Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Tortura em praça aberta parece barbárie, porém, dentro de presídios deixa de ser um incômodo


Um novo sistema disciplinar se amplia por escolas, hospitais e presídios, para atingirmos nossa racionalidade contemporânea sempre chocada com a execução de Damiens e produtora tranquila de Carandirus. Esperança de dias menos difíceis?

Por Leandro Karnal

A ascensão do poder real andou de mãos dadas com a sofisticação da etiqueta da Corte e o aumento da pompa. Outro indício do zênite monárquico: o regicídio vira um crime imenso, equiparado ao parricídio, pois o rei seria o pai da nação.

Em 1610, François Ravaillac matou Henrique IV da França a facadas. A punição foi severa: ele foi preso à roda, teve os ossos quebrados com golpes de barras de ferro e cortes feitos em seu corpo. Nas feridas, derramaram-se chumbo fervente, vinagre e sal. Cavalos esquartejaram o corpo, que foi queimado, por fim, com as cinzas atiradas ao vento.

Os familiares também sofreram punições. O nome Ravaillac foi proibido em todo o reino. O local da execução pública era a antiga Place de Grève, em frente ao Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris.

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Vamos descer mais ao Sul e avançar no tempo. Na noite de 3 de setembro de 1758, o rei português D. José I regressava de uma visita à sua amante. A Corte vivia em barracas luxuosas na Ajuda depois do terremoto de 1755. Três homens dispararam contra a carruagem. Presos e torturados, os autores dos disparos confessaram que agiam a mando da tradicional família de nobres, os Távoras. O processo também implicou o duque de Aveiro. Ao saber do incidente, o astuto ministro Marquês de Pombal manteve sigilo, interrogou os assassinos e executou-os rapidamente. Logo em seguida, sem que o crime viesse a público ainda, prendeu os nobres. O uso de extrema violência contra duques e marqueses era inédito. Tradicionalmente, aristocratas eram decapitados, sem uso de tortura.

Em janeiro de 1759, houve a execução e suplício público dos indiciados. A punição de famílias de alta estirpe era uma reafirmação do poder indiscutível da Coroa. Agradecida, a Casa de Bragança deu a Sebastião José de Carvalho e Melo o título de Conde de Oeiras e, por fim, Marquês de Pombal. O resultado da tentativa de regicídio que apenas feriu levemente o braço real? O ministro eliminou seus inimigos e a monarquia portuguesa centralizou-se ainda mais, abrindo caminho para a extinção da Companhia de Jesus (houve um jesuíta implicado no crime). A inconfidência dos Távoras foi útil ao projeto político da Coroa e à aspiração despótica de Pombal.

Voltemos para o solo francês. No dia cinco de janeiro de 1757, Luís XV estava na sua carruagem, saindo de Versalhes. Um homem chamado Robert-François Damiens avançou sobre o monarca com uma faca. Sendo inverno e estando o soberano com muitas camadas de veludo e peles, o ferimento foi superficial, e o criminoso imobilizado sem resistência. Sua tortura teve os mesmos requintes de crueldade pública e ocorreu na mesma praça que viu a morte de Ravaillac. Alicates quentes, cortes, derramando-se chumbo e enxofre fervente nas feridas. Ao final, cavalos deveriam esquartejá-lo. Foram usados seis animais sem que as juntas se soltassem. Por fim, o carrasco fez cortes nas pernas e braços daquele homem; o tronco ficou destituído de membros. O que restou, ainda em movimento, foi atirado na fogueira. No processo, aparecem as palavras regicídio e parricídio. O rei Luís XV, apelidado como “O Bem-Amado” (Bien-Aimé), era considerado o “pai da França”. Dizem que, vendo os instrumentos de tortura à sua frente, sabendo que sofreria em grau extremo durante horas, Damiens teria dito ao carrasco Sanson: “O dia será difícil” (La journée sera rude)... Eufemismo tocante.

