A história do neurocirurgião que mergulhou na mente, na vida e na obra de Dostoievski


Edson Amâncio transforma sua obsessão pela biografia do escritor russo, que ele começou a conhecer melhor na faculdade ao descobrir que ele tinha epilepsia, no romance ‘Meu Dostoievski: Os Minutos Finais’

Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização: Correção:

Essa história começa mais de 60 anos atrás, na biblioteca pública de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, quando um garoto de 14 anos, já um leitor voraz e colecionador de gibis, circulando entre estantes sem se interessar especialmente por nenhum livro, se depara com Recordações da Casa dos Mortos. Foi o primeiro encontro com a obra de Fiódor Dostoievski (1821-1881). Edson Amâncio, nascido em Sacramento em 1948, ficou tão empolgado que perdeu as contas de quantas vezes o releu, até que seguiu adiante.

Algum tempo depois, em Uberaba, quando ele já cursava o quarto ano da faculdade de Medicina, voltou a ouvir, em plena aula de neurologia, o nome do autor russo. Dostoievski era apontado como a primeira pessoa a descrever uma crise epiléptica que era precedida de uma aura de alegria e prazer.

“Isso e foi tirado de O Idiota, que ele considerava como seu principal romance. O príncipe Míchkin, epiléptico, descreve uma crise e diz que daria a vida por aquele minuto que precede o ataque, por aquela sensação de alegria e prazer. Tem gente que ouve barulho, tem clarão luminoso, sente cheiro horrível, mas nunca, na Medicina, alguém tinha descrito isso - que o epiléptico pode sentir alegria e prazer. Na boca do príncipe Michkin. Dostoievski fala dele mesmo”, explica Amâncio.

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Edson Amâncio é neurologista, escritor e um grande leitor da obra de Dostoievski Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A partir daí, leu todas as biografias disponíveis e percorreu toda a obra de Dostoievski enquanto concluía sua formação. Amâncio se tornou um renomado neurocirurgião, referência na pesquisa de experiências de quase-morte (é autor de Experiências De Quase Morte (Eqms): Ciência, Mente E Cérebro, lançado pela Summus) e, ao longo de sua vida, seguiu os passos de Dostoievski - na Rússia em diferentes ocasiões (numa delas, levou até o compositor santista Gilberto Mendes para um café na casa-museu dedicada ao escritor), na França, na Inglaterra, na Suíça, enfim, aonde quer que ele - e seus personagens - tenham ido. E até onde o russo nunca pisou. Foi num desses lugares, a Índia, que o autor encontrou a chave de seu livro narrado justamente por um leitor-autor em busca de seu herói.

“Tem gente que tem muita mania. Eu só tenho essa”, brinca o médico, hoje com 75 anos, que se divide entre seus consultórios em Santos e em São Paulo, transita no círculo dostoievskiano da Rússia e ficou amigo de importantes figuras ligadas, lá, ao autor - a ponto de dedicar o livro que ele lança neste sábado, 9, à Vera Biron, diretora do museu literário Fiódor Mickhailovitch Dostoievski, em São Petersburgo, de emprestar de um quadro que ganhou de Ygor Knyazev, o marido dela, a imagem para a capa da obra e de receber o casal em sua casa.

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A biblioteca científica do neurologista e escritor Edson Amâncio, em sua casa, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Meu Dostoievski: Os Minutos Finais, o livro que ele autografa a partir das 17h na Livraria da Vila do Shopping Pamplona (Rua Pamplona, 1.704), é um romance baseado na biografia do escritor. Um quebra-cabeça que Amâncio foi montando ao longo dos anos com as peças que ele colheu aqui e ali e guardou em cadernos, álbuns de fotos, na estante de casa. Há muitos fatos reais ali, incluindo materiais inéditos e outras descobertas, e há muita invenção.

Amâncio conversou com o Estadão sobre seu projeto.

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Quem é o seu Dostoievski?

