Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O poder revela o caráter - entregue um pouco de força e as máscaras cairão


Um poder pequeno e autoritário precisa de gente fragilizada para se sentir bem

Por Leandro Karnal

Uma pessoa, um grupo ou uma instituição podem conseguir algo por direito, por controle, pela força ou pela influência? Se sim, possuem poder. Ele pode ser exercido com ou sem anuência daquele a quem se submete. Envolve um emaranhado de fatos concretos ou abstratos. Uma relação entre quem manda e quem se dobra é complexa. Aparentemente, nenhum poder consegue sustentar uma relação prolongada de mando baseada unicamente na coerção ou no consenso.

Mandar confere destaque, seja a um professor, síndico, porteiro de hotel, chefe de almoxarifado... Foto: Biblioteca do Congresso/EUA

Ter poder amplia minha vontade. Mandar confere a mim destaque e alimenta meu ego. Porém, no campo em que a psicanálise anda ao lado da reflexão política, obedecer tranquiliza muita gente. Devido à minha força, posso evitar dano a mim; posso obter benefícios; consigo exercer formas de sadismo. Pela minha obediência, abro mão da dor da escolha, entrego o incômodo chamado liberdade e assumo meu masoquismo.

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O poder revela o caráter. Quer saber quem aquela pessoa é, de verdade? Entregue um pouco, uma pequena parcela de força... Todas as máscaras cairão. Vemos isso nos indivíduos no topo da pirâmide: reis, presidentes, ditadores, papas e seus desvarios despóticos. Hoje, quero abordar a base dela: o pequeno poder.

Existe a pessoa que controla o ingresso em um prédio, aquele que examina passageiros em um aeroporto, o coordenador de turno da escola, o síndico, o professor, o chefe do almoxarifado. Nenhum desses tem cabeças coroadas ou faixas presidenciais. Lembro-me sempre da personagem central, o zelador, no texto O Braço Direito, de Otto Lara Resende.

Quem somos? Eu, professor, lutando com meu aluguel, tenho diante de mim um grupo de alunos ricos e entediados e sou autoridade diante deles. Estou em um emprego simples em um aeroporto, mas posso barrar e examinar cuidadosamente as malas luxuosas desta mulher que está indo para Paris. Eu, vendedor da loja sofisticada, olho com desdém se alguém se aproxima das roupas caras sem parecer ter o tipo e a renda do cliente tradicional. Estou no meu cartório e posso fazer você preencher muitos papéis e aguardar. É o meu poder! No meu condomínio, sou igual a todo mundo, mas, na função de síndico, posso dizer quais regras valerão de verdade e as que serão ignoradas para beneficiar meu grupo de eleitos. Não tenho sequer um carro, mas sou um agente de trânsito que pode parar qualquer luxuoso veículo e examiná-lo no tempo desejado por mim.

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Estamos no campo da microfísica do poder. Autoridades pequenas podem exercer bem, mas, com frequência, são agentes de desmandos. A Síndrome do Pequeno Poder é estudada pela Psicologia. O comportamento, muitas vezes, nasce de baixa autoestima, que passa a ser ocultada pela parcela pífia do cargo que eu exerço.

Como lidar com a autoridade plenipotenciária encarregada das tarefas minúsculas aos olhos do mundo, contudo gigantescas na percepção do autointitulado poderoso? Dizem que o vice-presidente Pedro Aleixo, assustado com a extensão do AI-5, teria dito temer mais o guarda da esquina do que o próprio presidente. De alguma forma, o mineiro tocava em um ponto central: o papa é mais visível, controlável e até mais confiável do que o vigário de aldeia. Na teia hierárquica, o presidente está lá em cima, mas eu tenho contato com o fiscal do aeroporto.

Volto à questão inicial do parágrafo anterior. Vou distinguir dois caminhos. O poder é irrelevante e gerencia algo pequeno que, com má vontade do pequeno mandatário, pode complicar? Aconselharia o máximo de simpatia e aparente submissão. Sendo sorridente e parecendo acatar as regras, você atende ao narciso fragilizado daquela pessoa e passa incólume sobre o microclima que ele administra. Minha doçura política me torna invisível e permite que eu siga na esteira de raios X. É a solução ligeiramente cínica e quase sempre eficaz. Faço de conta que aquela pessoa coordena as chaves do universo; assim, o jogo segue. Isso é particularmente eficaz em países com fumaças de coronelismo e tradição de capatazes, como o Brasil.