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O mundo tinha mudado em um século. O rei era odiado. Enquanto isso, o Iluminismo avançava. A execução violenta de Damiens encontrou críticos e abriu caminho para a busca de métodos mais “humanos” de morte. Cresceu a adesão aos escritos do dr. Joseph-Ignace Guillotin, que considerava a decapitação mecânica um imenso avanço da civilização e da justiça. Depois, surgiu a lenda urbana de que o próprio Guillotin tinha sido executado pela ferramenta que defendera. É mentira... O médico morreu em 1814 devido a causas naturais.

O primeiro guilhotinado com o modelo que identificamos foi um ladrão, em 1792 (Nicolas Pelletier). No Terror, a máquina não descansou. Em 1939, houve a última execução pública. A guilhotina foi utilizada dentro dos muros de uma prisão pela última vez em... 1977. O condenado era um imigrante da Tunísia, Hamida Djandoubi. A pena de morte foi abolida na França em 1981.

A sensibilidade pública à violência passa a sofrer uma duplicidade hipócrita. Tortura em praça aberta parece barbárie. Porém, dentro de presídios ou de campos de concentração, deixa de ser um fato incômodo. Foucault analisou nossa modificação sobre o crime. Está na obra seminal Vigiar e Punir (1975), sobre como saímos exatamente do suplício de Damiens para nossa concepção moderna. A lei era uma extensão do corpo do soberano, e Damiens sofre na carne a agressão ao rei. O Estado e outras sensibilidades necessitam de ordem e generalização... traduzimos novos valores nas prisões e nos trabalhos forçados mais do que no teatro da Place de Grève. Um novo sistema disciplinar se amplia por escolas, hospitais e presídios, para atingirmos nossa racionalidade contemporânea sempre chocada com a execução de Damiens e produtora tranquila de Carandirus. Esperança de dias menos difíceis?

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Robert François Damiens, que atacou Luiz XV com uma faca, diante dos juízes em Chatelet, em 2 de março de 1757 Foto: Musee de la Ville de Paris/Musee Carnavalet

A ascensão do poder real andou de mãos dadas com a sofisticação da etiqueta da Corte e o aumento da pompa. Outro indício do zênite monárquico: o regicídio vira um crime imenso, equiparado ao parricídio, pois o rei seria o pai da nação.

Em 1610, François Ravaillac matou Henrique IV da França a facadas. A punição foi severa: ele foi preso à roda, teve os ossos quebrados com golpes de barras de ferro e cortes feitos em seu corpo. Nas feridas, derramaram-se chumbo fervente, vinagre e sal. Cavalos esquartejaram o corpo, que foi queimado, por fim, com as cinzas atiradas ao vento.

Os familiares também sofreram punições. O nome Ravaillac foi proibido em todo o reino. O local da execução pública era a antiga Place de Grève, em frente ao Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris.

Vamos descer mais ao Sul e avançar no tempo. Na noite de 3 de setembro de 1758, o rei português D. José I regressava de uma visita à sua amante. A Corte vivia em barracas luxuosas na Ajuda depois do terremoto de 1755. Três homens dispararam contra a carruagem. Presos e torturados, os autores dos disparos confessaram que agiam a mando da tradicional família de nobres, os Távoras. O processo também implicou o duque de Aveiro. Ao saber do incidente, o astuto ministro Marquês de Pombal manteve sigilo, interrogou os assassinos e executou-os rapidamente. Logo em seguida, sem que o crime viesse a público ainda, prendeu os nobres. O uso de extrema violência contra duques e marqueses era inédito. Tradicionalmente, aristocratas eram decapitados, sem uso de tortura.

Em janeiro de 1759, houve a execução e suplício público dos indiciados. A punição de famílias de alta estirpe era uma reafirmação do poder indiscutível da Coroa. Agradecida, a Casa de Bragança deu a Sebastião José de Carvalho e Melo o título de Conde de Oeiras e, por fim, Marquês de Pombal. O resultado da tentativa de regicídio que apenas feriu levemente o braço real? O ministro eliminou seus inimigos e a monarquia portuguesa centralizou-se ainda mais, abrindo caminho para a extinção da Companhia de Jesus (houve um jesuíta implicado no crime). A inconfidência dos Távoras foi útil ao projeto político da Coroa e à aspiração despótica de Pombal.

