Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O Senhor é o meu pastor?


Leitura do Salmo 23 mostra que a concepção de Deus tem uma história, pois segue um desejo dos fiéis

Por Leandro Karnal
Atualização:

A citação que mais escuto da Bíblia é o começo do Salmo 23. Está em adesivos nos carros que passam. Se alguém ignorar todo o resto do texto sagrado, é provável que identifique ao menos o versículo: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”.

Em hebraico, língua original do texto, lemos algo como “Adonai roi lo echsar”. Usamos Adonai para não dizer o tetragrama sagrado e impronunciável do Criador, evitando “tomar Seu santo nome em vão”.

Seguimos com o conceito possessivo “meu” e completamos com “pastor”. Além disso, a palavra hebraica (roi) do salmo serve também para “amigo íntimo”, “companheiro de guerra”, “aquele que olha por mim”. O centro da compreensão textual está no futuro de nada faltar. O sentido original não se refere a um alimento imediato, à cura de uma doença ou a algo de que se precise agora. O Senhor (Adonai) estará comigo e nunca me deixará. Ele não faltará. Perceberam a diferença? Deus nunca se fará ausente!

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A tradução (“impossível e necessária” para J. Derrida) contém muito do que desejo ao lado do significado original da língua de partida (o hebraico). Assim, o Todo-Poderoso estará sempre comigo, mesmo que eu passe fome, sofra doenças ou seja abandonado. Deus não me faltará. Eu sofrerei, porém com Deus ao meu lado.

Juan Francisco, 25, imigrante de Honduras que buscou chegar aos Estados Unidos em 26 de novembro de 2018, mostra tatuagem do Salmo 23 do Livro dos Salmos. Foto: Alkis Konstantinidis/Reuters

O Salmo 23 não garante que eu estarei isento de dores, apenas que contarei com Ele, mesmo no perigo maior. Como somos almas pedintes e carentes, acabamos “customizando” o sentido do trecho bíblico, como uma proteção contra os perigos. Assim, “nada me faltará” parece ser um amuleto, uma proteção especial. Esse sentido não existe na ideia original.

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Vamos a um plano maior e teológico: sim, sou humano e, mesmo assim, andarei no vale do sofrimento. Terei inimigos; mesmo machucado e sofredor, terei Deus como Amigo Íntimo/Companheiro de Guerra/Pastor. O combate existirá de qualquer forma, haverá danos, mas eu terei o amparo do Altíssimo a todo instante e para sempre.

A tradução corresponde, em parte, ao domínio das línguas e, igualmente, à visão de mundo de quem traduz. Sempre existe uma subjetivação ou uma perda do sentido original (algo que tradutores tomam da Física, com o conceito de entropia).

São Jerônimo pegou os originais e traduziu para o latim. Ele usou a ideia de que Deus me apascentaria/alimentaria (Dominus pascit me, et nihil mihi deerit). O tradutor consagrado dos evangélicos, João Ferreira de Almeida, prefere “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”. A Bíblia de Jerusalém (católica), evitando o futuro, usa: “Iahweh é meu pastor, nada me falta”. A famosa tradução da época do rei James (KJV) afirma “The Lord is my sheperd; I shall not want”. Com variantes, as bíblias cristãs remetem a uma defesa divina contra a falta/desejo. A hebraica se aproxima do sentido que Deus é fiel em si, ainda que... a tragédia me visite.

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A tradução cristã esbarra em problema histórico e teológico. Histórico? Mesmo o mais dedicado servo do Altíssimo terá faltas na vida. Teológico? No mínimo, faltará saúde à mais santa carmelita enclausurada e, assim, a palavra de Deus poderia ser contestada.

O original hebraico remete a um sentido que também está no livro de Jó: ainda que você tenha notícia da morte de um filho, de perdas materiais ou de doença grave no seu próprio corpo, Eu (Deus) estarei do seu lado – amparando, consolando e mostrando que, após as desgraças, sua confiança triunfará. O prêmio de Jó, sofredor, não seria ver a restituição de tudo o que perdeu. O galardão real do justo é continuar ao lado do Todo-Poderoso. Se nenhum outro filho tivesse nascido, se ele tivesse morrido com aparência doentia e na falência, Deus ainda estaria com ele, pois Deus não é a proteção da sua pele ou dos seus depósitos bancários. Deus é o sentido primeiro e último da existência de ricos e de pobres, com pele boa ou sem, com dez filhos ou nenhum. O que existe de imortal em você continuará pela entrega ao Criador, mas não como um seguro contra falência. Deus é o sentido do eterno, chamando atenção do passageiro de toda dor. Deus apenas é.

