Duas historiadoras aposentadas se encontraram após muitos meses de isolamento social. Calma! Antes que os FFA (fiscais da ficção alheia) soltem um Cérbero hidrofóbico sobre o cronista, elas tomavam chá no jardim aberto da mais velha, usaram máscara e ficaram a dois metros uma da outra, com luvas, traje descartável e tendo feito teste duas vezes no dia anterior e medido a temperatura antes do encontro. Não se tocaram e não se aproximaram. Logo após as chávenas, ficaram em isolamento em duas cabanas na Mantiqueira, distantes 40 km uma da outra, por dois meses para verificar tudo. Espero que os FFA consigam, agora, dormir em paz. Sim, minha querida leitora e meu estimado leitor, a ficção também deve ser pedagógica, correta e isenta de máculas. Não é mais o mundo de Flaubert, estamos no campo do “tribunal da internet”.
Qual o tema do convescote das senhoras? Qual teria sido o melhor presidente do Brasil. Ambas eram versadas na história do período republicano. A mais velha, logo à partida, excluiu o patriarca: “Deodoro foi terrível! Participou de um golpe, de uma quebra da ordem legal que ele jurara defender. Depois, repetiu vícios do Império com o Barão de Lucena. Por fim, fechou o Congresso, iniciando o autoritarismo. O mal maior estava na origem!”. A mais nova refletiu e concordou em parte. Não desculpava o Marechal de Alagoas. Lembrou que o segundo presidente também ignorou a ordem legal e se manteve no cargo, apesar da Constituição estabelecer outra coisa. Floriano causou mais males, pois governou mais tempo. Rosa atacava com ênfase o primeiro civil: “Deodoro e Floriano não eram amigos da ordem jurídica. Porém, com certeza, Prudente de Moraes não pode estar entre os melhores! O massacre de Canudos marcou a história da jovem República com sangue!”. Elevou a voz ao dizer a palavra “sangue”. Eulália ouviu com dificuldade, pois a distância era grande entre as duas. Com rigor metódico, identificou no plano econômico de Campos Sales uma recessão que causou mais danos do que a repressão aos sertanejos milenaristas da Bahia. “Ministros da Fazenda como Joaquim Murtinho são mais genocidas do que todas as tropas”, concluiu com a mão em um petit-four.
Rosa lembrou-se da Revolta da Vacina, sob Rodrigues Alves, a repressão e o envio de tanta gente para o Acre. Seguiu com mais repressões, mortandades e castigos na Revolta da Chibata, prisões ilegais sob Arthur Bernardes, casos de corrupção eleitoral da República Velha. O tenentismo apareceu na argumentação. “É difícil escolher algum bom presidente até 1930”, concluiu a historiadora. Passaram a Getúlio Vargas. Sim, houve coisas notáveis, mas o Estado Populista controlava os trabalhadores e sindicatos, reprimia com violência, foi ditador a maior parte do tempo, sujou-se de sangue com o caso Olga Benário, prendeu Graciliano Ramos, encharcou-se na corrupção como a crise de 1954 revelou. Getúlio mostrou algumas virtudes, porém, como Lúcifer, misturava o mal com sua malícia sedutora. Não poderia ser o melhor, no máximo, o mais longevo.
Dutra? Bem intencionado, porém... limitado. “Uma cavalgadura”, disseram, quase ao mesmo tempo, as duas amigas rindo. O carismático JK? Gastador compulsivo, criador de problemas que as gerações futuras não conseguiram resolver ainda. Jânio? Louco de pedra. Jango? Um indeciso que abriu caminho para o caos.
Os presidentes militares foram avaliados com muita força crítica. Concentração de renda, escândalos como as locomotivas da GE, casos de violência e de tortura, a disparada da inflação sob Figueiredo, etc. Não sobrou pedra sobre pedra. Nada havia entre 1964 e 1985 para ofertar um candidato ao posto.
A Nova República ocupou o fim da tarde. O chá esfriava e elas ainda não tinham identificado o melhor presidente da história do Brasil. Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro receberam análises críticas. Denúncias, escândalos, quebras de protocolo, desvios de função, erros estratégicos e ministros terríveis em cada governo. Reconheciam, aqui e ali, alguma boa intenção, poucos resultados e escassa competência.
Chegou a hora limite para ambas partirem (em carros separados) para a Mantiqueira. A taça do melhor continuava sem dono. Já na despedida, bem separadas e com máscaras e viseiras de plástico, ambas embebidas no álcool em gel e revestidas roupas protetoras descartáveis, Rosa comentou que estava difícil escolher algo bom. Porém, ocorreu-lhe identificar o único presidente que nunca errou: Tancredo Neves! Sim! O melhor era fácil: o mineiro de São João del-Rei. Ambas entraram nos seus veículos pensando: grande Tancredo! Parecia praga antiga: o melhor amor era aquele com quem não nos casamos ou com quem nunca vivemos juntos. Boa semana republicana para todo mundo!