Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Os livros favoritos de Leandro Karnal no 1.º semestre de 2024


O frio estimula a leitura - vamos aproveitar

Por Leandro Karnal
Atualização:

Há quem ame os meses de calor. E há gente do meu time: aqueles que aguardam nosso tímido inverno para relaxar com mais tranquilidade. Frio estimula leitura. Vamos aproveitar.

Indico um livrinho reflexivo: Shanzhai – Desconstrução em Chinês, do conhecido autor coreano-alemão Byung-Chul Han (Vozes, 2023). Ele entrelaça pensamento chinês e ocidental sobre criação. Vai do preconceito de Hegel sobre os chineses, passa por Freud e segue para um possível futuro político da Ásia. Pergunta de base: o que é original e o que é cópia?

Leandro Karnal Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Sou historiador. Desde a minha graduação, os livros de Amin Maalouf enriqueceram meu repertório crítico. O franco-libanês lançou O Labirinto dos Desgarrados – o Ocidente e seus Adversários (Vestígio, 2024). Na história contemporânea, a forma como o Japão Imperial, a Rússia Soviética e a China lidaram com o poder e a cultura do Ocidente é a trama do estudo.

Por vezes, um tema menor ganha dimensão extraordinária nas mãos de um bom pesquisador. Nunca imaginei que acabaria lendo sobre “índices”. Dennis Duncan escreveu Índice, uma História do (Fósforo, 2024). O inglês pensou nas listas que ajudam a percorrer um autor, uma obra ou um tema. Como começamos a numerar páginas? Como surgiram os índices que ajudam tanto na leitura e pesquisa? Os índices foram tema de debates políticos e religiosos. O autor mostra que, por trás de uma ideia simples, existe uma postura sobre o conhecimento. Terminei a leitura pensando que, de fato, não existem temas grandes e pequenos, apenas escritores bons e ruins.

Indico um texto real sobre troca de cartas entre duas mulheres inteligentes e sensíveis: Amantes da Palavra – Correspondência Literária (Ibis Libris, 2023). Betty Milan e Neide Archanjo se encontraram e passaram a trocar mensagens. Betty é minha colega da Academia Paulista de Letras. Escrevi para ela: “Seu texto é uma cartografia sentimental, uma linha epistolar de percepção do mundo que amei conhecer”. Neide já faleceu, mas tive vontade de ser amigo das duas e trocar cartas com elas.

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Noam Chomsky é um dos nomes mais citados e influentes do pensamento crítico contemporâneo. Anthony Arnove selecionou textos básicos do norte-americano e produziu O Essencial Chomsky (Crítica, 2024). Em vários pontos, Chomsky está em um lugar político distinto do meu. Exatamente por isso, adoro ter de argumentar com sua reflexão. Vivemos tempos “teológicos” nos quais ler um autor deve ser acompanhado de adesão dogmática. Prefiro tempos críticos nos quais discordo de um autor importante e, para poder discordar, tenho de ler e conhecer. Chomsky é uma referência incontornável do mundo atual.

O modelo que Laurentino Gomes levou a um estado de excelência é escolher uma data e fazer uma análise ampla. Rodrigo Trespach seguiu a senda e escreveu 1824 (Citadel, 2023). O foco do livro é a imigração alemã e os duzentos anos de São Leopoldo, a propósito, minha cidade natal. A obra amplia muito o episódio do inverno de 1824, que trouxe para as margens do Rio dos Sinos as famílias germânicas. Vemos José Bonifácio, Pedro I, Leopoldina, personagens quase folclóricas, como Schaeffer, lutando por motivos variados para que chegassem colonos ao Brasil. As lutas e desafios dos pioneiros (e os muitos intermediários nem sempre honestos do processo) contam uma saga que prende a atenção do leitor. Em ano de tragédia e cheias, é uma excelente leitura sobre raízes.

Vivemos época de ideias polarizadas. Mais do que nunca, devemos ler a fina pena da professora Scarlett Marton. A conhecida especialista escreveu Nietzsche, Filósofo da Suspeita (Autêntica Editora, 2024). As polêmicas do filósofo alemão sobre democracia, feminismo e religiões são bem conhecidas. Com o rumo seguro estabelecido pela autora, vamos pensando além de “era ou não misógino” e vamos tornando complexas questões que escapam ao maniqueísmo barato. Livro pequeno e denso, ao mesmo tempo. “À existência humana o filósofo conta atribuir um novo sentido; quer fazer coincidir sentido e realidade. Assim é que de nós, seus leitores, exige uma atitude: a de aceitar a vida no que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso. E não há afirmação maior da existência humana que a de que tudo retorna sem cessar.” Nietzsche suspeita e faz filosofia a “golpes de martelo”, algo profundamente necessário para 2024.

