Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O que está por trás do ‘ser ou não ser’ de Shakespeare?


A morte ronda o monólogo. Muita vez, usa-se uma caveira na mão de Hamlet durante a cena. A incerteza da morte parece assustar mais do que os dramas do mundo e, ao mesmo tempo, a certeza dos ossos pela frente (metáfora que retorna no diálogo dos coveiros) relativiza todos os valores que nos afligem hoje. Algo valerá a pena, se tudo terminará no túmulo?

Por Leandro Karnal

A frase mais citada da língua inglesa é: “To be or not to be, that is the question”. A linha de Shakespeare parece estar próxima de outras frases como “Penso, logo existo”, de Descartes, em que as pessoas sabem a citação, mesmo desconhecendo seu significado real.

Estamos na primeira cena do terceiro ato. Já ocorreram várias coisas que induziram o príncipe à consciência de que seu pai tenha sido assassinado pelo próprio irmão, o pérfido Cláudio. O monólogo está sendo ouvido secretamente pelo rei e pelo conselheiro Polônio. Eles desejam saber o que está se passando na mente de Hamlet e se, de fato, ele está louco. Em algumas montagens cinematográficas, o príncipe intui que está sendo ouvido. O monólogo, nesse caso, viraria um depoimento e uma acusação.

'Visão de Hamlet', de Pedro Américo Foto: Pinacoteca de Sao Paulo/Wikimedia Commons
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Todas as reflexões do texto dizem respeito a prosseguir ou não nas ações que podem levar a um confronto de final incerto. Ele reflete sobre o suicídio, pensar em fazer ou não fazer, ser ou não ser. Existem contradições enormes na fala do príncipe. Hamlet diz que nunca ninguém voltou da morte e... ele acabou de falar com o fantasma do pai de lá retornado. Da mesma forma, o príncipe reclama das ações nefastas de quem tem poder; ele é um homem do poder e será capaz de matar seu quase sogro sem remorso pouco depois. E toda a questão envolve se a ação é adequada ou inadequada, se haverá mais consequências negativas ao agir do que efeitos benéficos. Há o mal, ele está diluído em tudo, ele é um grão de areia no jogo cósmico. O que fazer?

Vamos sair das altas nuvens de Shakespeare e descer a uma cena de verniz de Nelson Rodrigues. Você, por acidente, viu em um restaurante a esposa do seu melhor amigo aos beijos com outro homem. Eles não perceberam sua presença. Sua mente desenha possibilidades: a) Você conta para o seu amigo, ele pode negar e achar que é calúnia; b) Você conta para o seu amigo, ele crê na narrativa e, apesar de tudo, reconcilia-se com a adúltera, tornando você uma memória incômoda daquela dor; c) Você conta para o seu amigo, ele pode matar a esposa... você ficaria com remorsos por uma morte e uma prisão; d) Você pode ficar em silêncio absoluto, mas a informação vai envenenar a amizade de vocês; e) Você conta para o seu amigo, ele agradece, reforçando a amizade. Viu? Em 80% das possibilidades, o resultado é negativo para você e para a amizade de ambos. Contar ou não contar, eis a questão! Se o príncipe dinamarquês ficar calado, sem agir, trairá a memória do seu pai. No entanto, Cláudio é bem mais velho, e Gertrudes não pode ter outro filho. Com o tempo, Hamlet será o novo rei da Dinamarca, por pura inércia. O silêncio garante a Coroa; a denúncia arrisca o pescoço. Toda escolha implica renúncia. To be or not to be?

Voltemos à frase. O verbo To Be é um signo aberto, de múltiplas possibilidades. Aqui, implica consciência e liberdade diante do futuro e, segundo Elvio Funck, pode remeter também a “existir ou não existir”, “continuar a viver ou não continuar a viver”. Ressurge a palavra “questão”. O autor Harold Bloom (obra Shakespeare e a Invenção do Humano), citando Harry Levin, disse que a palavra é uma verdadeira obsessão na peça, pois ela é empregada nada menos do que dezessete vezes.

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A morte ronda o monólogo. Muita vez, usa-se uma caveira na mão de Hamlet durante a cena. A incerteza da morte parece assustar mais do que os dramas do mundo e, ao mesmo tempo, a certeza dos ossos pela frente (metáfora que retorna no diálogo dos coveiros) relativiza todos os valores que nos afligem hoje. Algo valerá a pena, se tudo terminará no túmulo?

