Quando o leitor entra numa livraria física ou virtual, dificilmente tem visibilidade do movimento corporativo que afeta o mercado editorial há anos. Por volta do final da década de 1980, solidificou-se a primazia economicista no mundo dos livros com fusões ou incorporações de editoras. Uma das consequências desse processo de formação de oligopólios foi a de tirar aos poucos o foco da figura do editor nas grandes e médias editoras e a promover a entrada do profissional de marketing, como há anos aponta o editor radicado na Espanha Mário Muchnik. Um dos últimos remanescentes dessa tradição que hoje quase se restringe a editoras independentes é Roberto Calasso, mais conhecido no Brasil como refinado prosador, a tecer reflexões pertinentes em A Marca do Editor (Âyiné). Calasso reuniu-as em nove ensaios em torno do ofício de editor, escritos entre 1995 e 2001.
No meio editorial, o nome de Calasso confunde-se com o da editora italiana Adelphi. Segundo seu par espanhol e diretor editorial da Anagrama, Jorge Herralde, o colega tornou esta editora referência em toda a Europa na ao construir um catálogo que priorizou qualidade, e não quantidade. Desde sua reedição de Nietzsche, em 1963, até a maneira como ressuscitou a literatura austro-húngara, Calasso provou ter faro para autores esquecidos e alguns que se tornaram Prêmios Nobel, a exemplo de Elias Canetti, Czesław Miłosz e Joseph Brodski. E a qualidade não impediu o editor emplacasse best-sellers como Milan Kundera, Leonardo Sciascia e Joseph Roth. O primeiro bloco de textos é intitulado Livros Únicos, em que retoma a trajetória da editora Adelphi, fundada em Milão em junho de 1962 por Luciano Foà e Roberto Olivetti, tendo Calasso no time desde primeira hora até assumir como diretor editorial em 1971. Adelphi é uma palavra grega que significa irmãos, associados e “expressa a comunhão de propósitos entre os membros fundadores”. O princípio que radicou esta editora desde a fundação, em 1962, foi o de “livro único”: “aconteceu alguma coisa ao autor e essa coisa terminou por se depositar em um escrito”. Em outras palavras, uma poética do limite em práxis intensa. Cita o clássico tibetano de Milarepa e Alfred Kubin, ou seja, livros que correram o risco de sequer serem publicados. O ensaio continua narrando como Adelphi, pela atuação de Calasso – inclusive como tradutor –, praticamente tirou do esquecimento autores centrais de Viena. A começar por Karl Kraus, cujas obras eram de difícil acesso até em alemão. Somando-se Hofmannsthal, Loos, Horváth, Roth, Schnitzler, Canetti e Wittgenstein. Calasso problematiza a questão da chamada biblioteca universal digitalizada pelo Google. Esta atividade em escala mundial “implica uma hostilidade contra um modo de conhecimento e, segundo plano, modo este estreitamente ligado ao uso do livro. O que está em jogo é justamente o mito de eliminar a figura do editor ou de qualquer atravessador entre o livro, agora digitalizado, e leitores pelo mundo”. Mas em que medida, questiona Calasso, será o real amadurecimento intelectual que já foi conquistado em mais de 500 anos de livro em papel? O editor não é mero atravessador, mas alguém qualificado que pesquisa, lê e peneira publicações não apenas como meio de renda. O que nos leva a um dos momentos altos dessa reflexão no ensaio A Edição como Gênero Literário e que ele chama de a arte de publicar. Calasso percorres momentos capitais deste ofício – de Aldo Mâncio a Kurt Wolff – para estabelecer que esta tradição de quatro séculos em suma se define como pela “capacidade dar forma a uma pluralidade de livros como se fossem os capítulos de um livro”. Tal ofício é permeado por paixão em obsessão com a aparência de cada volume. A partir daí, parte de Claude Lévi-Strauss e como percebeu uma das atividades fundamentais dos seres humanos na elaboração de mitos, “uma forma particular de bricolagem”. Calasso estabelece o paralelo ao afirmar que a arte da edição é uma espécie de bricolagem. Todos os elementos de uma editora – títulos, capas, textos de orelha, publicidade, tiragem ou diferentes edições do mesmo livro – formarão determinada “paisagem muito singular em si, pertencente a um gênero específico”. Na mesma direção, o editor Muchnik afirmou certa vez ser o catálogo de uma editora a autobiografia do editor, pois é ele quem lê cada livro publicado ou, no caso de indicação editorial, o analisa para ver conformidade em relação à expressão de sua mínima bricolagem. Há nesta publicação ensaios sobre outros editores que foram mestres diretos de Calasso: Giulio Einaudi, Luciano Foà, Roger Straus (cofundador e presidente da nova-iorquina Farrar, Straus and Giroux), Peter Suhrkamp e Vladimir Dimitriecic (fundador da editora L’Âge d’Homme) – alguns dos grandes e últimos remanescentes da arte de editar. Enfim, qual o sentido efetivo desta tradição memorialística destes editores? Memória resistência. Manter viva uma narrativa de como é possível fazer diferente em relação à oligopolização do mercado editorial. Quando selos organizados em grupos empresariais não constroem um catálogo, mas compram títulos desde que o profissional de marketing exponha relação custo-benefício a curto prazo em planilha Excel. A Adelphi de Calasso foi fagocitada pelo transnacional Gruppo Mondadori, porém de porteira fechada, com o editor junto mantendo sua independência. Dentro de uma corporação, Calasso segue fazendo o que há anos se dedica: ler, escolher e preparar livros. Sua prosa ensaística mostra-se pertinente a leitores em geral e editores independentes. Tomara que outros títulos desse autor-editor sejam publicados no Brasil. Pois é sempre possível fazer de diferente. É JORNALISTA, PÓS-DOUTORANDO NA ECA/USP E PROFESSOR NA UEL