Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Quando fiz 60, imaginei que poderia corrigir coisas antigas, como a caligrafia


A maturidade permite enfrentar – e corrigir – eventuais lacunas de conhecimento, que podem ser como uma nova alfabetização

Por Leandro Karnal

Há frases que revelam a idade. “Tenho letra ruim” é um exemplo. Por quê? Os jovens não pensam mais na letra. A digitação é com os polegares. Trazer uma caneta consigo já indica uma preocupação datada.

Minha geração foi alfabetizada com letra de fôrma, ou, como chamávamos, script. Depois do domínio do alfabeto e dos fonemas básicos, fazíamos a transição para a escrita cursiva, mais rápida e elegante. Por motivos variados, muitos adultos perfeitamente alfabetizados mantiveram uma letra feia, irregular e desagradável ao leitor. Caligrafia deriva do conceito grego de belo (kállos) e da palavra escrita.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Há vários defeitos no campo da escrita manual. Meu pai tinha uma letra muito regular, nem sempre fácil de entender. Outros (o grosso da fama recai sobre os médicos) possuem uma letra que necessita da interpretação de um farmacêutico profissional e experiente. Minha letra é relativamente legível, mas infantil, como se a alfabetização tivesse sido concluída há um mês. Sempre me ressenti da feiura da minha escrita no quadro-verde, ironizada por alunos ou quando causava espanto a pessoas em uma fila de autógrafos. Entregava a palavra ou frase curta ao gentil leitor e imaginava que a pessoa supunha: “Esta é a grafia de um autor profissional que lê e escreve o dia todo há décadas?” Sim, sempre foi. Eu já pensava que seria algo a levar ao dia da minha cremação.

Quando fiz sessenta anos, imaginei que eu poderia corrigir coisas antigas. A primeira foi a natação. Sempre nadei, mas nunca tive uma aula. Ao fazer as primeiras, vi a diferença enorme entre movimentar-me na água e saber, tecnicamente, nadar. Continuo aprendendo com o professor Tomaz Augusto de Oliveira. Com a paciência extrema e competência do mestre, avanço a braçadas de morsa.

Outra área que pensei em resolver foi... a caligrafia. Conforme narrei, sempre tive a letra ruim, piorada pelo desuso da caneta na era dos celulares. Consegui algo importante: um excelente professor, Antônio de Franco. Sabia que a escola De Franco tinha mais de cem anos. Vi que a grife centenária correspondia a um programa de qualidade. Joguei-me ao desafio.

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Descobertas variadas. Sempre peguei a caneta de forma tosca, cansando a mão e o braço. Tive tantos professores no então ensino primário, mas não me lembro de alguém corrigindo sobre como pegar um instrumento de escrita. Comecei aprendendo o gesto simples de segurar uma caneta. Passo seguinte: o ângulo da folha não seria reto à minha frente, mas inclinado para a esquerda. Sou destro; a folha giraria bastante para conseguir o efeito desejado.

O professor pediu que eu copiasse um teste. Avaliou minha letra. Eu misturava cursiva e de fôrma. A caneta era forçada no papel. Faltava quase tudo. Precisávamos limpar um terreno para erigir uma nova área de conhecimento. Assim, começamos a aventura de escrever a bela e elegante letra chamada “comercial inglesa”.

Foi como uma nova alfabetização. Eu precisava reaprender a escrever. Fazendo os exercícios do método absolutamente eficaz, tive de pensar em cada curva nova ao fazer vogais, como a letra A e a letra O. A consoante Z contrariava tudo o que eu sabia. O singelo U deveria descer sua curva inferior até a base da linha. Foi árduo!

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O passo seguinte foi mais desafiador. As letras maiúsculas eram o Graal com o qual o cavaleiro calígrafo deveria purificar-se para chegar ao direito de tocar no belo. Confesso que a quantidade de curvas e voltas de uma maiúscula comercial inglesa superava no meu cérebro os desafios de um Champollion decifrando a escrita egípcia. Diante de mim, uma nova Pedra de Roseta determinava sentidos desconhecidos.

