários do que pelos inimigos alheios à universidade. Meus colegas Clóvis de Barros Filho e Mario Sergio Cortella são bons exemplos. Se estivessem falando para meia dúzia, em congressos, nunca seriam criticados.
O trono do poder nunca está vago. Sempre houve muitos candidatos a ele. Se grandes pensadores não dialogarem com o mundo externo, atores em fim de carreira ocuparão postos, como sua tábua de salvação. Aquilo que é um peso para um intelectual consagrado é a única esperança de luz e de dinheiro para alguém ruim. Existe da mesma forma a frônese dos meios de comunicação. Ninguém precisa abandonar a universidade. Basta escrever para a grande imprensa, gravar lives, registrar ideias críticas em redes sociais. O mundo vê Instagram, mas não Revista Acadêmica. O problema das vestais é não perceberem que os bárbaros vão tomar também seu Templo Sagrado. Sem o diálogo com o mundo, a ação crítica vai continuar sendo catequese para já convertidos, em intermináveis assembleias para um público que concorda 100% com o orador universitário.
Na falta de interfaces com bons pensadores, a Terra fica plana, as vacinas são questionadas, racismo passa a ser mi-mi-mi de novo... Tenho esperança de bom fermento e de bom sal. Na ausência dos dois, o ódio irracional coopta Goebbels e seus asseclas. Em vez de gritar do lado de fora “Saiam da caverna!”, estaria na hora de voltar a ela e mostrar o Sol?