A leitura do Salmo 23, como um amuleto contra tragédias, mostra que a concepção de Deus tem uma história, pois acompanha um desejo dos fiéis. Deus seria imutável e sempiterno; os homens anseiam por coisas distintas em vários momentos e atribuem a Ele seus desejos. Assim, espero ter colaborado para indicar como é complexo ler a Bíblia, porque todo o texto anterior foi sobre um versículo apenas, entre milhares.

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Aplicando a exegese a este cronista: considero superior a entrega pessoal de um ser humano ao seu Criador, em detrimento de uma invocação de um Deus mágico que sirva como um “air bag” diante dos acidentes da vida. Viram? Todos somos subjetivos e históricos. Não existe erro em si, apenas subjetividade e história. Tenho esperança de que possamos entender que se considerar o único possuidor da verdade seja a grande heresia.

Agradecimentos: Luciano C. Garcia Pinto, Valderez Carneiro da Silva e o Rabino Michel Schlesinger leram este texto e resolveram algumas dúvidas minhas. Obrigado!

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

A citação que mais escuto da Bíblia é o começo do Salmo 23. Está em adesivos nos carros que passam. Se alguém ignorar todo o resto do texto sagrado, é provável que identifique ao menos o versículo: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”.

Em hebraico, língua original do texto, lemos algo como “Adonai roi lo echsar”. Usamos Adonai para não dizer o tetragrama sagrado e impronunciável do Criador, evitando “tomar Seu santo nome em vão”.

Seguimos com o conceito possessivo “meu” e completamos com “pastor”. Além disso, a palavra hebraica (roi) do salmo serve também para “amigo íntimo”, “companheiro de guerra”, “aquele que olha por mim”. O centro da compreensão textual está no futuro de nada faltar. O sentido original não se refere a um alimento imediato, à cura de uma doença ou a algo de que se precise agora. O Senhor (Adonai) estará comigo e nunca me deixará. Ele não faltará. Perceberam a diferença? Deus nunca se fará ausente!

A tradução (“impossível e necessária” para J. Derrida) contém muito do que desejo ao lado do significado original da língua de partida (o hebraico). Assim, o Todo-Poderoso estará sempre comigo, mesmo que eu passe fome, sofra doenças ou seja abandonado. Deus não me faltará. Eu sofrerei, porém com Deus ao meu lado.

Juan Francisco, 25, imigrante de Honduras que buscou chegar aos Estados Unidos em 26 de novembro de 2018, mostra tatuagem do Salmo 23 do Livro dos Salmos. Foto: Alkis Konstantinidis/Reuters

O Salmo 23 não garante que eu estarei isento de dores, apenas que contarei com Ele, mesmo no perigo maior. Como somos almas pedintes e carentes, acabamos “customizando” o sentido do trecho bíblico, como uma proteção contra os perigos. Assim, “nada me faltará” parece ser um amuleto, uma proteção especial. Esse sentido não existe na ideia original.

Vamos a um plano maior e teológico: sim, sou humano e, mesmo assim, andarei no vale do sofrimento. Terei inimigos; mesmo machucado e sofredor, terei Deus como Amigo Íntimo/Companheiro de Guerra/Pastor. O combate existirá de qualquer forma, haverá danos, mas eu terei o amparo do Altíssimo a todo instante e para sempre.

A tradução corresponde, em parte, ao domínio das línguas e, igualmente, à visão de mundo de quem traduz. Sempre existe uma subjetivação ou uma perda do sentido original (algo que tradutores tomam da Física, com o conceito de entropia).