Lembrei-me de que países pioneiros no uso de telas para alfabetização, como a Finlândia, estavam voltando ao lápis e papel. O motivo? A motricidade fina da escrita aumenta a consciência. Desenhar uma letra pode estimular a inteligência e aumentar o foco. Os exercícios da escola De Franco que eu faço, quase diariamente, estão se tornando uma escola de meditação prática, de foco e de ênfase na disciplina manual-cerebral de prestar atenção sobre cada gesto.

Passados vários meses de treinos, avancei um pouco. Se mais não o fiz, deve-se ao fato de que estou não apenas aprendendo, mas tendo de me esquecer do que eu julgava saber. Um hábito pode ser produzido pela disciplina e pela técnica. A inspiração e a transpiração dialogam. Avanço.

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A lição que tomo na maturidade é sobre a perfectibilidade. Costumo reclamar sobre lacunas do meu conhecimento. Passei a enfrentá-las. Nadar e ter letra bonita foram dois degraus de uma escada longa. Nunca serei perfeito, contudo posso transformar aquilo que me incomoda. Desejo ainda aprender a desenhar e a dançar. Gostaria de melhorar meu saber matemático, estruturalmente pífio. Gosto, nesta fase, de pensar que não estou mais no garimpo árduo; posso me dedicar à ourivesaria de ser melhor. Essa tem sido minha esperança no outono-inverno da vida.

Há frases que revelam a idade. “Tenho letra ruim” é um exemplo. Por quê? Os jovens não pensam mais na letra. A digitação é com os polegares. Trazer uma caneta consigo já indica uma preocupação datada.

Minha geração foi alfabetizada com letra de fôrma, ou, como chamávamos, script. Depois do domínio do alfabeto e dos fonemas básicos, fazíamos a transição para a escrita cursiva, mais rápida e elegante. Por motivos variados, muitos adultos perfeitamente alfabetizados mantiveram uma letra feia, irregular e desagradável ao leitor. Caligrafia deriva do conceito grego de belo (kállos) e da palavra escrita.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Há vários defeitos no campo da escrita manual. Meu pai tinha uma letra muito regular, nem sempre fácil de entender. Outros (o grosso da fama recai sobre os médicos) possuem uma letra que necessita da interpretação de um farmacêutico profissional e experiente. Minha letra é relativamente legível, mas infantil, como se a alfabetização tivesse sido concluída há um mês. Sempre me ressenti da feiura da minha escrita no quadro-verde, ironizada por alunos ou quando causava espanto a pessoas em uma fila de autógrafos. Entregava a palavra ou frase curta ao gentil leitor e imaginava que a pessoa supunha: “Esta é a grafia de um autor profissional que lê e escreve o dia todo há décadas?” Sim, sempre foi. Eu já pensava que seria algo a levar ao dia da minha cremação.

Quando fiz sessenta anos, imaginei que eu poderia corrigir coisas antigas. A primeira foi a natação. Sempre nadei, mas nunca tive uma aula. Ao fazer as primeiras, vi a diferença enorme entre movimentar-me na água e saber, tecnicamente, nadar. Continuo aprendendo com o professor Tomaz Augusto de Oliveira. Com a paciência extrema e competência do mestre, avanço a braçadas de morsa.

Outra área que pensei em resolver foi... a caligrafia. Conforme narrei, sempre tive a letra ruim, piorada pelo desuso da caneta na era dos celulares. Consegui algo importante: um excelente professor, Antônio de Franco. Sabia que a escola De Franco tinha mais de cem anos. Vi que a grife centenária correspondia a um programa de qualidade. Joguei-me ao desafio.

Descobertas variadas. Sempre peguei a caneta de forma tosca, cansando a mão e o braço. Tive tantos professores no então ensino primário, mas não me lembro de alguém corrigindo sobre como pegar um instrumento de escrita. Comecei aprendendo o gesto simples de segurar uma caneta. Passo seguinte: o ângulo da folha não seria reto à minha frente, mas inclinado para a esquerda. Sou destro; a folha giraria bastante para conseguir o efeito desejado.

O professor pediu que eu copiasse um teste. Avaliou minha letra. Eu misturava cursiva e de fôrma. A caneta era forçada no papel. Faltava quase tudo. Precisávamos limpar um terreno para erigir uma nova área de conhecimento. Assim, começamos a aventura de escrever a bela e elegante letra chamada “comercial inglesa”.