Na frase, Hamlet precisa decidir outros pontos. Um trata do critério do real: o fantasma que eu vi era verdadeiro ou um delírio? Também é necessário saber se a existência possui algum sentido. Shakespeare nunca chegará à tranquilidade da conclusão de Camus sobre o absurdo da vida. O monólogo apresenta a dimensão ética: qual seria o correto sob o ponto de vista da justiça? Por fim, seria a busca da potência eficaz do ato: fazer muda alguma coisa? Freudianamente, Hamlet manifesta a impotência e inveja do tio que se mostra ativo na busca do que deseja. Cláudio atingiu seus objetivos: a coroa e a rainha e, imerso na consciência que o torna covarde, Hamlet é impotente e tem seus desejos de ação tolhidos. Hamlet é livre, tem consciência, sabe quem ele é, porém não consegue fazer o que deseja. Pior: ele tem dúvidas sobre a honestidade da mãe. Ele foi capaz de usar o artifício de Ulisses, fingir-se de louco, mas seu narciso precisa contemplar a morte no monólogo, pois seus recursos se revelam inúteis até aquele momento. Incapaz de agir efetivamente, tendo de usar subterfúgios como a demência ou uma peça de teatro dentro da peça, Hamlet substitui o ato concreto pela retórica. Para a peça terminar, é preciso que o protagonista declare: “O resto é silêncio”.

Após a morte de Hamlet, a corte dinamarquesa é invadida por um poder estrangeiro. A política, soberana, impõe-se tanto ao ser como ao não ser. Hamlet se despoja de toda a esperança; o resultado é trágico.

A frase mais citada da língua inglesa é: “To be or not to be, that is the question”. A linha de Shakespeare parece estar próxima de outras frases como “Penso, logo existo”, de Descartes, em que as pessoas sabem a citação, mesmo desconhecendo seu significado real.

Estamos na primeira cena do terceiro ato. Já ocorreram várias coisas que induziram o príncipe à consciência de que seu pai tenha sido assassinado pelo próprio irmão, o pérfido Cláudio. O monólogo está sendo ouvido secretamente pelo rei e pelo conselheiro Polônio. Eles desejam saber o que está se passando na mente de Hamlet e se, de fato, ele está louco. Em algumas montagens cinematográficas, o príncipe intui que está sendo ouvido. O monólogo, nesse caso, viraria um depoimento e uma acusação.

'Visão de Hamlet', de Pedro Américo Foto: Pinacoteca de Sao Paulo/Wikimedia Commons

Todas as reflexões do texto dizem respeito a prosseguir ou não nas ações que podem levar a um confronto de final incerto. Ele reflete sobre o suicídio, pensar em fazer ou não fazer, ser ou não ser. Existem contradições enormes na fala do príncipe. Hamlet diz que nunca ninguém voltou da morte e... ele acabou de falar com o fantasma do pai de lá retornado. Da mesma forma, o príncipe reclama das ações nefastas de quem tem poder; ele é um homem do poder e será capaz de matar seu quase sogro sem remorso pouco depois. E toda a questão envolve se a ação é adequada ou inadequada, se haverá mais consequências negativas ao agir do que efeitos benéficos. Há o mal, ele está diluído em tudo, ele é um grão de areia no jogo cósmico. O que fazer?

Vamos sair das altas nuvens de Shakespeare e descer a uma cena de verniz de Nelson Rodrigues. Você, por acidente, viu em um restaurante a esposa do seu melhor amigo aos beijos com outro homem. Eles não perceberam sua presença. Sua mente desenha possibilidades: a) Você conta para o seu amigo, ele pode negar e achar que é calúnia; b) Você conta para o seu amigo, ele crê na narrativa e, apesar de tudo, reconcilia-se com a adúltera, tornando você uma memória incômoda daquela dor; c) Você conta para o seu amigo, ele pode matar a esposa... você ficaria com remorsos por uma morte e uma prisão; d) Você pode ficar em silêncio absoluto, mas a informação vai envenenar a amizade de vocês; e) Você conta para o seu amigo, ele agradece, reforçando a amizade. Viu? Em 80% das possibilidades, o resultado é negativo para você e para a amizade de ambos. Contar ou não contar, eis a questão! Se o príncipe dinamarquês ficar calado, sem agir, trairá a memória do seu pai. No entanto, Cláudio é bem mais velho, e Gertrudes não pode ter outro filho. Com o tempo, Hamlet será o novo rei da Dinamarca, por pura inércia. O silêncio garante a Coroa; a denúncia arrisca o pescoço. Toda escolha implica renúncia. To be or not to be?