São Jerônimo pegou os originais e traduziu para o latim. Ele usou a ideia de que Deus me apascentaria/alimentaria (Dominus pascit me, et nihil mihi deerit). O tradutor consagrado dos evangélicos, João Ferreira de Almeida, prefere “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”. A Bíblia de Jerusalém (católica), evitando o futuro, usa: “Iahweh é meu pastor, nada me falta”. A famosa tradução da época do rei James (KJV) afirma “The Lord is my sheperd; I shall not want”. Com variantes, as bíblias cristãs remetem a uma defesa divina contra a falta/desejo. A hebraica se aproxima do sentido que Deus é fiel em si, ainda que... a tragédia me visite.

A tradução cristã esbarra em problema histórico e teológico. Histórico? Mesmo o mais dedicado servo do Altíssimo terá faltas na vida. Teológico? No mínimo, faltará saúde à mais santa carmelita enclausurada e, assim, a palavra de Deus poderia ser contestada.

O original hebraico remete a um sentido que também está no livro de Jó: ainda que você tenha notícia da morte de um filho, de perdas materiais ou de doença grave no seu próprio corpo, Eu (Deus) estarei do seu lado – amparando, consolando e mostrando que, após as desgraças, sua confiança triunfará. O prêmio de Jó, sofredor, não seria ver a restituição de tudo o que perdeu. O galardão real do justo é continuar ao lado do Todo-Poderoso. Se nenhum outro filho tivesse nascido, se ele tivesse morrido com aparência doentia e na falência, Deus ainda estaria com ele, pois Deus não é a proteção da sua pele ou dos seus depósitos bancários. Deus é o sentido primeiro e último da existência de ricos e de pobres, com pele boa ou sem, com dez filhos ou nenhum. O que existe de imortal em você continuará pela entrega ao Criador, mas não como um seguro contra falência. Deus é o sentido do eterno, chamando atenção do passageiro de toda dor. Deus apenas é.

A leitura do Salmo 23, como um amuleto contra tragédias, mostra que a concepção de Deus tem uma história, pois acompanha um desejo dos fiéis. Deus seria imutável e sempiterno; os homens anseiam por coisas distintas em vários momentos e atribuem a Ele seus desejos. Assim, espero ter colaborado para indicar como é complexo ler a Bíblia, porque todo o texto anterior foi sobre um versículo apenas, entre milhares.

Aplicando a exegese a este cronista: considero superior a entrega pessoal de um ser humano ao seu Criador, em detrimento de uma invocação de um Deus mágico que sirva como um “air bag” diante dos acidentes da vida. Viram? Todos somos subjetivos e históricos. Não existe erro em si, apenas subjetividade e história. Tenho esperança de que possamos entender que se considerar o único possuidor da verdade seja a grande heresia.

Agradecimentos: Luciano C. Garcia Pinto, Valderez Carneiro da Silva e o Rabino Michel Schlesinger leram este texto e resolveram algumas dúvidas minhas. Obrigado!

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

A citação que mais escuto da Bíblia é o começo do Salmo 23. Está em adesivos nos carros que passam. Se alguém ignorar todo o resto do texto sagrado, é provável que identifique ao menos o versículo: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”.

Em hebraico, língua original do texto, lemos algo como “Adonai roi lo echsar”. Usamos Adonai para não dizer o tetragrama sagrado e impronunciável do Criador, evitando “tomar Seu santo nome em vão”.

Seguimos com o conceito possessivo “meu” e completamos com “pastor”. Além disso, a palavra hebraica (roi) do salmo serve também para “amigo íntimo”, “companheiro de guerra”, “aquele que olha por mim”. O centro da compreensão textual está no futuro de nada faltar. O sentido original não se refere a um alimento imediato, à cura de uma doença ou a algo de que se precise agora. O Senhor (Adonai) estará comigo e nunca me deixará. Ele não faltará. Perceberam a diferença? Deus nunca se fará ausente!

A tradução (“impossível e necessária” para J. Derrida) contém muito do que desejo ao lado do significado original da língua de partida (o hebraico). Assim, o Todo-Poderoso estará sempre comigo, mesmo que eu passe fome, sofra doenças ou seja abandonado. Deus não me faltará. Eu sofrerei, porém com Deus ao meu lado.