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Escolhi alguns dos livros que li neste semestre. Confesso uma novidade: até há alguns anos, eu jamais (ou muito raramente) abandonava um livro antes do fim. Quando eu o fazia, como não concluí Finnegans Wake (James Joyce) no passado, era o reconhecimento do limite da minha compreensão em inglês. Não era uma crítica ao autor, era a constatação da minha incompetência. Em 2024, eu comecei a agir assim: tendo chegado à página cinquenta de um romance ou livro de análise filosófica, mas notando que nada de novo ou bom sairia daquele mato, decidi não arriscar mais. Dessa forma, ao lado dos bons textos que indiquei aqui e terminei com entusiasmo, poderia fazer uma crônica de muitos outros que abandonei. Tenho consciência de que o tempo não é eterno; por isso, quero ler muita coisa boa ainda. Minha esperança dura, em média, cinquenta páginas. E a sua, querida leitora e estimado leitor, sobrevive mais?

Há quem ame os meses de calor. E há gente do meu time: aqueles que aguardam nosso tímido inverno para relaxar com mais tranquilidade. Frio estimula leitura. Vamos aproveitar.

Indico um livrinho reflexivo: Shanzhai – Desconstrução em Chinês, do conhecido autor coreano-alemão Byung-Chul Han (Vozes, 2023). Ele entrelaça pensamento chinês e ocidental sobre criação. Vai do preconceito de Hegel sobre os chineses, passa por Freud e segue para um possível futuro político da Ásia. Pergunta de base: o que é original e o que é cópia?

Leandro Karnal Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Sou historiador. Desde a minha graduação, os livros de Amin Maalouf enriqueceram meu repertório crítico. O franco-libanês lançou O Labirinto dos Desgarrados – o Ocidente e seus Adversários (Vestígio, 2024). Na história contemporânea, a forma como o Japão Imperial, a Rússia Soviética e a China lidaram com o poder e a cultura do Ocidente é a trama do estudo.

Por vezes, um tema menor ganha dimensão extraordinária nas mãos de um bom pesquisador. Nunca imaginei que acabaria lendo sobre “índices”. Dennis Duncan escreveu Índice, uma História do (Fósforo, 2024). O inglês pensou nas listas que ajudam a percorrer um autor, uma obra ou um tema. Como começamos a numerar páginas? Como surgiram os índices que ajudam tanto na leitura e pesquisa? Os índices foram tema de debates políticos e religiosos. O autor mostra que, por trás de uma ideia simples, existe uma postura sobre o conhecimento. Terminei a leitura pensando que, de fato, não existem temas grandes e pequenos, apenas escritores bons e ruins.

Indico um texto real sobre troca de cartas entre duas mulheres inteligentes e sensíveis: Amantes da Palavra – Correspondência Literária (Ibis Libris, 2023). Betty Milan e Neide Archanjo se encontraram e passaram a trocar mensagens. Betty é minha colega da Academia Paulista de Letras. Escrevi para ela: “Seu texto é uma cartografia sentimental, uma linha epistolar de percepção do mundo que amei conhecer”. Neide já faleceu, mas tive vontade de ser amigo das duas e trocar cartas com elas.

Noam Chomsky é um dos nomes mais citados e influentes do pensamento crítico contemporâneo. Anthony Arnove selecionou textos básicos do norte-americano e produziu O Essencial Chomsky (Crítica, 2024). Em vários pontos, Chomsky está em um lugar político distinto do meu. Exatamente por isso, adoro ter de argumentar com sua reflexão. Vivemos tempos “teológicos” nos quais ler um autor deve ser acompanhado de adesão dogmática. Prefiro tempos críticos nos quais discordo de um autor importante e, para poder discordar, tenho de ler e conhecer. Chomsky é uma referência incontornável do mundo atual.