Voltemos à frase. O verbo To Be é um signo aberto, de múltiplas possibilidades. Aqui, implica consciência e liberdade diante do futuro e, segundo Elvio Funck, pode remeter também a “existir ou não existir”, “continuar a viver ou não continuar a viver”. Ressurge a palavra “questão”. O autor Harold Bloom (obra Shakespeare e a Invenção do Humano), citando Harry Levin, disse que a palavra é uma verdadeira obsessão na peça, pois ela é empregada nada menos do que dezessete vezes.

A morte ronda o monólogo. Muita vez, usa-se uma caveira na mão de Hamlet durante a cena. A incerteza da morte parece assustar mais do que os dramas do mundo e, ao mesmo tempo, a certeza dos ossos pela frente (metáfora que retorna no diálogo dos coveiros) relativiza todos os valores que nos afligem hoje. Algo valerá a pena, se tudo terminará no túmulo?

Na frase, Hamlet precisa decidir outros pontos. Um trata do critério do real: o fantasma que eu vi era verdadeiro ou um delírio? Também é necessário saber se a existência possui algum sentido. Shakespeare nunca chegará à tranquilidade da conclusão de Camus sobre o absurdo da vida. O monólogo apresenta a dimensão ética: qual seria o correto sob o ponto de vista da justiça? Por fim, seria a busca da potência eficaz do ato: fazer muda alguma coisa? Freudianamente, Hamlet manifesta a impotência e inveja do tio que se mostra ativo na busca do que deseja. Cláudio atingiu seus objetivos: a coroa e a rainha e, imerso na consciência que o torna covarde, Hamlet é impotente e tem seus desejos de ação tolhidos. Hamlet é livre, tem consciência, sabe quem ele é, porém não consegue fazer o que deseja. Pior: ele tem dúvidas sobre a honestidade da mãe. Ele foi capaz de usar o artifício de Ulisses, fingir-se de louco, mas seu narciso precisa contemplar a morte no monólogo, pois seus recursos se revelam inúteis até aquele momento. Incapaz de agir efetivamente, tendo de usar subterfúgios como a demência ou uma peça de teatro dentro da peça, Hamlet substitui o ato concreto pela retórica. Para a peça terminar, é preciso que o protagonista declare: “O resto é silêncio”.

Após a morte de Hamlet, a corte dinamarquesa é invadida por um poder estrangeiro. A política, soberana, impõe-se tanto ao ser como ao não ser. Hamlet se despoja de toda a esperança; o resultado é trágico.

A frase mais citada da língua inglesa é: “To be or not to be, that is the question”. A linha de Shakespeare parece estar próxima de outras frases como “Penso, logo existo”, de Descartes, em que as pessoas sabem a citação, mesmo desconhecendo seu significado real.

Estamos na primeira cena do terceiro ato. Já ocorreram várias coisas que induziram o príncipe à consciência de que seu pai tenha sido assassinado pelo próprio irmão, o pérfido Cláudio. O monólogo está sendo ouvido secretamente pelo rei e pelo conselheiro Polônio. Eles desejam saber o que está se passando na mente de Hamlet e se, de fato, ele está louco. Em algumas montagens cinematográficas, o príncipe intui que está sendo ouvido. O monólogo, nesse caso, viraria um depoimento e uma acusação.

'Visão de Hamlet', de Pedro Américo Foto: Pinacoteca de Sao Paulo/Wikimedia Commons

Todas as reflexões do texto dizem respeito a prosseguir ou não nas ações que podem levar a um confronto de final incerto. Ele reflete sobre o suicídio, pensar em fazer ou não fazer, ser ou não ser. Existem contradições enormes na fala do príncipe. Hamlet diz que nunca ninguém voltou da morte e... ele acabou de falar com o fantasma do pai de lá retornado. Da mesma forma, o príncipe reclama das ações nefastas de quem tem poder; ele é um homem do poder e será capaz de matar seu quase sogro sem remorso pouco depois. E toda a questão envolve se a ação é adequada ou inadequada, se haverá mais consequências negativas ao agir do que efeitos benéficos. Há o mal, ele está diluído em tudo, ele é um grão de areia no jogo cósmico. O que fazer?