Foi como uma nova alfabetização. Eu precisava reaprender a escrever. Fazendo os exercícios do método absolutamente eficaz, tive de pensar em cada curva nova ao fazer vogais, como a letra A e a letra O. A consoante Z contrariava tudo o que eu sabia. O singelo U deveria descer sua curva inferior até a base da linha. Foi árduo!

O passo seguinte foi mais desafiador. As letras maiúsculas eram o Graal com o qual o cavaleiro calígrafo deveria purificar-se para chegar ao direito de tocar no belo. Confesso que a quantidade de curvas e voltas de uma maiúscula comercial inglesa superava no meu cérebro os desafios de um Champollion decifrando a escrita egípcia. Diante de mim, uma nova Pedra de Roseta determinava sentidos desconhecidos.

Lembrei-me de que países pioneiros no uso de telas para alfabetização, como a Finlândia, estavam voltando ao lápis e papel. O motivo? A motricidade fina da escrita aumenta a consciência. Desenhar uma letra pode estimular a inteligência e aumentar o foco. Os exercícios da escola De Franco que eu faço, quase diariamente, estão se tornando uma escola de meditação prática, de foco e de ênfase na disciplina manual-cerebral de prestar atenção sobre cada gesto.

Passados vários meses de treinos, avancei um pouco. Se mais não o fiz, deve-se ao fato de que estou não apenas aprendendo, mas tendo de me esquecer do que eu julgava saber. Um hábito pode ser produzido pela disciplina e pela técnica. A inspiração e a transpiração dialogam. Avanço.

A lição que tomo na maturidade é sobre a perfectibilidade. Costumo reclamar sobre lacunas do meu conhecimento. Passei a enfrentá-las. Nadar e ter letra bonita foram dois degraus de uma escada longa. Nunca serei perfeito, contudo posso transformar aquilo que me incomoda. Desejo ainda aprender a desenhar e a dançar. Gostaria de melhorar meu saber matemático, estruturalmente pífio. Gosto, nesta fase, de pensar que não estou mais no garimpo árduo; posso me dedicar à ourivesaria de ser melhor. Essa tem sido minha esperança no outono-inverno da vida.

Há frases que revelam a idade. “Tenho letra ruim” é um exemplo. Por quê? Os jovens não pensam mais na letra. A digitação é com os polegares. Trazer uma caneta consigo já indica uma preocupação datada.

Minha geração foi alfabetizada com letra de fôrma, ou, como chamávamos, script. Depois do domínio do alfabeto e dos fonemas básicos, fazíamos a transição para a escrita cursiva, mais rápida e elegante. Por motivos variados, muitos adultos perfeitamente alfabetizados mantiveram uma letra feia, irregular e desagradável ao leitor. Caligrafia deriva do conceito grego de belo (kállos) e da palavra escrita.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Há vários defeitos no campo da escrita manual. Meu pai tinha uma letra muito regular, nem sempre fácil de entender. Outros (o grosso da fama recai sobre os médicos) possuem uma letra que necessita da interpretação de um farmacêutico profissional e experiente. Minha letra é relativamente legível, mas infantil, como se a alfabetização tivesse sido concluída há um mês. Sempre me ressenti da feiura da minha escrita no quadro-verde, ironizada por alunos ou quando causava espanto a pessoas em uma fila de autógrafos. Entregava a palavra ou frase curta ao gentil leitor e imaginava que a pessoa supunha: “Esta é a grafia de um autor profissional que lê e escreve o dia todo há décadas?” Sim, sempre foi. Eu já pensava que seria algo a levar ao dia da minha cremação.

Quando fiz sessenta anos, imaginei que eu poderia corrigir coisas antigas. A primeira foi a natação. Sempre nadei, mas nunca tive uma aula. Ao fazer as primeiras, vi a diferença enorme entre movimentar-me na água e saber, tecnicamente, nadar. Continuo aprendendo com o professor Tomaz Augusto de Oliveira. Com a paciência extrema e competência do mestre, avanço a braçadas de morsa.