Juan Francisco, 25, imigrante de Honduras que buscou chegar aos Estados Unidos em 26 de novembro de 2018, mostra tatuagem do Salmo 23 do Livro dos Salmos. Foto: Alkis Konstantinidis/Reuters

O Salmo 23 não garante que eu estarei isento de dores, apenas que contarei com Ele, mesmo no perigo maior. Como somos almas pedintes e carentes, acabamos “customizando” o sentido do trecho bíblico, como uma proteção contra os perigos. Assim, “nada me faltará” parece ser um amuleto, uma proteção especial. Esse sentido não existe na ideia original.

Vamos a um plano maior e teológico: sim, sou humano e, mesmo assim, andarei no vale do sofrimento. Terei inimigos; mesmo machucado e sofredor, terei Deus como Amigo Íntimo/Companheiro de Guerra/Pastor. O combate existirá de qualquer forma, haverá danos, mas eu terei o amparo do Altíssimo a todo instante e para sempre.

A tradução corresponde, em parte, ao domínio das línguas e, igualmente, à visão de mundo de quem traduz. Sempre existe uma subjetivação ou uma perda do sentido original (algo que tradutores tomam da Física, com o conceito de entropia).

São Jerônimo pegou os originais e traduziu para o latim. Ele usou a ideia de que Deus me apascentaria/alimentaria (Dominus pascit me, et nihil mihi deerit). O tradutor consagrado dos evangélicos, João Ferreira de Almeida, prefere “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”. A Bíblia de Jerusalém (católica), evitando o futuro, usa: “Iahweh é meu pastor, nada me falta”. A famosa tradução da época do rei James (KJV) afirma “The Lord is my sheperd; I shall not want”. Com variantes, as bíblias cristãs remetem a uma defesa divina contra a falta/desejo. A hebraica se aproxima do sentido que Deus é fiel em si, ainda que... a tragédia me visite.

A tradução cristã esbarra em problema histórico e teológico. Histórico? Mesmo o mais dedicado servo do Altíssimo terá faltas na vida. Teológico? No mínimo, faltará saúde à mais santa carmelita enclausurada e, assim, a palavra de Deus poderia ser contestada.

O original hebraico remete a um sentido que também está no livro de Jó: ainda que você tenha notícia da morte de um filho, de perdas materiais ou de doença grave no seu próprio corpo, Eu (Deus) estarei do seu lado – amparando, consolando e mostrando que, após as desgraças, sua confiança triunfará. O prêmio de Jó, sofredor, não seria ver a restituição de tudo o que perdeu. O galardão real do justo é continuar ao lado do Todo-Poderoso. Se nenhum outro filho tivesse nascido, se ele tivesse morrido com aparência doentia e na falência, Deus ainda estaria com ele, pois Deus não é a proteção da sua pele ou dos seus depósitos bancários. Deus é o sentido primeiro e último da existência de ricos e de pobres, com pele boa ou sem, com dez filhos ou nenhum. O que existe de imortal em você continuará pela entrega ao Criador, mas não como um seguro contra falência. Deus é o sentido do eterno, chamando atenção do passageiro de toda dor. Deus apenas é.

A leitura do Salmo 23, como um amuleto contra tragédias, mostra que a concepção de Deus tem uma história, pois acompanha um desejo dos fiéis. Deus seria imutável e sempiterno; os homens anseiam por coisas distintas em vários momentos e atribuem a Ele seus desejos. Assim, espero ter colaborado para indicar como é complexo ler a Bíblia, porque todo o texto anterior foi sobre um versículo apenas, entre milhares.

Aplicando a exegese a este cronista: considero superior a entrega pessoal de um ser humano ao seu Criador, em detrimento de uma invocação de um Deus mágico que sirva como um “air bag” diante dos acidentes da vida. Viram? Todos somos subjetivos e históricos. Não existe erro em si, apenas subjetividade e história. Tenho esperança de que possamos entender que se considerar o único possuidor da verdade seja a grande heresia.

Agradecimentos: Luciano C. Garcia Pinto, Valderez Carneiro da Silva e o Rabino Michel Schlesinger leram este texto e resolveram algumas dúvidas minhas. Obrigado!

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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