Tive uma mãe inteiramente dedicada ao bem-estar da família. Nenhum de nós, os filhos, duvidou de que ela colocava toda a sua energia no cuidado. Éramos prioridade e sabíamos disso. Minha mãe não era um ser humano perfeito. Semelhante a muitas pessoas da geração dela, faltou-lhe um toque de psicanálise para que se conhecesse mais e sofresse menos com o mundo. Freud gravitou em torno da memória materna. Amália Freud, que eu saiba, nunca se deitou no divã do filho e, talvez, jamais tenha saído do consultório dele, como fantasma onipresente.
Volto ao tema. É fácil elogiar, no Dia das Mães, Dona Jacyr Karnal. Fui amado de forma integral. Tendo falecido em 2017, a memória ficou ainda mais bonita. Mesmo imperfeita, foi a mãe maravilhosa que me emociona quase diariamente. Se eu fosse ator e precisasse chorar em uma cena, teria o recurso de pensar forte na minha despedida dela na UTI. Há lembranças emotivas de felicidade também. São muitas. Minha mãe definiu parte do que sou e sou grato por ter conhecido um amor desse porte.
Mães, em geral, são abnegadas. A figura feminina materna é algo intenso. Um padre, em um sermão da minha juventude, destacou que até Deus quis a experiência de ter uma mãe. Elas são seres maravilhosos, quase sempre.
Vou a um outro ponto. Há matriarcas abandonadas em asilos; os filhos delas nunca as visitam. Há as solitárias em festas importantes, como no Natal. A primeira leitura seria: “Filhos ingratos! Família cruel que recebeu tanto, mas deu nada em troca”. Isso pode ser verdade. Muitas pessoas são incapazes do sentimento da gratidão ou do simples respeito a quem as gerou. Apesar disso, também conheci mães tóxicas e invasivas. Fui testemunha de genitoras hipercríticas e desrespeitosas em relação à individualidade dos filhos. Ser mãe é uma vocação específica, pois não basta ser fértil para isso. Úteros produtivos são mais frequentes do que vocações maternas genuínas.
Como penso nessas coisas? Conheci uma senhora portuguesa com certa aspiração de nobreza. Era a sogra da irmã de uma amiga minha. Parece que, na juventude, ficou mais em festas do que ao lado do leito febril dos filhos. Envelhecida e sem dinheiro, dependeu da caridade daqueles a quem dera pouca atenção. Como idiossincrasia curiosa, sempre mentiu a idade (quase dez anos a menos). Antes de falecer, pediu que registrassem no túmulo a data preferida por sua vaidade, não a dos documentos. Surpresa: os filhos esculpiram na lápide a idade real, última vingança contra a mãe omissa.
A vingança da prole pode ser julgada como mesquinha. É difícil calçar os sapatos alheios. Havia muita dor nas memórias daqueles filhos. Mesmo que o perdão seja um bom exercício psíquico e moral, há mães que enfrentam o abandono, já que construíram tudo para que isso ocorresse. Há filhos ingratos e há filhos magoados. Há mães dedicadas que foram desamparadas, malgrado o esforço. Há mães ruins, que colhem as “vinhas da ira” cultivadas por décadas. A dor do desamparo da progênie é muito forte.
Adaptando uma ideia que li em Paulo Freire sobre professores, toda mãe é marcante. Toda genitora cava um sulco insuperável na biografia de cada rebento. Quando é amorosa, como foi a minha (e a sua, querida leitora e estimado leitor), a orfandade faz um vazio intenso que nunca desaparece. Quando é rancorosa, tóxica ou ausente (talvez o pior defeito na memória dos filhos), a raiva invade tudo. Se a pessoa responsável por amar alguém não conseguiu ou não desejou isso, cresce-se com um quase “defeito de fábrica”. “Nem minha mãe me quis” é algo insuperável que causa questões psíquicas enormes.
Uma pedra fundamental no alicerce da minha construção biográfica: eis Dona Jacyr Karnal. Há quem viva um vazio no mesmo muro, uma dor sem precedentes disfarçada de raiva e ressentimento: a memória da mãe ausente. Todas as mães são marcantes, inclusive as ruins. Parece que o erro materno pode ser, como no ato penitencial da missa, por “pensamentos e palavras, atos e omissões”.
Talvez seja a melhor defesa desse amor. O filho que olha a lápide e chora, ao lembrar-se dos afetos vividos no regaço materno; aquele que sorri, vingativo, ao ver que corrigiu uma data que incomodaria aquela que ali jaz: ambos dialogam com a mãe para sempre, a desejada e a rejeitada.
Não julgo quem tem chagas que nunca se curam. Não posso sequer conceber a raiva e o vazio que geram tudo isso. Apenas acho que superar uma memória ruim é um benefício para aquele que recorda. O ódio contra uma mãe falecida não altera aquela que partiu, porém envenena o que fica. Perdoar é fácil para quem foi amado; desafiador para os outros. Minha esperança é que entendamos – cada um faz o que faz no limite da sua possibilidade de consciência. Ao menos, desejo que nós sejamos ainda melhores do que nossas mães foram. Feliz Dia das Mães!