Outra área que pensei em resolver foi... a caligrafia. Conforme narrei, sempre tive a letra ruim, piorada pelo desuso da caneta na era dos celulares. Consegui algo importante: um excelente professor, Antônio de Franco. Sabia que a escola De Franco tinha mais de cem anos. Vi que a grife centenária correspondia a um programa de qualidade. Joguei-me ao desafio.

Descobertas variadas. Sempre peguei a caneta de forma tosca, cansando a mão e o braço. Tive tantos professores no então ensino primário, mas não me lembro de alguém corrigindo sobre como pegar um instrumento de escrita. Comecei aprendendo o gesto simples de segurar uma caneta. Passo seguinte: o ângulo da folha não seria reto à minha frente, mas inclinado para a esquerda. Sou destro; a folha giraria bastante para conseguir o efeito desejado.

O professor pediu que eu copiasse um teste. Avaliou minha letra. Eu misturava cursiva e de fôrma. A caneta era forçada no papel. Faltava quase tudo. Precisávamos limpar um terreno para erigir uma nova área de conhecimento. Assim, começamos a aventura de escrever a bela e elegante letra chamada “comercial inglesa”.

Foi como uma nova alfabetização. Eu precisava reaprender a escrever. Fazendo os exercícios do método absolutamente eficaz, tive de pensar em cada curva nova ao fazer vogais, como a letra A e a letra O. A consoante Z contrariava tudo o que eu sabia. O singelo U deveria descer sua curva inferior até a base da linha. Foi árduo!

O passo seguinte foi mais desafiador. As letras maiúsculas eram o Graal com o qual o cavaleiro calígrafo deveria purificar-se para chegar ao direito de tocar no belo. Confesso que a quantidade de curvas e voltas de uma maiúscula comercial inglesa superava no meu cérebro os desafios de um Champollion decifrando a escrita egípcia. Diante de mim, uma nova Pedra de Roseta determinava sentidos desconhecidos.

Lembrei-me de que países pioneiros no uso de telas para alfabetização, como a Finlândia, estavam voltando ao lápis e papel. O motivo? A motricidade fina da escrita aumenta a consciência. Desenhar uma letra pode estimular a inteligência e aumentar o foco. Os exercícios da escola De Franco que eu faço, quase diariamente, estão se tornando uma escola de meditação prática, de foco e de ênfase na disciplina manual-cerebral de prestar atenção sobre cada gesto.

Passados vários meses de treinos, avancei um pouco. Se mais não o fiz, deve-se ao fato de que estou não apenas aprendendo, mas tendo de me esquecer do que eu julgava saber. Um hábito pode ser produzido pela disciplina e pela técnica. A inspiração e a transpiração dialogam. Avanço.

A lição que tomo na maturidade é sobre a perfectibilidade. Costumo reclamar sobre lacunas do meu conhecimento. Passei a enfrentá-las. Nadar e ter letra bonita foram dois degraus de uma escada longa. Nunca serei perfeito, contudo posso transformar aquilo que me incomoda. Desejo ainda aprender a desenhar e a dançar. Gostaria de melhorar meu saber matemático, estruturalmente pífio. Gosto, nesta fase, de pensar que não estou mais no garimpo árduo; posso me dedicar à ourivesaria de ser melhor. Essa tem sido minha esperança no outono-inverno da vida.

Há frases que revelam a idade. “Tenho letra ruim” é um exemplo. Por quê? Os jovens não pensam mais na letra. A digitação é com os polegares. Trazer uma caneta consigo já indica uma preocupação datada.

Minha geração foi alfabetizada com letra de fôrma, ou, como chamávamos, script. Depois do domínio do alfabeto e dos fonemas básicos, fazíamos a transição para a escrita cursiva, mais rápida e elegante. Por motivos variados, muitos adultos perfeitamente alfabetizados mantiveram uma letra feia, irregular e desagradável ao leitor. Caligrafia deriva do conceito grego de belo (kállos) e da palavra escrita.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Há vários defeitos no campo da escrita manual. Meu pai tinha uma letra muito regular, nem sempre fácil de entender. Outros (o grosso da fama recai sobre os médicos) possuem uma letra que necessita da interpretação de um farmacêutico profissional e experiente. Minha letra é relativamente legível, mas infantil, como se a alfabetização tivesse sido concluída há um mês. Sempre me ressenti da feiura da minha escrita no quadro-verde, ironizada por alunos ou quando causava espanto a pessoas em uma fila de autógrafos. Entregava a palavra ou frase curta ao gentil leitor e imaginava que a pessoa supunha: “Esta é a grafia de um autor profissional que lê e escreve o dia todo há décadas?” Sim, sempre foi. Eu já pensava que seria algo a levar ao dia da minha cremação.

