'A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21', diz Laurentino Gomes


Segundo volume da trilogia 'Escravidão' analisa o século 18 no País

Por Ubiratan Brasil

No início do século 18, o Brasil era um país que praticamente só olhava para o mar – as principais cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, eram litorâneas e a principal atividade econômica, cultivo da cana-de-açúcar, não invadia tanto o território. Mas foi nesse período que tudo mudou: com a descoberta das primeiras jazidas de ouro e diamante em regiões onde hoje são os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, houve um avanço populacional para o interior do País, fomentado principalmente pelo aumento da quantidade de escravos negros.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

“Estima-se que, no século 18, cerca de 600 mil escravos se envolveram na mineração de ouro e diamantes, o que representaria cerca de 20% do total de cativos africanos trazidos para o Brasil neste período”, observa o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que lança agora o segundo volume da trilogia Escravidão, uma detalhada pesquisa sobre a história da escravatura negra – o primeiro saiu em 2019 e o último está previsto para o próximo ano. Os escravos foram essenciais na construção da máquina de extração, pois muitos chegavam com mais conhecimentos sobre mineração que seus proprietários. Mas a febre do ouro promoveu uma corrida desordenada, com centenas de pessoas abandonando suas cidades, inclusive religiosos e portugueses, a ponto de o rei de Portugal limitar o êxodo por decreto. No livro, Laurentino conta que a falta de um mínimo de estrutura dos locais de mineração para receber tantas pessoas resultou em ondas de miséria e fome, além de uma violência desenfreada – execuções eram comuns em qualquer lugar ou horário.  A corrida do ouro provocou ainda uma decisiva mudança de perfil do País. “O século 18 mostra como a escravidão foi importante na construção da identidade brasileira”, observa Laurentino. “Até então, era uma nação pouco populosa e concentrada no litoral, mas, com a mineração, centenas de milhares de pessoas se mudaram para o interior, consolidando as fronteiras que hoje conhecemos. E, com a vinda de escravos, a população brasileira se multiplicou em apenas 100 anos, período marcado pela construção dessa grande África brasileira.” A transformação com a chegada dos escravos foi decisiva não apenas na força de trabalho, mas também em hábitos religiosos, culinários, culturais e sociais. “Houve ainda a formação de quilombos, uma reestruturação da família urbana com presença de cativos nas residências e, nas artes, um bom exemplo são os mestres do barroco, quase todos negros.”

continua após a publicidade
Laurentino Gomes em foto de agosto de 2019 Foto: Alex Silva/Estadão

Tal movimentação resultou ainda em efeitos surpreendentes, como a aceitação da presença de escravos negros na sociedade brasileira como um fato normal. “A escravidão se tornou banal, corriqueira no Brasil daquela época”, observa Laurentino. “Até mesmo negros alforriados eram donos de escravos.” Ele aponta, como um bom exemplo, João de Oliveira, africano que se transformou em um grande traficante de cativos depois de acumular o dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Ou seja, tornou-se traficante para deixar de ser escravo. O crescimento dos processos de alforria, aliás, foi também marca desse fenômeno – cerca de 1% dos escravos brasileiros obtinha a própria liberdade anualmente, o que resultou em uma significativa população negra livre no País, maior do que em qualquer outro território escravista da América. Em meio às suas inúmeras pesquisas, Laurentino identificou o que pode ter sido a primeira descoberta de ouro, ainda no final do século 17. Segundo ele, um desconhecido descendente de escravos encontrou o que se identificou como “ouro finíssimo” em Minas Gerais, vendendo a descoberta por um preço abaixo da sua importância. “O único registro deste homem, que era negro ou mestiço, está no livro Cultura e Opulência do Brasil Pelas Suas Drogas e Minas, do padre jesuíta André João Antonil, do começo do século 18”, comenta o jornalista, reforçando a tese de como a memória negra e africana no País ocupa cada vez mais uma posição secundária. Isso permite, aliás, que Laurentino mostre como ficaram ultrapassadas duas visões a respeito do comportamento do escravo no Brasil – a do cativo passivo e apático, divulgada pelo sociólogo Gilberto Freyre, e a do negro em permanente estado de rebelião, tese defendida por teóricos marxistas já no século 20.  “Novos estudos têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do sistema escravista, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades”, escreve ele. “Os escravos lutavam por coisas concretas como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos, muitos deles de matriz africana.” Novamente, surge, como exemplo de uma figura fascinante, Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, escrava que, depois de alforriada, atingiu posição de destaque na sociedade mineira, especialmente por manter uma união consensual com um rico contratador de diamantes. Apesar da imagem de mulher voluptuosa e dominadora divulgada pelo cinema e TV, ela, na verdade, foi comprada por diversos senhores desde a tenra idade para servir de objeto sexual. “Ela teve 14 filhos, o primeiro ainda na adolescência, o que a fez perder rapidamente os encantos da juventude, pois não há sensualidade que resista”, comenta Laurentino. Segundo ele, mesmo nascida cativa, Chica, depois de conseguir sua alforria, foi proprietária de mais de cem escravos – e nunca se empenhou em libertá-los.

