Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Você ama seus amigos, esposa ou marido, mas não ama sempre - há momentos de cansaço


Com o aperfeiçoamento dos algoritmos, caminhamos para o advento de ‘amigos’ positrônicos - Com eles, isso estará superado: existirão tão somente conversas perfeitas em corpos idealizados e adaptados

Por Leandro Karnal

Os algoritmos se aperfeiçoam a cada dia. A inteligência artificial ouve o que você diz ao celular. Ela analisa o tipo de conteúdo acessado. Os vídeos e os assuntos sugeridos nas mídias sociais ficam cada vez mais interessantes. Chegamos a uma customização absoluta. Seu desejo guia a máquina. Ficou mais tempo observando? O canto da sereia virtual atraiu, com apelo irresistível, sua alma.

A velocidade do aperfeiçoamento é geométrica. Lembro-me de uma piada que ouvi há alguns anos. Uma pessoa pergunta para a outra: “Gosta da minha personalidade?” Ao ouvir um sim entusiasmado, comenta: “Que bom, eu a inventei especialmente para você”. Pessoas com certos tipos de psicopatia são especialistas em agradar. Sim, algumas mentes perturbadas são sádicas, insensíveis à dor alheia e até dotadas de narcisismo doentio. Porém, outras são particularmente sedutoras. De alguma forma, a internet está tomada por essa personalidade, ainda que artificial. Não nos contraria, ouve sempre nosso desejo, não julga e torna-se a companhia perfeita.

O filme Ela (2013, com direção de Spike Jonze) já tinha anunciado uma personagem sedutora extrema. Mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) não consegue resistir ao charme daquela voz feminina.

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Agora vamos dar um salto tecnológico. Imagine a existência de um robô que pode ser escolhido com a forma que você deseja. Poderia ser uma mulher loira, uma morena de corpo perfeito, um homem forte e lindo: seu desejo construirá o humanoide. O cérebro (a ficção nomeia como positrônico) crescerá a partir do tipo de IA aperfeiçoado, para falar o que lhe agrada em interações divertidas e interessantes. Se você adora jogar xadrez, o robô saberá tudo sobre a arte e a matemática desse esporte, podendo ser programado para perder ou ganhar no nível que você desejar. Seu campo é cinema expressionista? Jogo de golfe? Futebol? Gastronomia? Prefere uma companhia que conte piadas salientes ou que narre histórias fascinantes? Tudo pode estar naquela cabeça artificial.

Com capacidade de autoaperfeiçoamento, a personalidade da pessoa escolhida será cada vez mais fascinante, porque é gradativamente customizada. Rosto sedutor, conversa agradável e corpo do jeito que você deseja. Como resistir a este novo apelo? Mais: talvez você tenha recursos e possa comprar quatro ou cinco desses modelos para uma festa privada. Eles podem ser programados para rirem muito das suas piadas ou para ouvirem infinitamente e, com atenção, seus fluxos de consciência. Nunca “darão bolo”. Nunca faltarão a um evento seu e jamais serão cansativos.

Sim, haverá gente old fashioned. Surgirão grupos defendendo o bom e velho amigo humano e indicando que a nova onda é artificial e danosa. Talvez se tornem como aqueles que, hoje, defendem o uso da caneta-tinteiro contra os teclados ou os que compram o vinil e rejeitam o streaming. Serão arautos melancólicos de um mundo já superado. Constituirão nichos; nunca o centro.

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Quer treinar línguas? Seus amigos artificiais podem falar em inglês com você durante o dia todo. Um pode ser projetado para tocar, ao estilo do grande Nelson Freire, o piano na sala. Outros podem receber comandos eróticos e tornarem-se amantes profissionais.

Em 'Ela', mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona pela voz feminina. Foto: Divulgação / Warner Bros. Pictures  Foto: reprodução

Sair para um bar e esperar todos chegarem? Ter de aguentar alguém que está se separando, contando aqueles dramas intermináveis? Debater se alguém pediu uma bebida cara ou uma água com gás? Ouvir a mesma piada do colega monotemático? Tudo isso pertencerá ao passado. Agora, seus robôs conversarão sobre o tema escolhido, com os tons, idiomas e palavras desejadas.

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Não existe chance de pessoas de carne e osso concorrerem. Sim! Você ama alguns amigos, sua esposa ou seu marido. No entanto, não ama sempre. Há momentos de profundo cansaço. Com os novos amigos positrônicos, isso estará superado. Existirão tão somente conversas perfeitas em corpos idealizados e adaptados.

