Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O que pode expandir nossa consciência sobre a comida e suas lendas saborosas?


O que você come é mais do que apenas calorias ou sabores; é um caleidoscópio de tradições e de sentimentos

Por Leandro Karnal
Atualização:

À minha frente, há um pão pequeno com manteiga. Forma par com uma xícara de café. Vou começar meu dia. Consciente ou não, lido com milênios de história: o uso do trigo, a domesticação do gado leiteiro, as viagens transcontinentais de plantas como o café e o açúcar que extingui da minha bebida matinal. Misturam-se cultura, história e hábitos novos na mais trivial das auroras de domingo.

O que pode expandir nossa consciência sobre comida? O cinema retrata histórias muito boas que envolvem gastronomia e dramas humanos. O clássico A Festa de Babette (1987) é um ícone. Adoro a animação Ratatouille (2007). Julie e Julia (2009) representa um grande trabalho de Meryl Streep. Há os sombrios, como O Menu (2022), com pesadas críticas aos excessos de clientes e de chefs. Existem dezenas de “reality shows” sobre culinária. Em todos, o mesmo tema: o que você come é mais do que apenas calorias ou sabores; é um caleidoscópio de tradições e de sentimentos.

Em ‘A Festa de Babette’, a criada (Stéphane Audren, ao centro) servindo as visitas: o cruzamento de gastronomia e dramas humanos Foto: Mubi
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Há outras fontes. Terminei um livro muito sedutor: A Deliciosa História da França (Seoman, 2020). Stéphane Hénaut é um queijeiro francês. Jeni Mitchell nasceu nos Estados Unidos. A dupla encontrou-se na Inglaterra e passou a pensar em conjunto a fascinante aventura da comida como documento e cultura. Formaram uma família.

O subtítulo do livro é muito bom: “as origens, fatos e lendas por trás das receitas, vinhos e pratos franceses mais populares de todos os tempos”. Se você gosta de comer e entende que uma refeição é um manifesto cultural e histórico, vai amar esse livro.

A narrativa é vibrante sem resvalar em um nacionalismo plano. Comer uma víscera crua pode ajudar as crianças no crescimento? Bem, existe uma Virgem do Rim em Limoges (La Vierge ao Rognon) que oferece um saboroso pedaço do órgão para seu divino filho. Aprendemos no capítulo que São Aureliano é o padroeiro dos açougueiros. Vai adquirir uma picanha e quer ajuda celeste? Não se esqueça de que São Aureliano é o intercessor.

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História viva: os islâmicos que atacam o domínio franco abandonam cabras após a Batalha de Poitiers. Dali surge o delicioso queijo Chabichou, feito do leite dos animais que os guerreiros magrebinos deixam pelo território franco.

O mundo da comida é sacro e profano. Senhores feudais e abades beneditinos cuidam das uvas e dos seus licores, de queijo e de embutidos. Os líderes cátaros são vegetarianos? Heresia! O papado se desloca para Avignon? Surge o vinho do novo castelo pontifício: Châteauneuf-du-Pape.

O imposto sobre o sal, a gabela, é um dos mais odiados. O tempero está em quase todos os pratos, mas quando bem dosado em um cassoulet pode ser motivo de resistir à invasão inglesa na Guerra dos Cem Anos. O produto não é sempre igual: o sal de Guérande parece ser muito acima da média.

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Gosta de espinafre em omeletes, “à la Florentine”? Saiba que pode estar prestando homenagem a uma contribuição da italiana Catarina De Médicis, quando ela vai a Paris para ser rainha.

Adora consumir um croissant? Talvez ele tenha se originado da lua crescente, símbolo do Islã que cerca Viena no século 17. Também pode ter nascido de um austríaco que abre, em 1838, uma padaria na Rue de Richelieu. Uma coisa é certa: o bom croissant é fresco, assado no dia e feito com a melhor manteiga. O risco ronda o pão maravilhoso: na Paris de 2025, há os feitos com margarina, despontam os congelados e até recheados. “O horror! O horror!”