Capa do livro 'Escravidão - Volume II', de Laurentino Gomes Foto: Vilma Slomp/Divulgação
continua após a publicidade

Outro personagem de destaque do segundo volume de Escravidão é Elias Antônio Lopes, conhecido como Elias, o Turco. Um dos maiores traficantes de africanos escravizados da época, ele cedeu sua majestosa casa para a moradia de D. João VI, quando a comitiva portuguesa se mudou para o Brasil em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte. “Ele doou a casa – que depois abrigou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, destruído por um incêndio em setembro de 2018 – em troca de benfeitorias, como títulos de honrarias”, comenta Laurentino. “Isso sinaliza o foco do terceiro volume da série, que é a oficialização do toma lá dá cá, e Elias será a ponte para o novo livro.” Iniciada em 2019, a trilogia surge em um momento marcado por manifestações antirracistas, como a deflagrada pela morte de George Floyd, no ano passado. Mesmo assim, no País, há muito ainda o que se fazer. “A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21”, comenta. “Criamos mitos de democracia racial, quando ainda persiste a ideologia do negro inferior que justificou a escravidão, as redes sociais são inundadas por linguagem preconceituosa. No Brasil de hoje, o racismo é explícito mas também silencioso.”

Leia um trecho do livro Escravidão - Vol. 2

“A busca por ouro e diamantes mudaria radicalmente o perfil da ocupação do território. Entre 1700 e 1800 foram fundadas nada menos que 49 vilas, a maioria delas muito além da Serra do Mar em direção ao interior, caso de Vila Boa, atual cidade de Goiás, também conhecida como Goiás Velho, terra da poetisa Cora Coralina. Interligando essas novas localidades nasceria também uma extensa rede de comunicação por rios e caminhos, ao longo dos quais se estabeleceriam os chamados registros, pontos de fiscalização para coletas de impostos e combate ao contrabando. Ao todo, mais de cem desses registros foram criados durante o século 18. Alguns estavam situados em lugares longínquos, como Arrais, no sudoeste do atual Estado de Tocantins (...) Esses postos de fiscalização às vezes iam mudando de lugar à medida que os contrabandistas e sonegadores de impostos abriam novas rotas clandestinas para burlar os controles já estabelecidos.”

No início do século 18, o Brasil era um país que praticamente só olhava para o mar – as principais cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, eram litorâneas e a principal atividade econômica, cultivo da cana-de-açúcar, não invadia tanto o território. Mas foi nesse período que tudo mudou: com a descoberta das primeiras jazidas de ouro e diamante em regiões onde hoje são os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, houve um avanço populacional para o interior do País, fomentado principalmente pelo aumento da quantidade de escravos negros.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