Voltemos para o solo francês. No dia cinco de janeiro de 1757, Luís XV estava na sua carruagem, saindo de Versalhes. Um homem chamado Robert-François Damiens avançou sobre o monarca com uma faca. Sendo inverno e estando o soberano com muitas camadas de veludo e peles, o ferimento foi superficial, e o criminoso imobilizado sem resistência. Sua tortura teve os mesmos requintes de crueldade pública e ocorreu na mesma praça que viu a morte de Ravaillac. Alicates quentes, cortes, derramando-se chumbo e enxofre fervente nas feridas. Ao final, cavalos deveriam esquartejá-lo. Foram usados seis animais sem que as juntas se soltassem. Por fim, o carrasco fez cortes nas pernas e braços daquele homem; o tronco ficou destituído de membros. O que restou, ainda em movimento, foi atirado na fogueira. No processo, aparecem as palavras regicídio e parricídio. O rei Luís XV, apelidado como “O Bem-Amado” (Bien-Aimé), era considerado o “pai da França”. Dizem que, vendo os instrumentos de tortura à sua frente, sabendo que sofreria em grau extremo durante horas, Damiens teria dito ao carrasco Sanson: “O dia será difícil” (La journée sera rude)... Eufemismo tocante.

O mundo tinha mudado em um século. O rei era odiado. Enquanto isso, o Iluminismo avançava. A execução violenta de Damiens encontrou críticos e abriu caminho para a busca de métodos mais “humanos” de morte. Cresceu a adesão aos escritos do dr. Joseph-Ignace Guillotin, que considerava a decapitação mecânica um imenso avanço da civilização e da justiça. Depois, surgiu a lenda urbana de que o próprio Guillotin tinha sido executado pela ferramenta que defendera. É mentira... O médico morreu em 1814 devido a causas naturais.

O primeiro guilhotinado com o modelo que identificamos foi um ladrão, em 1792 (Nicolas Pelletier). No Terror, a máquina não descansou. Em 1939, houve a última execução pública. A guilhotina foi utilizada dentro dos muros de uma prisão pela última vez em... 1977. O condenado era um imigrante da Tunísia, Hamida Djandoubi. A pena de morte foi abolida na França em 1981.

A sensibilidade pública à violência passa a sofrer uma duplicidade hipócrita. Tortura em praça aberta parece barbárie. Porém, dentro de presídios ou de campos de concentração, deixa de ser um fato incômodo. Foucault analisou nossa modificação sobre o crime. Está na obra seminal Vigiar e Punir (1975), sobre como saímos exatamente do suplício de Damiens para nossa concepção moderna. A lei era uma extensão do corpo do soberano, e Damiens sofre na carne a agressão ao rei. O Estado e outras sensibilidades necessitam de ordem e generalização... traduzimos novos valores nas prisões e nos trabalhos forçados mais do que no teatro da Place de Grève. Um novo sistema disciplinar se amplia por escolas, hospitais e presídios, para atingirmos nossa racionalidade contemporânea sempre chocada com a execução de Damiens e produtora tranquila de Carandirus. Esperança de dias menos difíceis?

Robert François Damiens, que atacou Luiz XV com uma faca, diante dos juízes em Chatelet, em 2 de março de 1757 Foto: Musee de la Ville de Paris/Musee Carnavalet

A ascensão do poder real andou de mãos dadas com a sofisticação da etiqueta da Corte e o aumento da pompa. Outro indício do zênite monárquico: o regicídio vira um crime imenso, equiparado ao parricídio, pois o rei seria o pai da nação.

Em 1610, François Ravaillac matou Henrique IV da França a facadas. A punição foi severa: ele foi preso à roda, teve os ossos quebrados com golpes de barras de ferro e cortes feitos em seu corpo. Nas feridas, derramaram-se chumbo fervente, vinagre e sal. Cavalos esquartejaram o corpo, que foi queimado, por fim, com as cinzas atiradas ao vento.

