O desfile da humanidade sempre contou com a presença obrigatória da ala dos otimistas. O Marquês de Condorcet (1743-1794) pertencia ao grupo da metade cheia do copo. A ciência resolveria os males do mundo, a Razão triunfaria e as luzes seguiriam o processo natural e inevitável de elevar os homens a lugares melhores. O bom filósofo aderiu cedo à revolução e logo descobriria que a rota da iluminação tinha pedágios, desvios e escroques a esmo. O movimento de 1789 tragou o iluminista que acabaria morrendo em meio a tantas crises políticas. Um pouco da desconfiança de Edmund Burke (1729-1797), cético conservador lá do outro lado do canal, teria feito bem ao colega francês.
Condorcet continua sendo pai fértil de róseos filhos. Muita gente imagina que o progresso seja linear e impossível de ser detido. Assim, o exame criterioso dos dados objetivos conduziu à refutação do geocentrismo há quase meio milênio. Muito antes do Renascimento Científico já havia quem conseguisse ter uma ideia até do raio da Terra. Erastótenes, há mais de dois mil anos, calculou a circunferência da nossa rocha voadora chamada Terra. Chegou perto do número real. O pensamento racional moderno confirmou o que tantos intuíram antes. As viagens de circum-navegação de Fernão de Magalhães e de Francis Drake confirmariam o óbvio da trigonometria grega: o mundo é esférico, levemente achatado nos polos. Estava feito o consenso científico. As luzes condorcetianas avançaram. Os astronautas trouxeram fotos que fizeram Erastótenes sorrir no reino de Hades. Era o “progresso”, que, dentre muitas definições, pode ser entendido como o real em diálogo mais harmônico com a teoria científica.
Há alguns dias, distraído, circum-navegando a programação com o controle remoto, encontrei um documentário sobre o terraplanismo nos EUA (Behind the Curve, Daniel Clark, 2018). Eu já conhecia rumores de internet sobre a volta de teorias geocêntricas e da Terra como espaço plano, adornado ou não por uma cúpula. O documentário trouxe luzes (ou trevas) sobre os rumores. Há grupos organizados, fazem encontros, publicam livros, apresentam programas de rádio e de internet. É confraria sólida e numerosa, e, sendo nos EUA, apresentam o binômio mais fundamental de todo movimento: canecas e camisetas. É verdade autoevidente: quem possui camiseta e caneca veio para ficar.
Imaginei o terraplanismo crescendo e cerrando pactos com o criacionismo. Em breve, livros didáticos teriam de apresentar as duas teorias (em nome da diversidade democrática). Um trecho mostraria o modelo geocêntrico plano e, ao lado, a outra “teoria”, nossa maltratada bola voadora a que chamamos lar, em uma rota elíptica ao redor do Sol, num sistema de planetas e satélites perdidos nalgum ponto de um universo em expansão. Nada impede, no deslizar da nau dos insensatos, que surjam teorias mais criativas do que a monótona esfera ou superfície plana. Que tal uma Terra como triângulo escaleno ou isósceles, e, saindo da coisa sem volume, um planeta em forma de cone ou de cubo? De longe evoco aulas de geometria do ensino fundamental. O livro didático, claro, para não ser acusado de ideológico, iria mostrando a sucessão de figuras uni, bi ou tridimensionais. O cosmopolitismo do texto facilitaria aos professores trabalhos interdisciplinares, Geografia e Matemática, por exemplo. Calcule o volume da Ásia cúbica...
Não sou dado a teorias conspiratórias. As personagens do documentário diziam que a Nasa, os governos, os cientistas e quase todo mundo produziram a explicação da Terra esférica como parte de um complô. A pergunta lógica: qual seria a exata distinção entre dominar um mundo plano ou com curvas? O que ganhariam os poderes mundiais, se nosso lar planetário fosse um hexágono? Difícil explicar. Um terraplanista do documentário associa a “conspiração esférica” ao mesmo movimento dos direitos gays. Minha tradicional inabilidade com alucinógenos impede de seguir as conexões do entrevistado. Sempre que escuto tais seres imagino, “ele vota...”.
Além de descobrir a turma “flat”, conheci uma valiosa informação. Existe um “efeito Dunning-Kruger”. O efeito é uma certeza gerada pela ausência de informações, uma superioridade ilusória, uma certeza nascida da ignorância. Em outras palavras, alguém que leu um ou dois livros sobre um tema (atualizando: acessou um link ou viu um vídeo no YouTube) faria afirmações claras e com imensa convicção, pois o vazio faria ecoar mais o badalar oco. O efeito garante autoridade nascida do caráter raso.
Certezas absolutas não costumam passear com a inteligência. O conhecimento costuma facilitar a passagem da crença para o argumento e da opinião para o fato demonstrável. Terraplanistas, talvez, sejam inofensivos, divertidos, quase a dose certa de “loucos mansos” que nossa seriedade necessita. Há versões mais perigosas do terraplanismo como “as vacinas causam autismo”. No caso, o cômico do analfabetismo científico vira trágico e crença subjetiva produz paralisia infantil objetiva. Condorcet estava errado. A Terra não é chata, mas, as pessoas que nela habitam, eventualmente o são. Crenças trazem o pitoresco colorido do mundo esférico. Há quanto tempo você não faz vacinas? Sua crença mata e pode matar seu filho, cujo corpo cairá sobre o solo esférico ou reto, porque acima das bobagens da internet, existe o valor absoluto da vida humana. Bom domingo para todos nós que andamos sobre terra firme e esférica.