A tela da sua casa mostrou um filme maravilhoso com uma atriz que você admira? Seu amigo artificial pode indicar todos os outros filmes que ela fez, citar cenas, correlacionar diretores e imitar a voz da famosa intérprete. Se sua paixão por essa artista for enorme, você poderá encomendar um rosto e corpo idênticos a ela.

Encantou-se com o sotaque britânico e a beleza da jovem Daisy Edgar-Jones? É excelente gosto o seu. Em alguns dias, pode chegar ao seu lar um robô com o rosto e a voz dela, devidamente licenciados. A máquina terá todas as informações da atriz; assim, vocês poderão brincar de contracenar.

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Acha Henry Cavill charmoso? Ele pode levar você para a cama, com aqueles braços fortes, todas as noites. Sua paixão é mais intelectual?

Que tal ouvir Clarice Lispector recitando seus textos por horas? E que tal uma caminhada pela Serra da Mantiqueira, com quatro máquinas que podem cozinhar, montar cabanas, andar com você no colo e ainda rir muito? Sem medo e com boa companhia, você poderá viajar pelo Pantanal ou ir ao Deserto de Gobi. Cansado da perfeição? Robô-problema estará disponível em doze prestações para quem tem prazer no conflito.

São perspectivas animadoras ou sombrias? Não estamos muito longe desse “admirável mundo novo”. Conserva sua esperança ou deixa-a aqui como antes do portão do inferno de Dante?

Os algoritmos se aperfeiçoam a cada dia. A inteligência artificial ouve o que você diz ao celular. Ela analisa o tipo de conteúdo acessado. Os vídeos e os assuntos sugeridos nas mídias sociais ficam cada vez mais interessantes. Chegamos a uma customização absoluta. Seu desejo guia a máquina. Ficou mais tempo observando? O canto da sereia virtual atraiu, com apelo irresistível, sua alma.

A velocidade do aperfeiçoamento é geométrica. Lembro-me de uma piada que ouvi há alguns anos. Uma pessoa pergunta para a outra: “Gosta da minha personalidade?” Ao ouvir um sim entusiasmado, comenta: “Que bom, eu a inventei especialmente para você”. Pessoas com certos tipos de psicopatia são especialistas em agradar. Sim, algumas mentes perturbadas são sádicas, insensíveis à dor alheia e até dotadas de narcisismo doentio. Porém, outras são particularmente sedutoras. De alguma forma, a internet está tomada por essa personalidade, ainda que artificial. Não nos contraria, ouve sempre nosso desejo, não julga e torna-se a companhia perfeita.

O filme Ela (2013, com direção de Spike Jonze) já tinha anunciado uma personagem sedutora extrema. Mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) não consegue resistir ao charme daquela voz feminina.

Agora vamos dar um salto tecnológico. Imagine a existência de um robô que pode ser escolhido com a forma que você deseja. Poderia ser uma mulher loira, uma morena de corpo perfeito, um homem forte e lindo: seu desejo construirá o humanoide. O cérebro (a ficção nomeia como positrônico) crescerá a partir do tipo de IA aperfeiçoado, para falar o que lhe agrada em interações divertidas e interessantes. Se você adora jogar xadrez, o robô saberá tudo sobre a arte e a matemática desse esporte, podendo ser programado para perder ou ganhar no nível que você desejar. Seu campo é cinema expressionista? Jogo de golfe? Futebol? Gastronomia? Prefere uma companhia que conte piadas salientes ou que narre histórias fascinantes? Tudo pode estar naquela cabeça artificial.

Com capacidade de autoaperfeiçoamento, a personalidade da pessoa escolhida será cada vez mais fascinante, porque é gradativamente customizada. Rosto sedutor, conversa agradável e corpo do jeito que você deseja. Como resistir a este novo apelo? Mais: talvez você tenha recursos e possa comprar quatro ou cinco desses modelos para uma festa privada. Eles podem ser programados para rirem muito das suas piadas ou para ouvirem infinitamente e, com atenção, seus fluxos de consciência. Nunca “darão bolo”. Nunca faltarão a um evento seu e jamais serão cansativos.

Sim, haverá gente old fashioned. Surgirão grupos defendendo o bom e velho amigo humano e indicando que a nova onda é artificial e danosa. Talvez se tornem como aqueles que, hoje, defendem o uso da caneta-tinteiro contra os teclados ou os que compram o vinil e rejeitam o streaming. Serão arautos melancólicos de um mundo já superado. Constituirão nichos; nunca o centro.