Os familiares também sofreram punições. O nome Ravaillac foi proibido em todo o reino. O local da execução pública era a antiga Place de Grève, em frente ao Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris.

Vamos descer mais ao Sul e avançar no tempo. Na noite de 3 de setembro de 1758, o rei português D. José I regressava de uma visita à sua amante. A Corte vivia em barracas luxuosas na Ajuda depois do terremoto de 1755. Três homens dispararam contra a carruagem. Presos e torturados, os autores dos disparos confessaram que agiam a mando da tradicional família de nobres, os Távoras. O processo também implicou o duque de Aveiro. Ao saber do incidente, o astuto ministro Marquês de Pombal manteve sigilo, interrogou os assassinos e executou-os rapidamente. Logo em seguida, sem que o crime viesse a público ainda, prendeu os nobres. O uso de extrema violência contra duques e marqueses era inédito. Tradicionalmente, aristocratas eram decapitados, sem uso de tortura.

Em janeiro de 1759, houve a execução e suplício público dos indiciados. A punição de famílias de alta estirpe era uma reafirmação do poder indiscutível da Coroa. Agradecida, a Casa de Bragança deu a Sebastião José de Carvalho e Melo o título de Conde de Oeiras e, por fim, Marquês de Pombal. O resultado da tentativa de regicídio que apenas feriu levemente o braço real? O ministro eliminou seus inimigos e a monarquia portuguesa centralizou-se ainda mais, abrindo caminho para a extinção da Companhia de Jesus (houve um jesuíta implicado no crime). A inconfidência dos Távoras foi útil ao projeto político da Coroa e à aspiração despótica de Pombal.

Voltemos para o solo francês. No dia cinco de janeiro de 1757, Luís XV estava na sua carruagem, saindo de Versalhes. Um homem chamado Robert-François Damiens avançou sobre o monarca com uma faca. Sendo inverno e estando o soberano com muitas camadas de veludo e peles, o ferimento foi superficial, e o criminoso imobilizado sem resistência. Sua tortura teve os mesmos requintes de crueldade pública e ocorreu na mesma praça que viu a morte de Ravaillac. Alicates quentes, cortes, derramando-se chumbo e enxofre fervente nas feridas. Ao final, cavalos deveriam esquartejá-lo. Foram usados seis animais sem que as juntas se soltassem. Por fim, o carrasco fez cortes nas pernas e braços daquele homem; o tronco ficou destituído de membros. O que restou, ainda em movimento, foi atirado na fogueira. No processo, aparecem as palavras regicídio e parricídio. O rei Luís XV, apelidado como “O Bem-Amado” (Bien-Aimé), era considerado o “pai da França”. Dizem que, vendo os instrumentos de tortura à sua frente, sabendo que sofreria em grau extremo durante horas, Damiens teria dito ao carrasco Sanson: “O dia será difícil” (La journée sera rude)... Eufemismo tocante.

O mundo tinha mudado em um século. O rei era odiado. Enquanto isso, o Iluminismo avançava. A execução violenta de Damiens encontrou críticos e abriu caminho para a busca de métodos mais “humanos” de morte. Cresceu a adesão aos escritos do dr. Joseph-Ignace Guillotin, que considerava a decapitação mecânica um imenso avanço da civilização e da justiça. Depois, surgiu a lenda urbana de que o próprio Guillotin tinha sido executado pela ferramenta que defendera. É mentira... O médico morreu em 1814 devido a causas naturais.

O primeiro guilhotinado com o modelo que identificamos foi um ladrão, em 1792 (Nicolas Pelletier). No Terror, a máquina não descansou. Em 1939, houve a última execução pública. A guilhotina foi utilizada dentro dos muros de uma prisão pela última vez em... 1977. O condenado era um imigrante da Tunísia, Hamida Djandoubi. A pena de morte foi abolida na França em 1981.