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O outro caminho é um pouco mais complexo. Um poder pequeno e autoritário precisa de gente fragilizada para se sentir bem. Quanto mais seu pequeno núcleo abaixa a cabeça, mais seguro ele se torna. Se normalizamos o desmando, ele também fica tranquilo. Logo, uma pessoa firme que diga não a um gesto autoritário pode revelar toda a fraqueza do ser que manda ali. Em resumo, se a ordem extrapolar o limite do jurídico e do razoável daquela competência, posso dizer com calma que recorrerei ao superior dele, porque aqui há erro. É um gesto arriscado e imprevisível, mas tem a lógica de dissolver uma suposta coerção que o pequeno déspota supunha existir. Se você tiver consciência dos riscos, siga em frente. Se três ou quatro pessoas agirem assim, o reinado de terror pode começar a ruir porque há o tirano acima do tiranete. Jamais usar “você sabe com quem está falando?”, que, além de conter outro autoritarismo que busca exceções, ainda é um erro estratégico, porque é óbvio que a pessoa não sabe com quem está falando.

O mais difícil do pequeno poder não é a insegurança dele. O pior, sempre, é que ela se comunica com a nossa, ressalta a fragilidade de ambos. Se o ser que exerce o “carguinho” soubesse mais de si, não seria assim. Se eu soubesse mais de mim, pouco me incomodaria com a inflação vaidosa dele. Minha esperança é o autoconhecimento. Será que, num dia, chegarei lá?

Uma pessoa, um grupo ou uma instituição podem conseguir algo por direito, por controle, pela força ou pela influência? Se sim, possuem poder. Ele pode ser exercido com ou sem anuência daquele a quem se submete. Envolve um emaranhado de fatos concretos ou abstratos. Uma relação entre quem manda e quem se dobra é complexa. Aparentemente, nenhum poder consegue sustentar uma relação prolongada de mando baseada unicamente na coerção ou no consenso.

Mandar confere destaque, seja a um professor, síndico, porteiro de hotel, chefe de almoxarifado... Foto: Biblioteca do Congresso/EUA

Ter poder amplia minha vontade. Mandar confere a mim destaque e alimenta meu ego. Porém, no campo em que a psicanálise anda ao lado da reflexão política, obedecer tranquiliza muita gente. Devido à minha força, posso evitar dano a mim; posso obter benefícios; consigo exercer formas de sadismo. Pela minha obediência, abro mão da dor da escolha, entrego o incômodo chamado liberdade e assumo meu masoquismo.

O poder revela o caráter. Quer saber quem aquela pessoa é, de verdade? Entregue um pouco, uma pequena parcela de força... Todas as máscaras cairão. Vemos isso nos indivíduos no topo da pirâmide: reis, presidentes, ditadores, papas e seus desvarios despóticos. Hoje, quero abordar a base dela: o pequeno poder.

Existe a pessoa que controla o ingresso em um prédio, aquele que examina passageiros em um aeroporto, o coordenador de turno da escola, o síndico, o professor, o chefe do almoxarifado. Nenhum desses tem cabeças coroadas ou faixas presidenciais. Lembro-me sempre da personagem central, o zelador, no texto O Braço Direito, de Otto Lara Resende.

Quem somos? Eu, professor, lutando com meu aluguel, tenho diante de mim um grupo de alunos ricos e entediados e sou autoridade diante deles. Estou em um emprego simples em um aeroporto, mas posso barrar e examinar cuidadosamente as malas luxuosas desta mulher que está indo para Paris. Eu, vendedor da loja sofisticada, olho com desdém se alguém se aproxima das roupas caras sem parecer ter o tipo e a renda do cliente tradicional. Estou no meu cartório e posso fazer você preencher muitos papéis e aguardar. É o meu poder! No meu condomínio, sou igual a todo mundo, mas, na função de síndico, posso dizer quais regras valerão de verdade e as que serão ignoradas para beneficiar meu grupo de eleitos. Não tenho sequer um carro, mas sou um agente de trânsito que pode parar qualquer luxuoso veículo e examiná-lo no tempo desejado por mim.

Estamos no campo da microfísica do poder. Autoridades pequenas podem exercer bem, mas, com frequência, são agentes de desmandos. A Síndrome do Pequeno Poder é estudada pela Psicologia. O comportamento, muitas vezes, nasce de baixa autoestima, que passa a ser ocultada pela parcela pífia do cargo que eu exerço.

Como lidar com a autoridade plenipotenciária encarregada das tarefas minúsculas aos olhos do mundo, contudo gigantescas na percepção do autointitulado poderoso? Dizem que o vice-presidente Pedro Aleixo, assustado com a extensão do AI-5, teria dito temer mais o guarda da esquina do que o próprio presidente. De alguma forma, o mineiro tocava em um ponto central: o papa é mais visível, controlável e até mais confiável do que o vigário de aldeia. Na teia hierárquica, o presidente está lá em cima, mas eu tenho contato com o fiscal do aeroporto.