O modelo que Laurentino Gomes levou a um estado de excelência é escolher uma data e fazer uma análise ampla. Rodrigo Trespach seguiu a senda e escreveu 1824 (Citadel, 2023). O foco do livro é a imigração alemã e os duzentos anos de São Leopoldo, a propósito, minha cidade natal. A obra amplia muito o episódio do inverno de 1824, que trouxe para as margens do Rio dos Sinos as famílias germânicas. Vemos José Bonifácio, Pedro I, Leopoldina, personagens quase folclóricas, como Schaeffer, lutando por motivos variados para que chegassem colonos ao Brasil. As lutas e desafios dos pioneiros (e os muitos intermediários nem sempre honestos do processo) contam uma saga que prende a atenção do leitor. Em ano de tragédia e cheias, é uma excelente leitura sobre raízes.

Vivemos época de ideias polarizadas. Mais do que nunca, devemos ler a fina pena da professora Scarlett Marton. A conhecida especialista escreveu Nietzsche, Filósofo da Suspeita (Autêntica Editora, 2024). As polêmicas do filósofo alemão sobre democracia, feminismo e religiões são bem conhecidas. Com o rumo seguro estabelecido pela autora, vamos pensando além de “era ou não misógino” e vamos tornando complexas questões que escapam ao maniqueísmo barato. Livro pequeno e denso, ao mesmo tempo. “À existência humana o filósofo conta atribuir um novo sentido; quer fazer coincidir sentido e realidade. Assim é que de nós, seus leitores, exige uma atitude: a de aceitar a vida no que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso. E não há afirmação maior da existência humana que a de que tudo retorna sem cessar.” Nietzsche suspeita e faz filosofia a “golpes de martelo”, algo profundamente necessário para 2024.

Escolhi alguns dos livros que li neste semestre. Confesso uma novidade: até há alguns anos, eu jamais (ou muito raramente) abandonava um livro antes do fim. Quando eu o fazia, como não concluí Finnegans Wake (James Joyce) no passado, era o reconhecimento do limite da minha compreensão em inglês. Não era uma crítica ao autor, era a constatação da minha incompetência. Em 2024, eu comecei a agir assim: tendo chegado à página cinquenta de um romance ou livro de análise filosófica, mas notando que nada de novo ou bom sairia daquele mato, decidi não arriscar mais. Dessa forma, ao lado dos bons textos que indiquei aqui e terminei com entusiasmo, poderia fazer uma crônica de muitos outros que abandonei. Tenho consciência de que o tempo não é eterno; por isso, quero ler muita coisa boa ainda. Minha esperança dura, em média, cinquenta páginas. E a sua, querida leitora e estimado leitor, sobrevive mais?

Há quem ame os meses de calor. E há gente do meu time: aqueles que aguardam nosso tímido inverno para relaxar com mais tranquilidade. Frio estimula leitura. Vamos aproveitar.

Indico um livrinho reflexivo: Shanzhai – Desconstrução em Chinês, do conhecido autor coreano-alemão Byung-Chul Han (Vozes, 2023). Ele entrelaça pensamento chinês e ocidental sobre criação. Vai do preconceito de Hegel sobre os chineses, passa por Freud e segue para um possível futuro político da Ásia. Pergunta de base: o que é original e o que é cópia?

Leandro Karnal Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Sou historiador. Desde a minha graduação, os livros de Amin Maalouf enriqueceram meu repertório crítico. O franco-libanês lançou O Labirinto dos Desgarrados – o Ocidente e seus Adversários (Vestígio, 2024). Na história contemporânea, a forma como o Japão Imperial, a Rússia Soviética e a China lidaram com o poder e a cultura do Ocidente é a trama do estudo.

Por vezes, um tema menor ganha dimensão extraordinária nas mãos de um bom pesquisador. Nunca imaginei que acabaria lendo sobre “índices”. Dennis Duncan escreveu Índice, uma História do (Fósforo, 2024). O inglês pensou nas listas que ajudam a percorrer um autor, uma obra ou um tema. Como começamos a numerar páginas? Como surgiram os índices que ajudam tanto na leitura e pesquisa? Os índices foram tema de debates políticos e religiosos. O autor mostra que, por trás de uma ideia simples, existe uma postura sobre o conhecimento. Terminei a leitura pensando que, de fato, não existem temas grandes e pequenos, apenas escritores bons e ruins.

Indico um texto real sobre troca de cartas entre duas mulheres inteligentes e sensíveis: Amantes da Palavra – Correspondência Literária (Ibis Libris, 2023). Betty Milan e Neide Archanjo se encontraram e passaram a trocar mensagens. Betty é minha colega da Academia Paulista de Letras. Escrevi para ela: “Seu texto é uma cartografia sentimental, uma linha epistolar de percepção do mundo que amei conhecer”. Neide já faleceu, mas tive vontade de ser amigo das duas e trocar cartas com elas.