“Estima-se que, no século 18, cerca de 600 mil escravos se envolveram na mineração de ouro e diamantes, o que representaria cerca de 20% do total de cativos africanos trazidos para o Brasil neste período”, observa o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que lança agora o segundo volume da trilogia Escravidão, uma detalhada pesquisa sobre a história da escravatura negra – o primeiro saiu em 2019 e o último está previsto para o próximo ano. Os escravos foram essenciais na construção da máquina de extração, pois muitos chegavam com mais conhecimentos sobre mineração que seus proprietários. Mas a febre do ouro promoveu uma corrida desordenada, com centenas de pessoas abandonando suas cidades, inclusive religiosos e portugueses, a ponto de o rei de Portugal limitar o êxodo por decreto. No livro, Laurentino conta que a falta de um mínimo de estrutura dos locais de mineração para receber tantas pessoas resultou em ondas de miséria e fome, além de uma violência desenfreada – execuções eram comuns em qualquer lugar ou horário.  A corrida do ouro provocou ainda uma decisiva mudança de perfil do País. “O século 18 mostra como a escravidão foi importante na construção da identidade brasileira”, observa Laurentino. “Até então, era uma nação pouco populosa e concentrada no litoral, mas, com a mineração, centenas de milhares de pessoas se mudaram para o interior, consolidando as fronteiras que hoje conhecemos. E, com a vinda de escravos, a população brasileira se multiplicou em apenas 100 anos, período marcado pela construção dessa grande África brasileira.” A transformação com a chegada dos escravos foi decisiva não apenas na força de trabalho, mas também em hábitos religiosos, culinários, culturais e sociais. “Houve ainda a formação de quilombos, uma reestruturação da família urbana com presença de cativos nas residências e, nas artes, um bom exemplo são os mestres do barroco, quase todos negros.”

Laurentino Gomes em foto de agosto de 2019 Foto: Alex Silva/Estadão

Tal movimentação resultou ainda em efeitos surpreendentes, como a aceitação da presença de escravos negros na sociedade brasileira como um fato normal. “A escravidão se tornou banal, corriqueira no Brasil daquela época”, observa Laurentino. “Até mesmo negros alforriados eram donos de escravos.” Ele aponta, como um bom exemplo, João de Oliveira, africano que se transformou em um grande traficante de cativos depois de acumular o dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Ou seja, tornou-se traficante para deixar de ser escravo. O crescimento dos processos de alforria, aliás, foi também marca desse fenômeno – cerca de 1% dos escravos brasileiros obtinha a própria liberdade anualmente, o que resultou em uma significativa população negra livre no País, maior do que em qualquer outro território escravista da América. Em meio às suas inúmeras pesquisas, Laurentino identificou o que pode ter sido a primeira descoberta de ouro, ainda no final do século 17. Segundo ele, um desconhecido descendente de escravos encontrou o que se identificou como “ouro finíssimo” em Minas Gerais, vendendo a descoberta por um preço abaixo da sua importância. “O único registro deste homem, que era negro ou mestiço, está no livro Cultura e Opulência do Brasil Pelas Suas Drogas e Minas, do padre jesuíta André João Antonil, do começo do século 18”, comenta o jornalista, reforçando a tese de como a memória negra e africana no País ocupa cada vez mais uma posição secundária. Isso permite, aliás, que Laurentino mostre como ficaram ultrapassadas duas visões a respeito do comportamento do escravo no Brasil – a do cativo passivo e apático, divulgada pelo sociólogo Gilberto Freyre, e a do negro em permanente estado de rebelião, tese defendida por teóricos marxistas já no século 20.  “Novos estudos têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do sistema escravista, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades”, escreve ele. “Os escravos lutavam por coisas concretas como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos, muitos deles de matriz africana.” Novamente, surge, como exemplo de uma figura fascinante, Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, escrava que, depois de alforriada, atingiu posição de destaque na sociedade mineira, especialmente por manter uma união consensual com um rico contratador de diamantes. Apesar da imagem de mulher voluptuosa e dominadora divulgada pelo cinema e TV, ela, na verdade, foi comprada por diversos senhores desde a tenra idade para servir de objeto sexual. “Ela teve 14 filhos, o primeiro ainda na adolescência, o que a fez perder rapidamente os encantos da juventude, pois não há sensualidade que resista”, comenta Laurentino. Segundo ele, mesmo nascida cativa, Chica, depois de conseguir sua alforria, foi proprietária de mais de cem escravos – e nunca se empenhou em libertá-los.