As lendas são tão saborosas quanto a comida. Há um queijo francês em forma de “pirâmide decepada”, o Valençay. Dizem que o ministro Talleyrand estava apoiando o produto e serviu a Napoleão. Originalmente, o derivado do leite era na forma de pirâmide completa. O ministro quer servir o queijo, porém teme irritar o imperador que sofrera muito no Egito. O astuto chanceler, então, corta a parte de cima para evitar alusões inconvenientes. Há mais: por que Napoleão se desgasta na Campanha da Rússia? Porque faz, sozinho, um crepe, mas ele se esfarela sobre o fogo. Anúncio profético de que finalizar bem a iguaria atrai boa sorte; o erro pode congelar um exército inteiro nas estepes eslavas.

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Tudo que surge ou passa pela França possui uma rica história. O absinto libera a fada verde e a insanidade. Os queijos brie e camembert são densos em anedotas. O champanha é uma aventura maravilhosa de acidentes e de descobertas.

A guerra e as proteínas possuem relação? Um zoológico é um ponto turístico, a menos que, durante a fome do cerco prussiano a Paris em 1870-71, os animais selvagens da Cidade Luz sejam vistos como fonte para um banquete pouco ecológico.

Tem curiosidade para saber como surge o primeiro Guia Michelin? Seria possível politizar o cuscuz? Imagina a origem dos “gastronômades” (turista que viaja para experimentar sabores variados)? Leia o livro.

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Ao contrário das obras tradicionais, a narrativa não apaga o custo humano da produção de açúcar e suas relações com a escravidão. A demanda europeia pelo amendoim do Senegal produz anomalias negativas na economia desse país africano. O peso histórico da produção de alimentos é bem destacado na análise. Tenho esperança em boas mesas sem perder o senso crítico. Bon appétit!

À minha frente, há um pão pequeno com manteiga. Forma par com uma xícara de café. Vou começar meu dia. Consciente ou não, lido com milênios de história: o uso do trigo, a domesticação do gado leiteiro, as viagens transcontinentais de plantas como o café e o açúcar que extingui da minha bebida matinal. Misturam-se cultura, história e hábitos novos na mais trivial das auroras de domingo.

O que pode expandir nossa consciência sobre comida? O cinema retrata histórias muito boas que envolvem gastronomia e dramas humanos. O clássico A Festa de Babette (1987) é um ícone. Adoro a animação Ratatouille (2007). Julie e Julia (2009) representa um grande trabalho de Meryl Streep. Há os sombrios, como O Menu (2022), com pesadas críticas aos excessos de clientes e de chefs. Existem dezenas de “reality shows” sobre culinária. Em todos, o mesmo tema: o que você come é mais do que apenas calorias ou sabores; é um caleidoscópio de tradições e de sentimentos.

Em ‘A Festa de Babette’, a criada (Stéphane Audren, ao centro) servindo as visitas: o cruzamento de gastronomia e dramas humanos Foto: Mubi

Há outras fontes. Terminei um livro muito sedutor: A Deliciosa História da França (Seoman, 2020). Stéphane Hénaut é um queijeiro francês. Jeni Mitchell nasceu nos Estados Unidos. A dupla encontrou-se na Inglaterra e passou a pensar em conjunto a fascinante aventura da comida como documento e cultura. Formaram uma família.

O subtítulo do livro é muito bom: “as origens, fatos e lendas por trás das receitas, vinhos e pratos franceses mais populares de todos os tempos”. Se você gosta de comer e entende que uma refeição é um manifesto cultural e histórico, vai amar esse livro.

A narrativa é vibrante sem resvalar em um nacionalismo plano. Comer uma víscera crua pode ajudar as crianças no crescimento? Bem, existe uma Virgem do Rim em Limoges (La Vierge ao Rognon) que oferece um saboroso pedaço do órgão para seu divino filho. Aprendemos no capítulo que São Aureliano é o padroeiro dos açougueiros. Vai adquirir uma picanha e quer ajuda celeste? Não se esqueça de que São Aureliano é o intercessor.

História viva: os islâmicos que atacam o domínio franco abandonam cabras após a Batalha de Poitiers. Dali surge o delicioso queijo Chabichou, feito do leite dos animais que os guerreiros magrebinos deixam pelo território franco.

O mundo da comida é sacro e profano. Senhores feudais e abades beneditinos cuidam das uvas e dos seus licores, de queijo e de embutidos. Os líderes cátaros são vegetarianos? Heresia! O papado se desloca para Avignon? Surge o vinho do novo castelo pontifício: Châteauneuf-du-Pape.