Noam Chomsky é um dos nomes mais citados e influentes do pensamento crítico contemporâneo. Anthony Arnove selecionou textos básicos do norte-americano e produziu O Essencial Chomsky (Crítica, 2024). Em vários pontos, Chomsky está em um lugar político distinto do meu. Exatamente por isso, adoro ter de argumentar com sua reflexão. Vivemos tempos “teológicos” nos quais ler um autor deve ser acompanhado de adesão dogmática. Prefiro tempos críticos nos quais discordo de um autor importante e, para poder discordar, tenho de ler e conhecer. Chomsky é uma referência incontornável do mundo atual.

O modelo que Laurentino Gomes levou a um estado de excelência é escolher uma data e fazer uma análise ampla. Rodrigo Trespach seguiu a senda e escreveu 1824 (Citadel, 2023). O foco do livro é a imigração alemã e os duzentos anos de São Leopoldo, a propósito, minha cidade natal. A obra amplia muito o episódio do inverno de 1824, que trouxe para as margens do Rio dos Sinos as famílias germânicas. Vemos José Bonifácio, Pedro I, Leopoldina, personagens quase folclóricas, como Schaeffer, lutando por motivos variados para que chegassem colonos ao Brasil. As lutas e desafios dos pioneiros (e os muitos intermediários nem sempre honestos do processo) contam uma saga que prende a atenção do leitor. Em ano de tragédia e cheias, é uma excelente leitura sobre raízes.

Vivemos época de ideias polarizadas. Mais do que nunca, devemos ler a fina pena da professora Scarlett Marton. A conhecida especialista escreveu Nietzsche, Filósofo da Suspeita (Autêntica Editora, 2024). As polêmicas do filósofo alemão sobre democracia, feminismo e religiões são bem conhecidas. Com o rumo seguro estabelecido pela autora, vamos pensando além de “era ou não misógino” e vamos tornando complexas questões que escapam ao maniqueísmo barato. Livro pequeno e denso, ao mesmo tempo. “À existência humana o filósofo conta atribuir um novo sentido; quer fazer coincidir sentido e realidade. Assim é que de nós, seus leitores, exige uma atitude: a de aceitar a vida no que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso. E não há afirmação maior da existência humana que a de que tudo retorna sem cessar.” Nietzsche suspeita e faz filosofia a “golpes de martelo”, algo profundamente necessário para 2024.

Escolhi alguns dos livros que li neste semestre. Confesso uma novidade: até há alguns anos, eu jamais (ou muito raramente) abandonava um livro antes do fim. Quando eu o fazia, como não concluí Finnegans Wake (James Joyce) no passado, era o reconhecimento do limite da minha compreensão em inglês. Não era uma crítica ao autor, era a constatação da minha incompetência. Em 2024, eu comecei a agir assim: tendo chegado à página cinquenta de um romance ou livro de análise filosófica, mas notando que nada de novo ou bom sairia daquele mato, decidi não arriscar mais. Dessa forma, ao lado dos bons textos que indiquei aqui e terminei com entusiasmo, poderia fazer uma crônica de muitos outros que abandonei. Tenho consciência de que o tempo não é eterno; por isso, quero ler muita coisa boa ainda. Minha esperança dura, em média, cinquenta páginas. E a sua, querida leitora e estimado leitor, sobrevive mais?

Há quem ame os meses de calor. E há gente do meu time: aqueles que aguardam nosso tímido inverno para relaxar com mais tranquilidade. Frio estimula leitura. Vamos aproveitar.

Indico um livrinho reflexivo: Shanzhai – Desconstrução em Chinês, do conhecido autor coreano-alemão Byung-Chul Han (Vozes, 2023). Ele entrelaça pensamento chinês e ocidental sobre criação. Vai do preconceito de Hegel sobre os chineses, passa por Freud e segue para um possível futuro político da Ásia. Pergunta de base: o que é original e o que é cópia?

Leandro Karnal Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Sou historiador. Desde a minha graduação, os livros de Amin Maalouf enriqueceram meu repertório crítico. O franco-libanês lançou O Labirinto dos Desgarrados – o Ocidente e seus Adversários (Vestígio, 2024). Na história contemporânea, a forma como o Japão Imperial, a Rússia Soviética e a China lidaram com o poder e a cultura do Ocidente é a trama do estudo.

