Opinião|99 anos de Dalton Trevisan: Por que o ‘vampiro de Curitiba’ é o maior contista da língua portuguesa


Recluso escritor faz aniversário nesta sexta, 14 de junho. Seu estilo impede a banalização das tragédias cotidianas e retira da violência qualquer domesticidade; entenda

Por André de Leones

Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado Feliz Natal. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli.

Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.

Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”.

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O escritor Dalton Trevisan em Curitiba em imagem de 1976. Ele completa 99 anos nesta sexta-feira, 14.  Foto: Arquivo/Acervo Estadão

As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.

Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares.

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Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.

Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.

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Já o narrador do conto O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”.

Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em Feliz Natal. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.

Flagrante raro do escritor Dalton Trevisan andando pelas ruas de Curitiba em 2009, ano em que completou 84 anos. Foto: Rodolfo Buhrer
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Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferir, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas.

Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.

Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado Feliz Natal. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli.

Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.

Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”.

O escritor Dalton Trevisan em Curitiba em imagem de 1976. Ele completa 99 anos nesta sexta-feira, 14.  Foto: Arquivo/Acervo Estadão

As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.

Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares.

Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.

Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.

Já o narrador do conto O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”.

Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em Feliz Natal. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.

Flagrante raro do escritor Dalton Trevisan andando pelas ruas de Curitiba em 2009, ano em que completou 84 anos. Foto: Rodolfo Buhrer

Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferir, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas.

Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.

Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado Feliz Natal. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli.

Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.

Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”.

O escritor Dalton Trevisan em Curitiba em imagem de 1976. Ele completa 99 anos nesta sexta-feira, 14.  Foto: Arquivo/Acervo Estadão

As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.

Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares.

Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.

Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.

Já o narrador do conto O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”.

Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em Feliz Natal. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.

Flagrante raro do escritor Dalton Trevisan andando pelas ruas de Curitiba em 2009, ano em que completou 84 anos. Foto: Rodolfo Buhrer

Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferir, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas.

Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.

Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado Feliz Natal. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli.

Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.

Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”.

O escritor Dalton Trevisan em Curitiba em imagem de 1976. Ele completa 99 anos nesta sexta-feira, 14.  Foto: Arquivo/Acervo Estadão

As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.

Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares.

Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.

Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.

Já o narrador do conto O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”.

Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em Feliz Natal. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.

Flagrante raro do escritor Dalton Trevisan andando pelas ruas de Curitiba em 2009, ano em que completou 84 anos. Foto: Rodolfo Buhrer

Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferir, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas.

Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.

Opinião por André de Leones

Autor do romance 'Vento de Queimada' (2023, Record), entre outros.

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