Volto à questão inicial do parágrafo anterior. Vou distinguir dois caminhos. O poder é irrelevante e gerencia algo pequeno que, com má vontade do pequeno mandatário, pode complicar? Aconselharia o máximo de simpatia e aparente submissão. Sendo sorridente e parecendo acatar as regras, você atende ao narciso fragilizado daquela pessoa e passa incólume sobre o microclima que ele administra. Minha doçura política me torna invisível e permite que eu siga na esteira de raios X. É a solução ligeiramente cínica e quase sempre eficaz. Faço de conta que aquela pessoa coordena as chaves do universo; assim, o jogo segue. Isso é particularmente eficaz em países com fumaças de coronelismo e tradição de capatazes, como o Brasil.

O outro caminho é um pouco mais complexo. Um poder pequeno e autoritário precisa de gente fragilizada para se sentir bem. Quanto mais seu pequeno núcleo abaixa a cabeça, mais seguro ele se torna. Se normalizamos o desmando, ele também fica tranquilo. Logo, uma pessoa firme que diga não a um gesto autoritário pode revelar toda a fraqueza do ser que manda ali. Em resumo, se a ordem extrapolar o limite do jurídico e do razoável daquela competência, posso dizer com calma que recorrerei ao superior dele, porque aqui há erro. É um gesto arriscado e imprevisível, mas tem a lógica de dissolver uma suposta coerção que o pequeno déspota supunha existir. Se você tiver consciência dos riscos, siga em frente. Se três ou quatro pessoas agirem assim, o reinado de terror pode começar a ruir porque há o tirano acima do tiranete. Jamais usar “você sabe com quem está falando?”, que, além de conter outro autoritarismo que busca exceções, ainda é um erro estratégico, porque é óbvio que a pessoa não sabe com quem está falando.

O mais difícil do pequeno poder não é a insegurança dele. O pior, sempre, é que ela se comunica com a nossa, ressalta a fragilidade de ambos. Se o ser que exerce o “carguinho” soubesse mais de si, não seria assim. Se eu soubesse mais de mim, pouco me incomodaria com a inflação vaidosa dele. Minha esperança é o autoconhecimento. Será que, num dia, chegarei lá?

Uma pessoa, um grupo ou uma instituição podem conseguir algo por direito, por controle, pela força ou pela influência? Se sim, possuem poder. Ele pode ser exercido com ou sem anuência daquele a quem se submete. Envolve um emaranhado de fatos concretos ou abstratos. Uma relação entre quem manda e quem se dobra é complexa. Aparentemente, nenhum poder consegue sustentar uma relação prolongada de mando baseada unicamente na coerção ou no consenso.

Mandar confere destaque, seja a um professor, síndico, porteiro de hotel, chefe de almoxarifado... Foto: Biblioteca do Congresso/EUA

Ter poder amplia minha vontade. Mandar confere a mim destaque e alimenta meu ego. Porém, no campo em que a psicanálise anda ao lado da reflexão política, obedecer tranquiliza muita gente. Devido à minha força, posso evitar dano a mim; posso obter benefícios; consigo exercer formas de sadismo. Pela minha obediência, abro mão da dor da escolha, entrego o incômodo chamado liberdade e assumo meu masoquismo.

O poder revela o caráter. Quer saber quem aquela pessoa é, de verdade? Entregue um pouco, uma pequena parcela de força... Todas as máscaras cairão. Vemos isso nos indivíduos no topo da pirâmide: reis, presidentes, ditadores, papas e seus desvarios despóticos. Hoje, quero abordar a base dela: o pequeno poder.

Existe a pessoa que controla o ingresso em um prédio, aquele que examina passageiros em um aeroporto, o coordenador de turno da escola, o síndico, o professor, o chefe do almoxarifado. Nenhum desses tem cabeças coroadas ou faixas presidenciais. Lembro-me sempre da personagem central, o zelador, no texto O Braço Direito, de Otto Lara Resende.

Quem somos? Eu, professor, lutando com meu aluguel, tenho diante de mim um grupo de alunos ricos e entediados e sou autoridade diante deles. Estou em um emprego simples em um aeroporto, mas posso barrar e examinar cuidadosamente as malas luxuosas desta mulher que está indo para Paris. Eu, vendedor da loja sofisticada, olho com desdém se alguém se aproxima das roupas caras sem parecer ter o tipo e a renda do cliente tradicional. Estou no meu cartório e posso fazer você preencher muitos papéis e aguardar. É o meu poder! No meu condomínio, sou igual a todo mundo, mas, na função de síndico, posso dizer quais regras valerão de verdade e as que serão ignoradas para beneficiar meu grupo de eleitos. Não tenho sequer um carro, mas sou um agente de trânsito que pode parar qualquer luxuoso veículo e examiná-lo no tempo desejado por mim.