Quer treinar línguas? Seus amigos artificiais podem falar em inglês com você durante o dia todo. Um pode ser projetado para tocar, ao estilo do grande Nelson Freire, o piano na sala. Outros podem receber comandos eróticos e tornarem-se amantes profissionais.

Em 'Ela', mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona pela voz feminina. Foto: Divulgação / Warner Bros. Pictures  Foto: reprodução

Sair para um bar e esperar todos chegarem? Ter de aguentar alguém que está se separando, contando aqueles dramas intermináveis? Debater se alguém pediu uma bebida cara ou uma água com gás? Ouvir a mesma piada do colega monotemático? Tudo isso pertencerá ao passado. Agora, seus robôs conversarão sobre o tema escolhido, com os tons, idiomas e palavras desejadas.

Não existe chance de pessoas de carne e osso concorrerem. Sim! Você ama alguns amigos, sua esposa ou seu marido. No entanto, não ama sempre. Há momentos de profundo cansaço. Com os novos amigos positrônicos, isso estará superado. Existirão tão somente conversas perfeitas em corpos idealizados e adaptados.

A tela da sua casa mostrou um filme maravilhoso com uma atriz que você admira? Seu amigo artificial pode indicar todos os outros filmes que ela fez, citar cenas, correlacionar diretores e imitar a voz da famosa intérprete. Se sua paixão por essa artista for enorme, você poderá encomendar um rosto e corpo idênticos a ela.

Encantou-se com o sotaque britânico e a beleza da jovem Daisy Edgar-Jones? É excelente gosto o seu. Em alguns dias, pode chegar ao seu lar um robô com o rosto e a voz dela, devidamente licenciados. A máquina terá todas as informações da atriz; assim, vocês poderão brincar de contracenar.

Acha Henry Cavill charmoso? Ele pode levar você para a cama, com aqueles braços fortes, todas as noites. Sua paixão é mais intelectual?

Que tal ouvir Clarice Lispector recitando seus textos por horas? E que tal uma caminhada pela Serra da Mantiqueira, com quatro máquinas que podem cozinhar, montar cabanas, andar com você no colo e ainda rir muito? Sem medo e com boa companhia, você poderá viajar pelo Pantanal ou ir ao Deserto de Gobi. Cansado da perfeição? Robô-problema estará disponível em doze prestações para quem tem prazer no conflito.

São perspectivas animadoras ou sombrias? Não estamos muito longe desse “admirável mundo novo”. Conserva sua esperança ou deixa-a aqui como antes do portão do inferno de Dante?

Os algoritmos se aperfeiçoam a cada dia. A inteligência artificial ouve o que você diz ao celular. Ela analisa o tipo de conteúdo acessado. Os vídeos e os assuntos sugeridos nas mídias sociais ficam cada vez mais interessantes. Chegamos a uma customização absoluta. Seu desejo guia a máquina. Ficou mais tempo observando? O canto da sereia virtual atraiu, com apelo irresistível, sua alma.

A velocidade do aperfeiçoamento é geométrica. Lembro-me de uma piada que ouvi há alguns anos. Uma pessoa pergunta para a outra: “Gosta da minha personalidade?” Ao ouvir um sim entusiasmado, comenta: “Que bom, eu a inventei especialmente para você”. Pessoas com certos tipos de psicopatia são especialistas em agradar. Sim, algumas mentes perturbadas são sádicas, insensíveis à dor alheia e até dotadas de narcisismo doentio. Porém, outras são particularmente sedutoras. De alguma forma, a internet está tomada por essa personalidade, ainda que artificial. Não nos contraria, ouve sempre nosso desejo, não julga e torna-se a companhia perfeita.

O filme Ela (2013, com direção de Spike Jonze) já tinha anunciado uma personagem sedutora extrema. Mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) não consegue resistir ao charme daquela voz feminina.

Agora vamos dar um salto tecnológico. Imagine a existência de um robô que pode ser escolhido com a forma que você deseja. Poderia ser uma mulher loira, uma morena de corpo perfeito, um homem forte e lindo: seu desejo construirá o humanoide. O cérebro (a ficção nomeia como positrônico) crescerá a partir do tipo de IA aperfeiçoado, para falar o que lhe agrada em interações divertidas e interessantes. Se você adora jogar xadrez, o robô saberá tudo sobre a arte e a matemática desse esporte, podendo ser programado para perder ou ganhar no nível que você desejar. Seu campo é cinema expressionista? Jogo de golfe? Futebol? Gastronomia? Prefere uma companhia que conte piadas salientes ou que narre histórias fascinantes? Tudo pode estar naquela cabeça artificial.