Capa do livro 'Escravidão - Volume II', de Laurentino Gomes Foto: Vilma Slomp/Divulgação

Outro personagem de destaque do segundo volume de Escravidão é Elias Antônio Lopes, conhecido como Elias, o Turco. Um dos maiores traficantes de africanos escravizados da época, ele cedeu sua majestosa casa para a moradia de D. João VI, quando a comitiva portuguesa se mudou para o Brasil em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte. “Ele doou a casa – que depois abrigou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, destruído por um incêndio em setembro de 2018 – em troca de benfeitorias, como títulos de honrarias”, comenta Laurentino. “Isso sinaliza o foco do terceiro volume da série, que é a oficialização do toma lá dá cá, e Elias será a ponte para o novo livro.” Iniciada em 2019, a trilogia surge em um momento marcado por manifestações antirracistas, como a deflagrada pela morte de George Floyd, no ano passado. Mesmo assim, no País, há muito ainda o que se fazer. “A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21”, comenta. “Criamos mitos de democracia racial, quando ainda persiste a ideologia do negro inferior que justificou a escravidão, as redes sociais são inundadas por linguagem preconceituosa. No Brasil de hoje, o racismo é explícito mas também silencioso.”

Leia um trecho do livro Escravidão - Vol. 2

“A busca por ouro e diamantes mudaria radicalmente o perfil da ocupação do território. Entre 1700 e 1800 foram fundadas nada menos que 49 vilas, a maioria delas muito além da Serra do Mar em direção ao interior, caso de Vila Boa, atual cidade de Goiás, também conhecida como Goiás Velho, terra da poetisa Cora Coralina. Interligando essas novas localidades nasceria também uma extensa rede de comunicação por rios e caminhos, ao longo dos quais se estabeleceriam os chamados registros, pontos de fiscalização para coletas de impostos e combate ao contrabando. Ao todo, mais de cem desses registros foram criados durante o século 18. Alguns estavam situados em lugares longínquos, como Arrais, no sudoeste do atual Estado de Tocantins (...) Esses postos de fiscalização às vezes iam mudando de lugar à medida que os contrabandistas e sonegadores de impostos abriam novas rotas clandestinas para burlar os controles já estabelecidos.”

No início do século 18, o Brasil era um país que praticamente só olhava para o mar – as principais cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, eram litorâneas e a principal atividade econômica, cultivo da cana-de-açúcar, não invadia tanto o território. Mas foi nesse período que tudo mudou: com a descoberta das primeiras jazidas de ouro e diamante em regiões onde hoje são os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, houve um avanço populacional para o interior do País, fomentado principalmente pelo aumento da quantidade de escravos negros.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

“Estima-se que, no século 18, cerca de 600 mil escravos se envolveram na mineração de ouro e diamantes, o que representaria cerca de 20% do total de cativos africanos trazidos para o Brasil neste período”, observa o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que lança agora o segundo volume da trilogia Escravidão, uma detalhada pesquisa sobre a história da escravatura negra – o primeiro saiu em 2019 e o último está previsto para o próximo ano. Os escravos foram essenciais na construção da máquina de extração, pois muitos chegavam com mais conhecimentos sobre mineração que seus proprietários. Mas a febre do ouro promoveu uma corrida desordenada, com centenas de pessoas abandonando suas cidades, inclusive religiosos e portugueses, a ponto de o rei de Portugal limitar o êxodo por decreto. No livro, Laurentino conta que a falta de um mínimo de estrutura dos locais de mineração para receber tantas pessoas resultou em ondas de miséria e fome, além de uma violência desenfreada – execuções eram comuns em qualquer lugar ou horário.  A corrida do ouro provocou ainda uma decisiva mudança de perfil do País. “O século 18 mostra como a escravidão foi importante na construção da identidade brasileira”, observa Laurentino. “Até então, era uma nação pouco populosa e concentrada no litoral, mas, com a mineração, centenas de milhares de pessoas se mudaram para o interior, consolidando as fronteiras que hoje conhecemos. E, com a vinda de escravos, a população brasileira se multiplicou em apenas 100 anos, período marcado pela construção dessa grande África brasileira.” A transformação com a chegada dos escravos foi decisiva não apenas na força de trabalho, mas também em hábitos religiosos, culinários, culturais e sociais. “Houve ainda a formação de quilombos, uma reestruturação da família urbana com presença de cativos nas residências e, nas artes, um bom exemplo são os mestres do barroco, quase todos negros.”