Estamos no campo da microfísica do poder. Autoridades pequenas podem exercer bem, mas, com frequência, são agentes de desmandos. A Síndrome do Pequeno Poder é estudada pela Psicologia. O comportamento, muitas vezes, nasce de baixa autoestima, que passa a ser ocultada pela parcela pífia do cargo que eu exerço.

Como lidar com a autoridade plenipotenciária encarregada das tarefas minúsculas aos olhos do mundo, contudo gigantescas na percepção do autointitulado poderoso? Dizem que o vice-presidente Pedro Aleixo, assustado com a extensão do AI-5, teria dito temer mais o guarda da esquina do que o próprio presidente. De alguma forma, o mineiro tocava em um ponto central: o papa é mais visível, controlável e até mais confiável do que o vigário de aldeia. Na teia hierárquica, o presidente está lá em cima, mas eu tenho contato com o fiscal do aeroporto.

Volto à questão inicial do parágrafo anterior. Vou distinguir dois caminhos. O poder é irrelevante e gerencia algo pequeno que, com má vontade do pequeno mandatário, pode complicar? Aconselharia o máximo de simpatia e aparente submissão. Sendo sorridente e parecendo acatar as regras, você atende ao narciso fragilizado daquela pessoa e passa incólume sobre o microclima que ele administra. Minha doçura política me torna invisível e permite que eu siga na esteira de raios X. É a solução ligeiramente cínica e quase sempre eficaz. Faço de conta que aquela pessoa coordena as chaves do universo; assim, o jogo segue. Isso é particularmente eficaz em países com fumaças de coronelismo e tradição de capatazes, como o Brasil.

O outro caminho é um pouco mais complexo. Um poder pequeno e autoritário precisa de gente fragilizada para se sentir bem. Quanto mais seu pequeno núcleo abaixa a cabeça, mais seguro ele se torna. Se normalizamos o desmando, ele também fica tranquilo. Logo, uma pessoa firme que diga não a um gesto autoritário pode revelar toda a fraqueza do ser que manda ali. Em resumo, se a ordem extrapolar o limite do jurídico e do razoável daquela competência, posso dizer com calma que recorrerei ao superior dele, porque aqui há erro. É um gesto arriscado e imprevisível, mas tem a lógica de dissolver uma suposta coerção que o pequeno déspota supunha existir. Se você tiver consciência dos riscos, siga em frente. Se três ou quatro pessoas agirem assim, o reinado de terror pode começar a ruir porque há o tirano acima do tiranete. Jamais usar “você sabe com quem está falando?”, que, além de conter outro autoritarismo que busca exceções, ainda é um erro estratégico, porque é óbvio que a pessoa não sabe com quem está falando.

O mais difícil do pequeno poder não é a insegurança dele. O pior, sempre, é que ela se comunica com a nossa, ressalta a fragilidade de ambos. Se o ser que exerce o “carguinho” soubesse mais de si, não seria assim. Se eu soubesse mais de mim, pouco me incomodaria com a inflação vaidosa dele. Minha esperança é o autoconhecimento. Será que, num dia, chegarei lá?

Uma pessoa, um grupo ou uma instituição podem conseguir algo por direito, por controle, pela força ou pela influência? Se sim, possuem poder. Ele pode ser exercido com ou sem anuência daquele a quem se submete. Envolve um emaranhado de fatos concretos ou abstratos. Uma relação entre quem manda e quem se dobra é complexa. Aparentemente, nenhum poder consegue sustentar uma relação prolongada de mando baseada unicamente na coerção ou no consenso.

Mandar confere destaque, seja a um professor, síndico, porteiro de hotel, chefe de almoxarifado... Foto: Biblioteca do Congresso/EUA

Ter poder amplia minha vontade. Mandar confere a mim destaque e alimenta meu ego. Porém, no campo em que a psicanálise anda ao lado da reflexão política, obedecer tranquiliza muita gente. Devido à minha força, posso evitar dano a mim; posso obter benefícios; consigo exercer formas de sadismo. Pela minha obediência, abro mão da dor da escolha, entrego o incômodo chamado liberdade e assumo meu masoquismo.