Com capacidade de autoaperfeiçoamento, a personalidade da pessoa escolhida será cada vez mais fascinante, porque é gradativamente customizada. Rosto sedutor, conversa agradável e corpo do jeito que você deseja. Como resistir a este novo apelo? Mais: talvez você tenha recursos e possa comprar quatro ou cinco desses modelos para uma festa privada. Eles podem ser programados para rirem muito das suas piadas ou para ouvirem infinitamente e, com atenção, seus fluxos de consciência. Nunca “darão bolo”. Nunca faltarão a um evento seu e jamais serão cansativos.

Sim, haverá gente old fashioned. Surgirão grupos defendendo o bom e velho amigo humano e indicando que a nova onda é artificial e danosa. Talvez se tornem como aqueles que, hoje, defendem o uso da caneta-tinteiro contra os teclados ou os que compram o vinil e rejeitam o streaming. Serão arautos melancólicos de um mundo já superado. Constituirão nichos; nunca o centro.

Quer treinar línguas? Seus amigos artificiais podem falar em inglês com você durante o dia todo. Um pode ser projetado para tocar, ao estilo do grande Nelson Freire, o piano na sala. Outros podem receber comandos eróticos e tornarem-se amantes profissionais.

Em 'Ela', mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona pela voz feminina. Foto: Divulgação / Warner Bros. Pictures  Foto: reprodução

Sair para um bar e esperar todos chegarem? Ter de aguentar alguém que está se separando, contando aqueles dramas intermináveis? Debater se alguém pediu uma bebida cara ou uma água com gás? Ouvir a mesma piada do colega monotemático? Tudo isso pertencerá ao passado. Agora, seus robôs conversarão sobre o tema escolhido, com os tons, idiomas e palavras desejadas.

Não existe chance de pessoas de carne e osso concorrerem. Sim! Você ama alguns amigos, sua esposa ou seu marido. No entanto, não ama sempre. Há momentos de profundo cansaço. Com os novos amigos positrônicos, isso estará superado. Existirão tão somente conversas perfeitas em corpos idealizados e adaptados.

A tela da sua casa mostrou um filme maravilhoso com uma atriz que você admira? Seu amigo artificial pode indicar todos os outros filmes que ela fez, citar cenas, correlacionar diretores e imitar a voz da famosa intérprete. Se sua paixão por essa artista for enorme, você poderá encomendar um rosto e corpo idênticos a ela.

Encantou-se com o sotaque britânico e a beleza da jovem Daisy Edgar-Jones? É excelente gosto o seu. Em alguns dias, pode chegar ao seu lar um robô com o rosto e a voz dela, devidamente licenciados. A máquina terá todas as informações da atriz; assim, vocês poderão brincar de contracenar.

Acha Henry Cavill charmoso? Ele pode levar você para a cama, com aqueles braços fortes, todas as noites. Sua paixão é mais intelectual?

Que tal ouvir Clarice Lispector recitando seus textos por horas? E que tal uma caminhada pela Serra da Mantiqueira, com quatro máquinas que podem cozinhar, montar cabanas, andar com você no colo e ainda rir muito? Sem medo e com boa companhia, você poderá viajar pelo Pantanal ou ir ao Deserto de Gobi. Cansado da perfeição? Robô-problema estará disponível em doze prestações para quem tem prazer no conflito.

São perspectivas animadoras ou sombrias? Não estamos muito longe desse “admirável mundo novo”. Conserva sua esperança ou deixa-a aqui como antes do portão do inferno de Dante?

Os algoritmos se aperfeiçoam a cada dia. A inteligência artificial ouve o que você diz ao celular. Ela analisa o tipo de conteúdo acessado. Os vídeos e os assuntos sugeridos nas mídias sociais ficam cada vez mais interessantes. Chegamos a uma customização absoluta. Seu desejo guia a máquina. Ficou mais tempo observando? O canto da sereia virtual atraiu, com apelo irresistível, sua alma.

A velocidade do aperfeiçoamento é geométrica. Lembro-me de uma piada que ouvi há alguns anos. Uma pessoa pergunta para a outra: “Gosta da minha personalidade?” Ao ouvir um sim entusiasmado, comenta: “Que bom, eu a inventei especialmente para você”. Pessoas com certos tipos de psicopatia são especialistas em agradar. Sim, algumas mentes perturbadas são sádicas, insensíveis à dor alheia e até dotadas de narcisismo doentio. Porém, outras são particularmente sedutoras. De alguma forma, a internet está tomada por essa personalidade, ainda que artificial. Não nos contraria, ouve sempre nosso desejo, não julga e torna-se a companhia perfeita.