Vamos sair das altas nuvens de Shakespeare e descer a uma cena de verniz de Nelson Rodrigues. Você, por acidente, viu em um restaurante a esposa do seu melhor amigo aos beijos com outro homem. Eles não perceberam sua presença. Sua mente desenha possibilidades: a) Você conta para o seu amigo, ele pode negar e achar que é calúnia; b) Você conta para o seu amigo, ele crê na narrativa e, apesar de tudo, reconcilia-se com a adúltera, tornando você uma memória incômoda daquela dor; c) Você conta para o seu amigo, ele pode matar a esposa... você ficaria com remorsos por uma morte e uma prisão; d) Você pode ficar em silêncio absoluto, mas a informação vai envenenar a amizade de vocês; e) Você conta para o seu amigo, ele agradece, reforçando a amizade. Viu? Em 80% das possibilidades, o resultado é negativo para você e para a amizade de ambos. Contar ou não contar, eis a questão! Se o príncipe dinamarquês ficar calado, sem agir, trairá a memória do seu pai. No entanto, Cláudio é bem mais velho, e Gertrudes não pode ter outro filho. Com o tempo, Hamlet será o novo rei da Dinamarca, por pura inércia. O silêncio garante a Coroa; a denúncia arrisca o pescoço. Toda escolha implica renúncia. To be or not to be?

Voltemos à frase. O verbo To Be é um signo aberto, de múltiplas possibilidades. Aqui, implica consciência e liberdade diante do futuro e, segundo Elvio Funck, pode remeter também a “existir ou não existir”, “continuar a viver ou não continuar a viver”. Ressurge a palavra “questão”. O autor Harold Bloom (obra Shakespeare e a Invenção do Humano), citando Harry Levin, disse que a palavra é uma verdadeira obsessão na peça, pois ela é empregada nada menos do que dezessete vezes.

A morte ronda o monólogo. Muita vez, usa-se uma caveira na mão de Hamlet durante a cena. A incerteza da morte parece assustar mais do que os dramas do mundo e, ao mesmo tempo, a certeza dos ossos pela frente (metáfora que retorna no diálogo dos coveiros) relativiza todos os valores que nos afligem hoje. Algo valerá a pena, se tudo terminará no túmulo?

Na frase, Hamlet precisa decidir outros pontos. Um trata do critério do real: o fantasma que eu vi era verdadeiro ou um delírio? Também é necessário saber se a existência possui algum sentido. Shakespeare nunca chegará à tranquilidade da conclusão de Camus sobre o absurdo da vida. O monólogo apresenta a dimensão ética: qual seria o correto sob o ponto de vista da justiça? Por fim, seria a busca da potência eficaz do ato: fazer muda alguma coisa? Freudianamente, Hamlet manifesta a impotência e inveja do tio que se mostra ativo na busca do que deseja. Cláudio atingiu seus objetivos: a coroa e a rainha e, imerso na consciência que o torna covarde, Hamlet é impotente e tem seus desejos de ação tolhidos. Hamlet é livre, tem consciência, sabe quem ele é, porém não consegue fazer o que deseja. Pior: ele tem dúvidas sobre a honestidade da mãe. Ele foi capaz de usar o artifício de Ulisses, fingir-se de louco, mas seu narciso precisa contemplar a morte no monólogo, pois seus recursos se revelam inúteis até aquele momento. Incapaz de agir efetivamente, tendo de usar subterfúgios como a demência ou uma peça de teatro dentro da peça, Hamlet substitui o ato concreto pela retórica. Para a peça terminar, é preciso que o protagonista declare: “O resto é silêncio”.

Após a morte de Hamlet, a corte dinamarquesa é invadida por um poder estrangeiro. A política, soberana, impõe-se tanto ao ser como ao não ser. Hamlet se despoja de toda a esperança; o resultado é trágico.

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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