O poder revela o caráter. Quer saber quem aquela pessoa é, de verdade? Entregue um pouco, uma pequena parcela de força... Todas as máscaras cairão. Vemos isso nos indivíduos no topo da pirâmide: reis, presidentes, ditadores, papas e seus desvarios despóticos. Hoje, quero abordar a base dela: o pequeno poder.

Existe a pessoa que controla o ingresso em um prédio, aquele que examina passageiros em um aeroporto, o coordenador de turno da escola, o síndico, o professor, o chefe do almoxarifado. Nenhum desses tem cabeças coroadas ou faixas presidenciais. Lembro-me sempre da personagem central, o zelador, no texto O Braço Direito, de Otto Lara Resende.

Quem somos? Eu, professor, lutando com meu aluguel, tenho diante de mim um grupo de alunos ricos e entediados e sou autoridade diante deles. Estou em um emprego simples em um aeroporto, mas posso barrar e examinar cuidadosamente as malas luxuosas desta mulher que está indo para Paris. Eu, vendedor da loja sofisticada, olho com desdém se alguém se aproxima das roupas caras sem parecer ter o tipo e a renda do cliente tradicional. Estou no meu cartório e posso fazer você preencher muitos papéis e aguardar. É o meu poder! No meu condomínio, sou igual a todo mundo, mas, na função de síndico, posso dizer quais regras valerão de verdade e as que serão ignoradas para beneficiar meu grupo de eleitos. Não tenho sequer um carro, mas sou um agente de trânsito que pode parar qualquer luxuoso veículo e examiná-lo no tempo desejado por mim.

Estamos no campo da microfísica do poder. Autoridades pequenas podem exercer bem, mas, com frequência, são agentes de desmandos. A Síndrome do Pequeno Poder é estudada pela Psicologia. O comportamento, muitas vezes, nasce de baixa autoestima, que passa a ser ocultada pela parcela pífia do cargo que eu exerço.

Como lidar com a autoridade plenipotenciária encarregada das tarefas minúsculas aos olhos do mundo, contudo gigantescas na percepção do autointitulado poderoso? Dizem que o vice-presidente Pedro Aleixo, assustado com a extensão do AI-5, teria dito temer mais o guarda da esquina do que o próprio presidente. De alguma forma, o mineiro tocava em um ponto central: o papa é mais visível, controlável e até mais confiável do que o vigário de aldeia. Na teia hierárquica, o presidente está lá em cima, mas eu tenho contato com o fiscal do aeroporto.

Volto à questão inicial do parágrafo anterior. Vou distinguir dois caminhos. O poder é irrelevante e gerencia algo pequeno que, com má vontade do pequeno mandatário, pode complicar? Aconselharia o máximo de simpatia e aparente submissão. Sendo sorridente e parecendo acatar as regras, você atende ao narciso fragilizado daquela pessoa e passa incólume sobre o microclima que ele administra. Minha doçura política me torna invisível e permite que eu siga na esteira de raios X. É a solução ligeiramente cínica e quase sempre eficaz. Faço de conta que aquela pessoa coordena as chaves do universo; assim, o jogo segue. Isso é particularmente eficaz em países com fumaças de coronelismo e tradição de capatazes, como o Brasil.

O outro caminho é um pouco mais complexo. Um poder pequeno e autoritário precisa de gente fragilizada para se sentir bem. Quanto mais seu pequeno núcleo abaixa a cabeça, mais seguro ele se torna. Se normalizamos o desmando, ele também fica tranquilo. Logo, uma pessoa firme que diga não a um gesto autoritário pode revelar toda a fraqueza do ser que manda ali. Em resumo, se a ordem extrapolar o limite do jurídico e do razoável daquela competência, posso dizer com calma que recorrerei ao superior dele, porque aqui há erro. É um gesto arriscado e imprevisível, mas tem a lógica de dissolver uma suposta coerção que o pequeno déspota supunha existir. Se você tiver consciência dos riscos, siga em frente. Se três ou quatro pessoas agirem assim, o reinado de terror pode começar a ruir porque há o tirano acima do tiranete. Jamais usar “você sabe com quem está falando?”, que, além de conter outro autoritarismo que busca exceções, ainda é um erro estratégico, porque é óbvio que a pessoa não sabe com quem está falando.

O mais difícil do pequeno poder não é a insegurança dele. O pior, sempre, é que ela se comunica com a nossa, ressalta a fragilidade de ambos. Se o ser que exerce o “carguinho” soubesse mais de si, não seria assim. Se eu soubesse mais de mim, pouco me incomodaria com a inflação vaidosa dele. Minha esperança é o autoconhecimento. Será que, num dia, chegarei lá?

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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