No dia do aniversário de um dos maiores poetas brasileiros, o mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o Instituto Moreira Salles, detentor de seu acervo, promove o Dia D em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Poços de Caldas (veja a agenda abaixo), o Google dedica seu doodle ao autor de A Rosa do Povo e o Estado celebra o poeta com 5 de seus poemas mais importantes.
José
E agora, José?festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio — e agora?
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?
(Na última edição da Festa Literária Internacional de Paraty, José Miguel Wisnik, autor de Maquinação do Mundo, sobre a relação de Drummond com a mineração, e com a Vale, disse que 'E agora, José' é a pergunta que o Brasil vive)
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio, porque este não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte. Depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada.
O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite.
A máquina do mundo
E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco o simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: “O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste… vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que tantos monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mão pensas.
Programação do Dia D 2019
São Paulo
Cabaré modernista para Carlos Drummond de Andrade
Com roteiro e direção de Eucanaã Ferraz e direção musical de Bruno Cosentino, a apresentação traz ao palco as cantoras Lívia Nestrovski e Numa Ciro, acompanhadas por Claudia Castelo Branco (piano) e Aline Gonçalves (clarinete, clarone e flauta). Serão recitados poemas de Drummond, em diálogo com canções de Noel Rosa, Belchior, Milton Nascimento, entre outros, numa união entre música e poesia.
31 de outubro, às 20h30, no Cineteatro. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Vendas antecipadas no site Eventbrite ou no próprio dia do evento na bilheteria do centro cultural
IMS Paulista Avenida Paulista, 2424 São Paulo Tel.: (11) 2842-9120
Rio de Janeiro
Recital Nosso tempo
A apresentação será conduzida pela cantora Olivia Byington, pelo ator e violonista Rodrigo Lima, e pela atriz Bianca Byington, que também assina a direção do espetáculo. Durante o recital, os três interpretarão crônicas, canções e poemas do escritor.
31 de outubro, às 20h, no auditório. Entrada gratuita, com distribuição de senhas 30 minutos antes e limite de 1 senha por pessoa
IMS Rio Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea Rio de Janeiro Tel.: (21) 3284-7400
Poços de Caldas
Carrossel poético de Drummond
Em parceria com o docente de literatura Sérgio Roberto Montero Aguiar e Valéria dos Santos Rêgo, professora da Escola Municipal Vitalina Rossi, o evento será em torno da obra Nova reunião – 19 livros de poesia 1. No primeiro momento, Montero Aguiar discorrerá sobre o livro. Em seguida, um grupo de estudantes da Escola Municipal Vitalina Rossi fará uma leitura dramática dos poemas.
31 de outubro, às 19h. Entrada gratuita
IMS Poços Rua Teresópolis, 90, Jd. dos Estados Poços de Caldas - MG Tel.: (35) 3722-2776