O imposto sobre o sal, a gabela, é um dos mais odiados. O tempero está em quase todos os pratos, mas quando bem dosado em um cassoulet pode ser motivo de resistir à invasão inglesa na Guerra dos Cem Anos. O produto não é sempre igual: o sal de Guérande parece ser muito acima da média.

Gosta de espinafre em omeletes, “à la Florentine”? Saiba que pode estar prestando homenagem a uma contribuição da italiana Catarina De Médicis, quando ela vai a Paris para ser rainha.

Adora consumir um croissant? Talvez ele tenha se originado da lua crescente, símbolo do Islã que cerca Viena no século 17. Também pode ter nascido de um austríaco que abre, em 1838, uma padaria na Rue de Richelieu. Uma coisa é certa: o bom croissant é fresco, assado no dia e feito com a melhor manteiga. O risco ronda o pão maravilhoso: na Paris de 2025, há os feitos com margarina, despontam os congelados e até recheados. “O horror! O horror!”

As lendas são tão saborosas quanto a comida. Há um queijo francês em forma de “pirâmide decepada”, o Valençay. Dizem que o ministro Talleyrand estava apoiando o produto e serviu a Napoleão. Originalmente, o derivado do leite era na forma de pirâmide completa. O ministro quer servir o queijo, porém teme irritar o imperador que sofrera muito no Egito. O astuto chanceler, então, corta a parte de cima para evitar alusões inconvenientes. Há mais: por que Napoleão se desgasta na Campanha da Rússia? Porque faz, sozinho, um crepe, mas ele se esfarela sobre o fogo. Anúncio profético de que finalizar bem a iguaria atrai boa sorte; o erro pode congelar um exército inteiro nas estepes eslavas.

Tudo que surge ou passa pela França possui uma rica história. O absinto libera a fada verde e a insanidade. Os queijos brie e camembert são densos em anedotas. O champanha é uma aventura maravilhosa de acidentes e de descobertas.

A guerra e as proteínas possuem relação? Um zoológico é um ponto turístico, a menos que, durante a fome do cerco prussiano a Paris em 1870-71, os animais selvagens da Cidade Luz sejam vistos como fonte para um banquete pouco ecológico.

Tem curiosidade para saber como surge o primeiro Guia Michelin? Seria possível politizar o cuscuz? Imagina a origem dos “gastronômades” (turista que viaja para experimentar sabores variados)? Leia o livro.

Ao contrário das obras tradicionais, a narrativa não apaga o custo humano da produção de açúcar e suas relações com a escravidão. A demanda europeia pelo amendoim do Senegal produz anomalias negativas na economia desse país africano. O peso histórico da produção de alimentos é bem destacado na análise. Tenho esperança em boas mesas sem perder o senso crítico. Bon appétit!

À minha frente, há um pão pequeno com manteiga. Forma par com uma xícara de café. Vou começar meu dia. Consciente ou não, lido com milênios de história: o uso do trigo, a domesticação do gado leiteiro, as viagens transcontinentais de plantas como o café e o açúcar que extingui da minha bebida matinal. Misturam-se cultura, história e hábitos novos na mais trivial das auroras de domingo.

O que pode expandir nossa consciência sobre comida? O cinema retrata histórias muito boas que envolvem gastronomia e dramas humanos. O clássico A Festa de Babette (1987) é um ícone. Adoro a animação Ratatouille (2007). Julie e Julia (2009) representa um grande trabalho de Meryl Streep. Há os sombrios, como O Menu (2022), com pesadas críticas aos excessos de clientes e de chefs. Existem dezenas de “reality shows” sobre culinária. Em todos, o mesmo tema: o que você come é mais do que apenas calorias ou sabores; é um caleidoscópio de tradições e de sentimentos.

Em ‘A Festa de Babette’, a criada (Stéphane Audren, ao centro) servindo as visitas: o cruzamento de gastronomia e dramas humanos Foto: Mubi

Há outras fontes. Terminei um livro muito sedutor: A Deliciosa História da França (Seoman, 2020). Stéphane Hénaut é um queijeiro francês. Jeni Mitchell nasceu nos Estados Unidos. A dupla encontrou-se na Inglaterra e passou a pensar em conjunto a fascinante aventura da comida como documento e cultura. Formaram uma família.

