Lá estão eles: jovens, idealistas, insatisfeitos com um sistema opressivo e corrupto. Querem um mundo novo, com ideias de justiça, de igualdade e de fidelidade a uma vida autêntica. Que lindo o ardor de mudança da juventude! Que beleza acompanhar a coerência ética de alguém que não se acomoda. Sempre fui feliz em testemunhar a marcha demolidora do novo. Porém...
Quem ataca parece ter uma ligação magnética com o Velho Mundo que pretende desconstruir. É muito frequente que, em pouco tempo, o crítico de ontem ocupe o mesmo lugar, a mesma fonte de dinheiro e de poder daquilo que inflamou seu espírito combativo. A Igreja Cristã foi perseguida por um Império Romano poderoso e violento. No poder, imitou nomes, cargos, rendas e autoritarismos imperiais. Os ex-mártires, vítimas das arenas romanas, logo passaram para a arquibancada, torcendo para o extermínio dos pagãos ou hereges cristãos.
Rica e poderosa, a hierarquia católica viu crescerem as críticas contra ela, no fim da Idade Média e início da Moderna. O que diziam Lutero, Calvino, Zwinglio e outros tantos? “Chega de tanto dinheiro e pouca atenção ao Evangelho! Basta de explorar a boa-fé das almas simples, vendendo-lhes indulgências e relíquias falsificadas. Vamos pensar no texto bíblico e na salvação das almas mais do que no poder!” Conseguiram, pois uma parte grande da Europa setentrional aderiu ao programa. Novos grupos reformados foram surgindo, nos séculos seguintes. Eclodiram pentecostais e neopentecostais. Velhos hábitos retornaram: elites clericais ricas cobrando dízimos e vendendo formas alegóricas de indulgências.
O tempo passa, os reformados se incomodam com uma música. A cantora gospel Aymeê Rocha fez a faixa Evangelho de Fariseus. Ela usou o que há de mais tradicional na Bíblia: Jesus bate firme contra os religiosos que gritam o nome de Deus, mas são incapazes de solidariedade. Ela não “fulanizou”, apenas jogou o sal da mensagem, mas... algumas feridas arderam.
Os reformadores do século 16 denunciavam que a Igreja Católica só se preocupava com a riqueza do clero. Diziam que Roma explorava o medo e a pobreza das massas. Será que chegou o tempo de um reformador das religiões reformadas?
Avancemos para a política. Os reis do Antigo Regime eram insensíveis ao sofrimento do povo? Exerciam poder despótico? Vamos expulsá-los das suas torres de marfim e, embasados no Iluminismo, cantemos a Marselhesa! “Às armas, cidadãos!”, “O dia da glória chegou!”, “Liberdade, igualdade e fraternidade”. Passados meses dos gritos de guerra contra a violência dos monarcas, um dia de guilhotina na França matava mais gente do que todo o reinado de Luís XVI. A máquina decapitadora agia em nome do povo, mas não do Absolutismo de Direito Divino. Lenin e Stalin foram piores do que o czar Nicolau II. O que escrevi não é uma negação da história, é o contrário disso. A importância de Robespierre ou de Stalin é gigantesca. Mudaram o rumo da França e da URSS. Meu ponto é outro: seus métodos não foram a superação da desigualdade e do despotismo, mas apenas uma mudança de justificativa. Nenhum romano seguidor do paganismo imperial imaginaria um tribunal tal qual a Inquisição. O último imperador russo ficou chocado com o “domingo sangrento” (janeiro de 1905). Nicolau descreveu aquelas mortes como “dolorosas”, mesmo tendo sido feitas por sua guarda. Morreram entre 150 e 200 pessoas. Esse número seria superado, em alguns minutos, perante a grande fome da Ucrânia, no regime stalinista (Holodomor, 1932-33). O regime da Dinastia Romanov era violento, autoritário e opressivo. Foi derrotado pelos bolcheviques, que engendraram mortes em grau mais elevado.
Revolucionários tornaram-se ditadores; reformadores entregaram-se à simonia; jovens hippies transformaram-se em velhos reacionários. O mundo fluiu no rio de Heráclito – quem gritava slogans a favor da justiça passou a habitar o palácio que atacava e a dominar os cofres que, agora, o beneficiavam. Os porcos, de acordo com Orwell, derrubaram o fazendeiro – para dormirem, com lençóis, na casa grande.
Volto a uma ideia do segundo parágrafo: “Quem ataca parece ter uma ligação magnética com o Velho Mundo que pretende demolir”. Haverá sempre um depravado atrás do moralista e um autoritário travestido, por enquanto, de democrata? Seria um bom exame psicanalítico para purificar as bandeiras revolucionárias e separar, com clareza, o que é luta pela justiça daquilo que seria ressentimento invejoso. Sempre penso em Jean-Bédel Bokassa (1921-1996): em determinado momento, ele transformou seu paupérrimo país (República Centro-Africana) em um império, usando trajes copiados de Napoleão Bonaparte. A coroação usou a mesma francesa e histórica data: 4 de dezembro. Uma aventura de milhões de dólares que colaborou com a queda violenta do seu governo. A “tragédia” (Napoleão I) perdeu o controle sobre Paris. Terminou seus dias exilado na Ilha de Santa Helena, mais perto da África. A “farsa” (Bokassa I) perdeu seu país africano e foi para Paris... O imperador de opereta ilustra o que tentei descrever ao longo de toda a crônica: por vezes, combatemos apenas o que desejamos. Continua com esperança? l