A sensibilidade pública à violência passa a sofrer uma duplicidade hipócrita. Tortura em praça aberta parece barbárie. Porém, dentro de presídios ou de campos de concentração, deixa de ser um fato incômodo. Foucault analisou nossa modificação sobre o crime. Está na obra seminal Vigiar e Punir (1975), sobre como saímos exatamente do suplício de Damiens para nossa concepção moderna. A lei era uma extensão do corpo do soberano, e Damiens sofre na carne a agressão ao rei. O Estado e outras sensibilidades necessitam de ordem e generalização... traduzimos novos valores nas prisões e nos trabalhos forçados mais do que no teatro da Place de Grève. Um novo sistema disciplinar se amplia por escolas, hospitais e presídios, para atingirmos nossa racionalidade contemporânea sempre chocada com a execução de Damiens e produtora tranquila de Carandirus. Esperança de dias menos difíceis?

Robert François Damiens, que atacou Luiz XV com uma faca, diante dos juízes em Chatelet, em 2 de março de 1757 Foto: Musee de la Ville de Paris/Musee Carnavalet

A ascensão do poder real andou de mãos dadas com a sofisticação da etiqueta da Corte e o aumento da pompa. Outro indício do zênite monárquico: o regicídio vira um crime imenso, equiparado ao parricídio, pois o rei seria o pai da nação.

Em 1610, François Ravaillac matou Henrique IV da França a facadas. A punição foi severa: ele foi preso à roda, teve os ossos quebrados com golpes de barras de ferro e cortes feitos em seu corpo. Nas feridas, derramaram-se chumbo fervente, vinagre e sal. Cavalos esquartejaram o corpo, que foi queimado, por fim, com as cinzas atiradas ao vento.

Os familiares também sofreram punições. O nome Ravaillac foi proibido em todo o reino. O local da execução pública era a antiga Place de Grève, em frente ao Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris.

Vamos descer mais ao Sul e avançar no tempo. Na noite de 3 de setembro de 1758, o rei português D. José I regressava de uma visita à sua amante. A Corte vivia em barracas luxuosas na Ajuda depois do terremoto de 1755. Três homens dispararam contra a carruagem. Presos e torturados, os autores dos disparos confessaram que agiam a mando da tradicional família de nobres, os Távoras. O processo também implicou o duque de Aveiro. Ao saber do incidente, o astuto ministro Marquês de Pombal manteve sigilo, interrogou os assassinos e executou-os rapidamente. Logo em seguida, sem que o crime viesse a público ainda, prendeu os nobres. O uso de extrema violência contra duques e marqueses era inédito. Tradicionalmente, aristocratas eram decapitados, sem uso de tortura.

Em janeiro de 1759, houve a execução e suplício público dos indiciados. A punição de famílias de alta estirpe era uma reafirmação do poder indiscutível da Coroa. Agradecida, a Casa de Bragança deu a Sebastião José de Carvalho e Melo o título de Conde de Oeiras e, por fim, Marquês de Pombal. O resultado da tentativa de regicídio que apenas feriu levemente o braço real? O ministro eliminou seus inimigos e a monarquia portuguesa centralizou-se ainda mais, abrindo caminho para a extinção da Companhia de Jesus (houve um jesuíta implicado no crime). A inconfidência dos Távoras foi útil ao projeto político da Coroa e à aspiração despótica de Pombal.

Voltemos para o solo francês. No dia cinco de janeiro de 1757, Luís XV estava na sua carruagem, saindo de Versalhes. Um homem chamado Robert-François Damiens avançou sobre o monarca com uma faca. Sendo inverno e estando o soberano com muitas camadas de veludo e peles, o ferimento foi superficial, e o criminoso imobilizado sem resistência. Sua tortura teve os mesmos requintes de crueldade pública e ocorreu na mesma praça que viu a morte de Ravaillac. Alicates quentes, cortes, derramando-se chumbo e enxofre fervente nas feridas. Ao final, cavalos deveriam esquartejá-lo. Foram usados seis animais sem que as juntas se soltassem. Por fim, o carrasco fez cortes nas pernas e braços daquele homem; o tronco ficou destituído de membros. O que restou, ainda em movimento, foi atirado na fogueira. No processo, aparecem as palavras regicídio e parricídio. O rei Luís XV, apelidado como “O Bem-Amado” (Bien-Aimé), era considerado o “pai da França”. Dizem que, vendo os instrumentos de tortura à sua frente, sabendo que sofreria em grau extremo durante horas, Damiens teria dito ao carrasco Sanson: “O dia será difícil” (La journée sera rude)... Eufemismo tocante.