O subtítulo do livro é muito bom: “as origens, fatos e lendas por trás das receitas, vinhos e pratos franceses mais populares de todos os tempos”. Se você gosta de comer e entende que uma refeição é um manifesto cultural e histórico, vai amar esse livro.

A narrativa é vibrante sem resvalar em um nacionalismo plano. Comer uma víscera crua pode ajudar as crianças no crescimento? Bem, existe uma Virgem do Rim em Limoges (La Vierge ao Rognon) que oferece um saboroso pedaço do órgão para seu divino filho. Aprendemos no capítulo que São Aureliano é o padroeiro dos açougueiros. Vai adquirir uma picanha e quer ajuda celeste? Não se esqueça de que São Aureliano é o intercessor.

História viva: os islâmicos que atacam o domínio franco abandonam cabras após a Batalha de Poitiers. Dali surge o delicioso queijo Chabichou, feito do leite dos animais que os guerreiros magrebinos deixam pelo território franco.

O mundo da comida é sacro e profano. Senhores feudais e abades beneditinos cuidam das uvas e dos seus licores, de queijo e de embutidos. Os líderes cátaros são vegetarianos? Heresia! O papado se desloca para Avignon? Surge o vinho do novo castelo pontifício: Châteauneuf-du-Pape.

O imposto sobre o sal, a gabela, é um dos mais odiados. O tempero está em quase todos os pratos, mas quando bem dosado em um cassoulet pode ser motivo de resistir à invasão inglesa na Guerra dos Cem Anos. O produto não é sempre igual: o sal de Guérande parece ser muito acima da média.

Gosta de espinafre em omeletes, “à la Florentine”? Saiba que pode estar prestando homenagem a uma contribuição da italiana Catarina De Médicis, quando ela vai a Paris para ser rainha.

Adora consumir um croissant? Talvez ele tenha se originado da lua crescente, símbolo do Islã que cerca Viena no século 17. Também pode ter nascido de um austríaco que abre, em 1838, uma padaria na Rue de Richelieu. Uma coisa é certa: o bom croissant é fresco, assado no dia e feito com a melhor manteiga. O risco ronda o pão maravilhoso: na Paris de 2025, há os feitos com margarina, despontam os congelados e até recheados. “O horror! O horror!”

As lendas são tão saborosas quanto a comida. Há um queijo francês em forma de “pirâmide decepada”, o Valençay. Dizem que o ministro Talleyrand estava apoiando o produto e serviu a Napoleão. Originalmente, o derivado do leite era na forma de pirâmide completa. O ministro quer servir o queijo, porém teme irritar o imperador que sofrera muito no Egito. O astuto chanceler, então, corta a parte de cima para evitar alusões inconvenientes. Há mais: por que Napoleão se desgasta na Campanha da Rússia? Porque faz, sozinho, um crepe, mas ele se esfarela sobre o fogo. Anúncio profético de que finalizar bem a iguaria atrai boa sorte; o erro pode congelar um exército inteiro nas estepes eslavas.

Tudo que surge ou passa pela França possui uma rica história. O absinto libera a fada verde e a insanidade. Os queijos brie e camembert são densos em anedotas. O champanha é uma aventura maravilhosa de acidentes e de descobertas.

A guerra e as proteínas possuem relação? Um zoológico é um ponto turístico, a menos que, durante a fome do cerco prussiano a Paris em 1870-71, os animais selvagens da Cidade Luz sejam vistos como fonte para um banquete pouco ecológico.

Tem curiosidade para saber como surge o primeiro Guia Michelin? Seria possível politizar o cuscuz? Imagina a origem dos “gastronômades” (turista que viaja para experimentar sabores variados)? Leia o livro.

Ao contrário das obras tradicionais, a narrativa não apaga o custo humano da produção de açúcar e suas relações com a escravidão. A demanda europeia pelo amendoim do Senegal produz anomalias negativas na economia desse país africano. O peso histórico da produção de alimentos é bem destacado na análise. Tenho esperança em boas mesas sem perder o senso crítico. Bon appétit!

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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