Laurentino Gomes em foto de agosto de 2019 Foto: Alex Silva/Estadão

Tal movimentação resultou ainda em efeitos surpreendentes, como a aceitação da presença de escravos negros na sociedade brasileira como um fato normal. “A escravidão se tornou banal, corriqueira no Brasil daquela época”, observa Laurentino. “Até mesmo negros alforriados eram donos de escravos.” Ele aponta, como um bom exemplo, João de Oliveira, africano que se transformou em um grande traficante de cativos depois de acumular o dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Ou seja, tornou-se traficante para deixar de ser escravo. O crescimento dos processos de alforria, aliás, foi também marca desse fenômeno – cerca de 1% dos escravos brasileiros obtinha a própria liberdade anualmente, o que resultou em uma significativa população negra livre no País, maior do que em qualquer outro território escravista da América. Em meio às suas inúmeras pesquisas, Laurentino identificou o que pode ter sido a primeira descoberta de ouro, ainda no final do século 17. Segundo ele, um desconhecido descendente de escravos encontrou o que se identificou como “ouro finíssimo” em Minas Gerais, vendendo a descoberta por um preço abaixo da sua importância. “O único registro deste homem, que era negro ou mestiço, está no livro Cultura e Opulência do Brasil Pelas Suas Drogas e Minas, do padre jesuíta André João Antonil, do começo do século 18”, comenta o jornalista, reforçando a tese de como a memória negra e africana no País ocupa cada vez mais uma posição secundária. Isso permite, aliás, que Laurentino mostre como ficaram ultrapassadas duas visões a respeito do comportamento do escravo no Brasil – a do cativo passivo e apático, divulgada pelo sociólogo Gilberto Freyre, e a do negro em permanente estado de rebelião, tese defendida por teóricos marxistas já no século 20.  “Novos estudos têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do sistema escravista, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades”, escreve ele. “Os escravos lutavam por coisas concretas como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos, muitos deles de matriz africana.” Novamente, surge, como exemplo de uma figura fascinante, Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, escrava que, depois de alforriada, atingiu posição de destaque na sociedade mineira, especialmente por manter uma união consensual com um rico contratador de diamantes. Apesar da imagem de mulher voluptuosa e dominadora divulgada pelo cinema e TV, ela, na verdade, foi comprada por diversos senhores desde a tenra idade para servir de objeto sexual. “Ela teve 14 filhos, o primeiro ainda na adolescência, o que a fez perder rapidamente os encantos da juventude, pois não há sensualidade que resista”, comenta Laurentino. Segundo ele, mesmo nascida cativa, Chica, depois de conseguir sua alforria, foi proprietária de mais de cem escravos – e nunca se empenhou em libertá-los.

Capa do livro 'Escravidão - Volume II', de Laurentino Gomes Foto: Vilma Slomp/Divulgação

Outro personagem de destaque do segundo volume de Escravidão é Elias Antônio Lopes, conhecido como Elias, o Turco. Um dos maiores traficantes de africanos escravizados da época, ele cedeu sua majestosa casa para a moradia de D. João VI, quando a comitiva portuguesa se mudou para o Brasil em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte. “Ele doou a casa – que depois abrigou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, destruído por um incêndio em setembro de 2018 – em troca de benfeitorias, como títulos de honrarias”, comenta Laurentino. “Isso sinaliza o foco do terceiro volume da série, que é a oficialização do toma lá dá cá, e Elias será a ponte para o novo livro.” Iniciada em 2019, a trilogia surge em um momento marcado por manifestações antirracistas, como a deflagrada pela morte de George Floyd, no ano passado. Mesmo assim, no País, há muito ainda o que se fazer. “A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21”, comenta. “Criamos mitos de democracia racial, quando ainda persiste a ideologia do negro inferior que justificou a escravidão, as redes sociais são inundadas por linguagem preconceituosa. No Brasil de hoje, o racismo é explícito mas também silencioso.”