O mundo tinha mudado em um século. O rei era odiado. Enquanto isso, o Iluminismo avançava. A execução violenta de Damiens encontrou críticos e abriu caminho para a busca de métodos mais “humanos” de morte. Cresceu a adesão aos escritos do dr. Joseph-Ignace Guillotin, que considerava a decapitação mecânica um imenso avanço da civilização e da justiça. Depois, surgiu a lenda urbana de que o próprio Guillotin tinha sido executado pela ferramenta que defendera. É mentira... O médico morreu em 1814 devido a causas naturais.

O primeiro guilhotinado com o modelo que identificamos foi um ladrão, em 1792 (Nicolas Pelletier). No Terror, a máquina não descansou. Em 1939, houve a última execução pública. A guilhotina foi utilizada dentro dos muros de uma prisão pela última vez em... 1977. O condenado era um imigrante da Tunísia, Hamida Djandoubi. A pena de morte foi abolida na França em 1981.

A sensibilidade pública à violência passa a sofrer uma duplicidade hipócrita. Tortura em praça aberta parece barbárie. Porém, dentro de presídios ou de campos de concentração, deixa de ser um fato incômodo. Foucault analisou nossa modificação sobre o crime. Está na obra seminal Vigiar e Punir (1975), sobre como saímos exatamente do suplício de Damiens para nossa concepção moderna. A lei era uma extensão do corpo do soberano, e Damiens sofre na carne a agressão ao rei. O Estado e outras sensibilidades necessitam de ordem e generalização... traduzimos novos valores nas prisões e nos trabalhos forçados mais do que no teatro da Place de Grève. Um novo sistema disciplinar se amplia por escolas, hospitais e presídios, para atingirmos nossa racionalidade contemporânea sempre chocada com a execução de Damiens e produtora tranquila de Carandirus. Esperança de dias menos difíceis?

Robert François Damiens, que atacou Luiz XV com uma faca, diante dos juízes em Chatelet, em 2 de março de 1757 Foto: Musee de la Ville de Paris/Musee Carnavalet

A ascensão do poder real andou de mãos dadas com a sofisticação da etiqueta da Corte e o aumento da pompa. Outro indício do zênite monárquico: o regicídio vira um crime imenso, equiparado ao parricídio, pois o rei seria o pai da nação.

Em 1610, François Ravaillac matou Henrique IV da França a facadas. A punição foi severa: ele foi preso à roda, teve os ossos quebrados com golpes de barras de ferro e cortes feitos em seu corpo. Nas feridas, derramaram-se chumbo fervente, vinagre e sal. Cavalos esquartejaram o corpo, que foi queimado, por fim, com as cinzas atiradas ao vento.

Os familiares também sofreram punições. O nome Ravaillac foi proibido em todo o reino. O local da execução pública era a antiga Place de Grève, em frente ao Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris.

Vamos descer mais ao Sul e avançar no tempo. Na noite de 3 de setembro de 1758, o rei português D. José I regressava de uma visita à sua amante. A Corte vivia em barracas luxuosas na Ajuda depois do terremoto de 1755. Três homens dispararam contra a carruagem. Presos e torturados, os autores dos disparos confessaram que agiam a mando da tradicional família de nobres, os Távoras. O processo também implicou o duque de Aveiro. Ao saber do incidente, o astuto ministro Marquês de Pombal manteve sigilo, interrogou os assassinos e executou-os rapidamente. Logo em seguida, sem que o crime viesse a público ainda, prendeu os nobres. O uso de extrema violência contra duques e marqueses era inédito. Tradicionalmente, aristocratas eram decapitados, sem uso de tortura.