O filme Ela (2013, com direção de Spike Jonze) já tinha anunciado uma personagem sedutora extrema. Mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) não consegue resistir ao charme daquela voz feminina.

Agora vamos dar um salto tecnológico. Imagine a existência de um robô que pode ser escolhido com a forma que você deseja. Poderia ser uma mulher loira, uma morena de corpo perfeito, um homem forte e lindo: seu desejo construirá o humanoide. O cérebro (a ficção nomeia como positrônico) crescerá a partir do tipo de IA aperfeiçoado, para falar o que lhe agrada em interações divertidas e interessantes. Se você adora jogar xadrez, o robô saberá tudo sobre a arte e a matemática desse esporte, podendo ser programado para perder ou ganhar no nível que você desejar. Seu campo é cinema expressionista? Jogo de golfe? Futebol? Gastronomia? Prefere uma companhia que conte piadas salientes ou que narre histórias fascinantes? Tudo pode estar naquela cabeça artificial.

Com capacidade de autoaperfeiçoamento, a personalidade da pessoa escolhida será cada vez mais fascinante, porque é gradativamente customizada. Rosto sedutor, conversa agradável e corpo do jeito que você deseja. Como resistir a este novo apelo? Mais: talvez você tenha recursos e possa comprar quatro ou cinco desses modelos para uma festa privada. Eles podem ser programados para rirem muito das suas piadas ou para ouvirem infinitamente e, com atenção, seus fluxos de consciência. Nunca “darão bolo”. Nunca faltarão a um evento seu e jamais serão cansativos.

Sim, haverá gente old fashioned. Surgirão grupos defendendo o bom e velho amigo humano e indicando que a nova onda é artificial e danosa. Talvez se tornem como aqueles que, hoje, defendem o uso da caneta-tinteiro contra os teclados ou os que compram o vinil e rejeitam o streaming. Serão arautos melancólicos de um mundo já superado. Constituirão nichos; nunca o centro.

Quer treinar línguas? Seus amigos artificiais podem falar em inglês com você durante o dia todo. Um pode ser projetado para tocar, ao estilo do grande Nelson Freire, o piano na sala. Outros podem receber comandos eróticos e tornarem-se amantes profissionais.

Em 'Ela', mesmo sabendo ser uma máquina, Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona pela voz feminina. Foto: Divulgação / Warner Bros. Pictures  Foto: reprodução

Sair para um bar e esperar todos chegarem? Ter de aguentar alguém que está se separando, contando aqueles dramas intermináveis? Debater se alguém pediu uma bebida cara ou uma água com gás? Ouvir a mesma piada do colega monotemático? Tudo isso pertencerá ao passado. Agora, seus robôs conversarão sobre o tema escolhido, com os tons, idiomas e palavras desejadas.

Não existe chance de pessoas de carne e osso concorrerem. Sim! Você ama alguns amigos, sua esposa ou seu marido. No entanto, não ama sempre. Há momentos de profundo cansaço. Com os novos amigos positrônicos, isso estará superado. Existirão tão somente conversas perfeitas em corpos idealizados e adaptados.

A tela da sua casa mostrou um filme maravilhoso com uma atriz que você admira? Seu amigo artificial pode indicar todos os outros filmes que ela fez, citar cenas, correlacionar diretores e imitar a voz da famosa intérprete. Se sua paixão por essa artista for enorme, você poderá encomendar um rosto e corpo idênticos a ela.

Encantou-se com o sotaque britânico e a beleza da jovem Daisy Edgar-Jones? É excelente gosto o seu. Em alguns dias, pode chegar ao seu lar um robô com o rosto e a voz dela, devidamente licenciados. A máquina terá todas as informações da atriz; assim, vocês poderão brincar de contracenar.

Acha Henry Cavill charmoso? Ele pode levar você para a cama, com aqueles braços fortes, todas as noites. Sua paixão é mais intelectual?

Que tal ouvir Clarice Lispector recitando seus textos por horas? E que tal uma caminhada pela Serra da Mantiqueira, com quatro máquinas que podem cozinhar, montar cabanas, andar com você no colo e ainda rir muito? Sem medo e com boa companhia, você poderá viajar pelo Pantanal ou ir ao Deserto de Gobi. Cansado da perfeição? Robô-problema estará disponível em doze prestações para quem tem prazer no conflito.

São perspectivas animadoras ou sombrias? Não estamos muito longe desse “admirável mundo novo”. Conserva sua esperança ou deixa-a aqui como antes do portão do inferno de Dante?

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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