Leia um trecho do livro Escravidão - Vol. 2

“A busca por ouro e diamantes mudaria radicalmente o perfil da ocupação do território. Entre 1700 e 1800 foram fundadas nada menos que 49 vilas, a maioria delas muito além da Serra do Mar em direção ao interior, caso de Vila Boa, atual cidade de Goiás, também conhecida como Goiás Velho, terra da poetisa Cora Coralina. Interligando essas novas localidades nasceria também uma extensa rede de comunicação por rios e caminhos, ao longo dos quais se estabeleceriam os chamados registros, pontos de fiscalização para coletas de impostos e combate ao contrabando. Ao todo, mais de cem desses registros foram criados durante o século 18. Alguns estavam situados em lugares longínquos, como Arrais, no sudoeste do atual Estado de Tocantins (...) Esses postos de fiscalização às vezes iam mudando de lugar à medida que os contrabandistas e sonegadores de impostos abriam novas rotas clandestinas para burlar os controles já estabelecidos.”

No início do século 18, o Brasil era um país que praticamente só olhava para o mar – as principais cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, eram litorâneas e a principal atividade econômica, cultivo da cana-de-açúcar, não invadia tanto o território. Mas foi nesse período que tudo mudou: com a descoberta das primeiras jazidas de ouro e diamante em regiões onde hoje são os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, houve um avanço populacional para o interior do País, fomentado principalmente pelo aumento da quantidade de escravos negros.

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

“Estima-se que, no século 18, cerca de 600 mil escravos se envolveram na mineração de ouro e diamantes, o que representaria cerca de 20% do total de cativos africanos trazidos para o Brasil neste período”, observa o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que lança agora o segundo volume da trilogia Escravidão, uma detalhada pesquisa sobre a história da escravatura negra – o primeiro saiu em 2019 e o último está previsto para o próximo ano. Os escravos foram essenciais na construção da máquina de extração, pois muitos chegavam com mais conhecimentos sobre mineração que seus proprietários. Mas a febre do ouro promoveu uma corrida desordenada, com centenas de pessoas abandonando suas cidades, inclusive religiosos e portugueses, a ponto de o rei de Portugal limitar o êxodo por decreto. No livro, Laurentino conta que a falta de um mínimo de estrutura dos locais de mineração para receber tantas pessoas resultou em ondas de miséria e fome, além de uma violência desenfreada – execuções eram comuns em qualquer lugar ou horário.  A corrida do ouro provocou ainda uma decisiva mudança de perfil do País. “O século 18 mostra como a escravidão foi importante na construção da identidade brasileira”, observa Laurentino. “Até então, era uma nação pouco populosa e concentrada no litoral, mas, com a mineração, centenas de milhares de pessoas se mudaram para o interior, consolidando as fronteiras que hoje conhecemos. E, com a vinda de escravos, a população brasileira se multiplicou em apenas 100 anos, período marcado pela construção dessa grande África brasileira.” A transformação com a chegada dos escravos foi decisiva não apenas na força de trabalho, mas também em hábitos religiosos, culinários, culturais e sociais. “Houve ainda a formação de quilombos, uma reestruturação da família urbana com presença de cativos nas residências e, nas artes, um bom exemplo são os mestres do barroco, quase todos negros.”