Por vezes, um tema menor ganha dimensão extraordinária nas mãos de um bom pesquisador. Nunca imaginei que acabaria lendo sobre “índices”. Dennis Duncan escreveu Índice, uma História do (Fósforo, 2024). O inglês pensou nas listas que ajudam a percorrer um autor, uma obra ou um tema. Como começamos a numerar páginas? Como surgiram os índices que ajudam tanto na leitura e pesquisa? Os índices foram tema de debates políticos e religiosos. O autor mostra que, por trás de uma ideia simples, existe uma postura sobre o conhecimento. Terminei a leitura pensando que, de fato, não existem temas grandes e pequenos, apenas escritores bons e ruins.

Indico um texto real sobre troca de cartas entre duas mulheres inteligentes e sensíveis: Amantes da Palavra – Correspondência Literária (Ibis Libris, 2023). Betty Milan e Neide Archanjo se encontraram e passaram a trocar mensagens. Betty é minha colega da Academia Paulista de Letras. Escrevi para ela: “Seu texto é uma cartografia sentimental, uma linha epistolar de percepção do mundo que amei conhecer”. Neide já faleceu, mas tive vontade de ser amigo das duas e trocar cartas com elas.

Noam Chomsky é um dos nomes mais citados e influentes do pensamento crítico contemporâneo. Anthony Arnove selecionou textos básicos do norte-americano e produziu O Essencial Chomsky (Crítica, 2024). Em vários pontos, Chomsky está em um lugar político distinto do meu. Exatamente por isso, adoro ter de argumentar com sua reflexão. Vivemos tempos “teológicos” nos quais ler um autor deve ser acompanhado de adesão dogmática. Prefiro tempos críticos nos quais discordo de um autor importante e, para poder discordar, tenho de ler e conhecer. Chomsky é uma referência incontornável do mundo atual.

O modelo que Laurentino Gomes levou a um estado de excelência é escolher uma data e fazer uma análise ampla. Rodrigo Trespach seguiu a senda e escreveu 1824 (Citadel, 2023). O foco do livro é a imigração alemã e os duzentos anos de São Leopoldo, a propósito, minha cidade natal. A obra amplia muito o episódio do inverno de 1824, que trouxe para as margens do Rio dos Sinos as famílias germânicas. Vemos José Bonifácio, Pedro I, Leopoldina, personagens quase folclóricas, como Schaeffer, lutando por motivos variados para que chegassem colonos ao Brasil. As lutas e desafios dos pioneiros (e os muitos intermediários nem sempre honestos do processo) contam uma saga que prende a atenção do leitor. Em ano de tragédia e cheias, é uma excelente leitura sobre raízes.

Vivemos época de ideias polarizadas. Mais do que nunca, devemos ler a fina pena da professora Scarlett Marton. A conhecida especialista escreveu Nietzsche, Filósofo da Suspeita (Autêntica Editora, 2024). As polêmicas do filósofo alemão sobre democracia, feminismo e religiões são bem conhecidas. Com o rumo seguro estabelecido pela autora, vamos pensando além de “era ou não misógino” e vamos tornando complexas questões que escapam ao maniqueísmo barato. Livro pequeno e denso, ao mesmo tempo. “À existência humana o filósofo conta atribuir um novo sentido; quer fazer coincidir sentido e realidade. Assim é que de nós, seus leitores, exige uma atitude: a de aceitar a vida no que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso. E não há afirmação maior da existência humana que a de que tudo retorna sem cessar.” Nietzsche suspeita e faz filosofia a “golpes de martelo”, algo profundamente necessário para 2024.

Escolhi alguns dos livros que li neste semestre. Confesso uma novidade: até há alguns anos, eu jamais (ou muito raramente) abandonava um livro antes do fim. Quando eu o fazia, como não concluí Finnegans Wake (James Joyce) no passado, era o reconhecimento do limite da minha compreensão em inglês. Não era uma crítica ao autor, era a constatação da minha incompetência. Em 2024, eu comecei a agir assim: tendo chegado à página cinquenta de um romance ou livro de análise filosófica, mas notando que nada de novo ou bom sairia daquele mato, decidi não arriscar mais. Dessa forma, ao lado dos bons textos que indiquei aqui e terminei com entusiasmo, poderia fazer uma crônica de muitos outros que abandonei. Tenho consciência de que o tempo não é eterno; por isso, quero ler muita coisa boa ainda. Minha esperança dura, em média, cinquenta páginas. E a sua, querida leitora e estimado leitor, sobrevive mais?

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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