Quando fiz sessenta anos, imaginei que eu poderia corrigir coisas antigas. A primeira foi a natação. Sempre nadei, mas nunca tive uma aula. Ao fazer as primeiras, vi a diferença enorme entre movimentar-me na água e saber, tecnicamente, nadar. Continuo aprendendo com o professor Tomaz Augusto de Oliveira. Com a paciência extrema e competência do mestre, avanço a braçadas de morsa.

Outra área que pensei em resolver foi... a caligrafia. Conforme narrei, sempre tive a letra ruim, piorada pelo desuso da caneta na era dos celulares. Consegui algo importante: um excelente professor, Antônio de Franco. Sabia que a escola De Franco tinha mais de cem anos. Vi que a grife centenária correspondia a um programa de qualidade. Joguei-me ao desafio.

Descobertas variadas. Sempre peguei a caneta de forma tosca, cansando a mão e o braço. Tive tantos professores no então ensino primário, mas não me lembro de alguém corrigindo sobre como pegar um instrumento de escrita. Comecei aprendendo o gesto simples de segurar uma caneta. Passo seguinte: o ângulo da folha não seria reto à minha frente, mas inclinado para a esquerda. Sou destro; a folha giraria bastante para conseguir o efeito desejado.

O professor pediu que eu copiasse um teste. Avaliou minha letra. Eu misturava cursiva e de fôrma. A caneta era forçada no papel. Faltava quase tudo. Precisávamos limpar um terreno para erigir uma nova área de conhecimento. Assim, começamos a aventura de escrever a bela e elegante letra chamada “comercial inglesa”.

Foi como uma nova alfabetização. Eu precisava reaprender a escrever. Fazendo os exercícios do método absolutamente eficaz, tive de pensar em cada curva nova ao fazer vogais, como a letra A e a letra O. A consoante Z contrariava tudo o que eu sabia. O singelo U deveria descer sua curva inferior até a base da linha. Foi árduo!

O passo seguinte foi mais desafiador. As letras maiúsculas eram o Graal com o qual o cavaleiro calígrafo deveria purificar-se para chegar ao direito de tocar no belo. Confesso que a quantidade de curvas e voltas de uma maiúscula comercial inglesa superava no meu cérebro os desafios de um Champollion decifrando a escrita egípcia. Diante de mim, uma nova Pedra de Roseta determinava sentidos desconhecidos.

Lembrei-me de que países pioneiros no uso de telas para alfabetização, como a Finlândia, estavam voltando ao lápis e papel. O motivo? A motricidade fina da escrita aumenta a consciência. Desenhar uma letra pode estimular a inteligência e aumentar o foco. Os exercícios da escola De Franco que eu faço, quase diariamente, estão se tornando uma escola de meditação prática, de foco e de ênfase na disciplina manual-cerebral de prestar atenção sobre cada gesto.

Passados vários meses de treinos, avancei um pouco. Se mais não o fiz, deve-se ao fato de que estou não apenas aprendendo, mas tendo de me esquecer do que eu julgava saber. Um hábito pode ser produzido pela disciplina e pela técnica. A inspiração e a transpiração dialogam. Avanço.

A lição que tomo na maturidade é sobre a perfectibilidade. Costumo reclamar sobre lacunas do meu conhecimento. Passei a enfrentá-las. Nadar e ter letra bonita foram dois degraus de uma escada longa. Nunca serei perfeito, contudo posso transformar aquilo que me incomoda. Desejo ainda aprender a desenhar e a dançar. Gostaria de melhorar meu saber matemático, estruturalmente pífio. Gosto, nesta fase, de pensar que não estou mais no garimpo árduo; posso me dedicar à ourivesaria de ser melhor. Essa tem sido minha esperança no outono-inverno da vida.

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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