Laurentino Gomes em foto de agosto de 2019 Foto: Alex Silva/Estadão

Tal movimentação resultou ainda em efeitos surpreendentes, como a aceitação da presença de escravos negros na sociedade brasileira como um fato normal. “A escravidão se tornou banal, corriqueira no Brasil daquela época”, observa Laurentino. “Até mesmo negros alforriados eram donos de escravos.” Ele aponta, como um bom exemplo, João de Oliveira, africano que se transformou em um grande traficante de cativos depois de acumular o dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Ou seja, tornou-se traficante para deixar de ser escravo. O crescimento dos processos de alforria, aliás, foi também marca desse fenômeno – cerca de 1% dos escravos brasileiros obtinha a própria liberdade anualmente, o que resultou em uma significativa população negra livre no País, maior do que em qualquer outro território escravista da América. Em meio às suas inúmeras pesquisas, Laurentino identificou o que pode ter sido a primeira descoberta de ouro, ainda no final do século 17. Segundo ele, um desconhecido descendente de escravos encontrou o que se identificou como “ouro finíssimo” em Minas Gerais, vendendo a descoberta por um preço abaixo da sua importância. “O único registro deste homem, que era negro ou mestiço, está no livro Cultura e Opulência do Brasil Pelas Suas Drogas e Minas, do padre jesuíta André João Antonil, do começo do século 18”, comenta o jornalista, reforçando a tese de como a memória negra e africana no País ocupa cada vez mais uma posição secundária. Isso permite, aliás, que Laurentino mostre como ficaram ultrapassadas duas visões a respeito do comportamento do escravo no Brasil – a do cativo passivo e apático, divulgada pelo sociólogo Gilberto Freyre, e a do negro em permanente estado de rebelião, tese defendida por teóricos marxistas já no século 20.  “Novos estudos têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do sistema escravista, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades”, escreve ele. “Os escravos lutavam por coisas concretas como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos, muitos deles de matriz africana.” Novamente, surge, como exemplo de uma figura fascinante, Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, escrava que, depois de alforriada, atingiu posição de destaque na sociedade mineira, especialmente por manter uma união consensual com um rico contratador de diamantes. Apesar da imagem de mulher voluptuosa e dominadora divulgada pelo cinema e TV, ela, na verdade, foi comprada por diversos senhores desde a tenra idade para servir de objeto sexual. “Ela teve 14 filhos, o primeiro ainda na adolescência, o que a fez perder rapidamente os encantos da juventude, pois não há sensualidade que resista”, comenta Laurentino. Segundo ele, mesmo nascida cativa, Chica, depois de conseguir sua alforria, foi proprietária de mais de cem escravos – e nunca se empenhou em libertá-los.

Capa do livro 'Escravidão - Volume II', de Laurentino Gomes Foto: Vilma Slomp/Divulgação

Outro personagem de destaque do segundo volume de Escravidão é Elias Antônio Lopes, conhecido como Elias, o Turco. Um dos maiores traficantes de africanos escravizados da época, ele cedeu sua majestosa casa para a moradia de D. João VI, quando a comitiva portuguesa se mudou para o Brasil em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte. “Ele doou a casa – que depois abrigou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, destruído por um incêndio em setembro de 2018 – em troca de benfeitorias, como títulos de honrarias”, comenta Laurentino. “Isso sinaliza o foco do terceiro volume da série, que é a oficialização do toma lá dá cá, e Elias será a ponte para o novo livro.” Iniciada em 2019, a trilogia surge em um momento marcado por manifestações antirracistas, como a deflagrada pela morte de George Floyd, no ano passado. Mesmo assim, no País, há muito ainda o que se fazer. “A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21”, comenta. “Criamos mitos de democracia racial, quando ainda persiste a ideologia do negro inferior que justificou a escravidão, as redes sociais são inundadas por linguagem preconceituosa. No Brasil de hoje, o racismo é explícito mas também silencioso.”

Leia um trecho do livro Escravidão - Vol. 2

“A busca por ouro e diamantes mudaria radicalmente o perfil da ocupação do território. Entre 1700 e 1800 foram fundadas nada menos que 49 vilas, a maioria delas muito além da Serra do Mar em direção ao interior, caso de Vila Boa, atual cidade de Goiás, também conhecida como Goiás Velho, terra da poetisa Cora Coralina. Interligando essas novas localidades nasceria também uma extensa rede de comunicação por rios e caminhos, ao longo dos quais se estabeleceriam os chamados registros, pontos de fiscalização para coletas de impostos e combate ao contrabando. Ao todo, mais de cem desses registros foram criados durante o século 18. Alguns estavam situados em lugares longínquos, como Arrais, no sudoeste do atual Estado de Tocantins (...) Esses postos de fiscalização às vezes iam mudando de lugar à medida que os contrabandistas e sonegadores de impostos abriam novas rotas clandestinas para burlar os controles já estabelecidos.”

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.