Em janeiro de 1759, houve a execução e suplício público dos indiciados. A punição de famílias de alta estirpe era uma reafirmação do poder indiscutível da Coroa. Agradecida, a Casa de Bragança deu a Sebastião José de Carvalho e Melo o título de Conde de Oeiras e, por fim, Marquês de Pombal. O resultado da tentativa de regicídio que apenas feriu levemente o braço real? O ministro eliminou seus inimigos e a monarquia portuguesa centralizou-se ainda mais, abrindo caminho para a extinção da Companhia de Jesus (houve um jesuíta implicado no crime). A inconfidência dos Távoras foi útil ao projeto político da Coroa e à aspiração despótica de Pombal.

Voltemos para o solo francês. No dia cinco de janeiro de 1757, Luís XV estava na sua carruagem, saindo de Versalhes. Um homem chamado Robert-François Damiens avançou sobre o monarca com uma faca. Sendo inverno e estando o soberano com muitas camadas de veludo e peles, o ferimento foi superficial, e o criminoso imobilizado sem resistência. Sua tortura teve os mesmos requintes de crueldade pública e ocorreu na mesma praça que viu a morte de Ravaillac. Alicates quentes, cortes, derramando-se chumbo e enxofre fervente nas feridas. Ao final, cavalos deveriam esquartejá-lo. Foram usados seis animais sem que as juntas se soltassem. Por fim, o carrasco fez cortes nas pernas e braços daquele homem; o tronco ficou destituído de membros. O que restou, ainda em movimento, foi atirado na fogueira. No processo, aparecem as palavras regicídio e parricídio. O rei Luís XV, apelidado como “O Bem-Amado” (Bien-Aimé), era considerado o “pai da França”. Dizem que, vendo os instrumentos de tortura à sua frente, sabendo que sofreria em grau extremo durante horas, Damiens teria dito ao carrasco Sanson: “O dia será difícil” (La journée sera rude)... Eufemismo tocante.

O mundo tinha mudado em um século. O rei era odiado. Enquanto isso, o Iluminismo avançava. A execução violenta de Damiens encontrou críticos e abriu caminho para a busca de métodos mais “humanos” de morte. Cresceu a adesão aos escritos do dr. Joseph-Ignace Guillotin, que considerava a decapitação mecânica um imenso avanço da civilização e da justiça. Depois, surgiu a lenda urbana de que o próprio Guillotin tinha sido executado pela ferramenta que defendera. É mentira... O médico morreu em 1814 devido a causas naturais.

O primeiro guilhotinado com o modelo que identificamos foi um ladrão, em 1792 (Nicolas Pelletier). No Terror, a máquina não descansou. Em 1939, houve a última execução pública. A guilhotina foi utilizada dentro dos muros de uma prisão pela última vez em... 1977. O condenado era um imigrante da Tunísia, Hamida Djandoubi. A pena de morte foi abolida na França em 1981.

A sensibilidade pública à violência passa a sofrer uma duplicidade hipócrita. Tortura em praça aberta parece barbárie. Porém, dentro de presídios ou de campos de concentração, deixa de ser um fato incômodo. Foucault analisou nossa modificação sobre o crime. Está na obra seminal Vigiar e Punir (1975), sobre como saímos exatamente do suplício de Damiens para nossa concepção moderna. A lei era uma extensão do corpo do soberano, e Damiens sofre na carne a agressão ao rei. O Estado e outras sensibilidades necessitam de ordem e generalização... traduzimos novos valores nas prisões e nos trabalhos forçados mais do que no teatro da Place de Grève. Um novo sistema disciplinar se amplia por escolas, hospitais e presídios, para atingirmos nossa racionalidade contemporânea sempre chocada com a execução de Damiens e produtora tranquila de Carandirus. Esperança de dias menos difíceis?

Robert François Damiens, que atacou Luiz XV com uma faca, diante dos juízes em Chatelet, em 2 de março de 1757 Foto: Musee de la Ville de Paris/Musee Carnavalet
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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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