Um dos maiores escritores que já existiu. Freud o comparava a Shakespeare, embora o detestasse sob um certo ponto de vista. E dono de uma vida que é um grande romance. Eu quis falar sobre a vida dele.

Edson Amâncio descobriu Dostoievski por volta de 1962 e desde então dedica seu tempo livre a ler a obra do escritor russo e tudo o que já foi escrito sobre ele Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Você conheceu o autor na adolescência, depois o reencontrou na faculdade, quando soube da epilepsia. Foi essa condição que te fez mergulhar na obra dele? O que você esperava encontrar?

Eu fiquei profundamente envolvido com a literatura dele ao ler seu livro Recordações da Casa dos Mortos, que é a sua própria história dos anos em que ele passou na prisão siberiana. O segundo livro que li dele foi o primeiro que ele publicou, aos 23 anos, Gente Pobre. Bastou a leitura desses dois romances para nunca mais esquecê-lo. O reencontro como exemplo do epiléptico que apresenta aura de alegria e prazer, no curso de neurologia durante a faculdade, foi a gota d’água para ampliar meu interesse.

E o que encontrou?

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A partir daí comecei a ler as biografias. A primeira delas que tomei conhecimento foi escrita por um membro da Academia Francesa de Letras - Henri Troyat. Foi neste livro que consegui compreender a verdadeira dimensão do autor como romancista e conheci detalhes da sua atribulada vida, o que ampliou meu interesse.

O que mais te chama atenção na trajetória de Dostoievski?

Há dois pontos que gosto de ressaltar. Os extraordinários romances Gente Pobre, Recordações da Casa dos Mortos, O Idiota, Crime e Castigo, Os Demônios, Os Irmãos Karamázov, O Adolescente e as novelas, os contos e os artigos de jornais. Em segundo lugar a biografia. A principal foi escrita não por um russo, mas por americano, Joseph Frank. Ela foi publicada no Brasil pela Edusp em 5 volumes contendo cerca de 3 mil páginas e, com outra tradução, pela Companhia das Letras num volume único de cerca de 1.200 páginas. Ele tem outros biógrafos, entre eles um dos mais importantes analistas da obra do escritor russo, Leonid Grossman, além de inúmeros tradutores e críticos literários, franceses e ingleses. Acredito que a vida de Dostoievski, do nascimento em 1821 até sua morte em 1881, foi criteriosamente pesquisada por todos. Logo, não me faltou material para a compreensão desse monstro sagrado.

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O que se pode dizer sobre a epilepsia, e a epilepsia de Dostoievski?

Dostoievski foi o primeiro a descrever esse tipo de epilepsia. Antes dele, nenhum neurologista havia mencionado que um epiléptico pode sentir alegria e prazer nos segundos que antecedem o ataque. No romance O Idiota, o personagem principal, o Príncipe Michkin, apresenta esse tipo de epilepsia e, pelas palavras de Dostoievski, ele diz: “por um momento desses eu daria a própria vida”, tão grande era o êxtase no início do ataque. Em sua inúmera correspondência, Dostoievski chega a anotar: “Eu sei porque Maomé dizia que visitava o paraíso. Ele tinha a mesma doença que eu: a epilepsia”. Só muitos anos depois, já no começo do século 20, os médicos começaram a identificar casos de pacientes com epilepsia que apresentavam aura com alegria e prazer. Esta é a contribuição involuntária de Dostoievski à medicina. Todos os seus biógrafos concordam que ele teve cerca de 400 ataques epilépticos durante a vida, pois não havia tratamento eficaz.

Como podemos olhar para a obra do escritor à luz dessa doença? Ela aparece em alguns textos, mas interfere de alguma forma na produção, nos processos, nos temas? Ou o mais importante é o fato de ele ter criado o que criou apesar da epilepsia?

Há ainda alguma polêmica entre os exegetas sobre criatividade e epilepsia. Alguns, certamente pouco informados do ponto de vista científico, teimam em atribuir a genialidade de Dostoievski à epilepsia. Discordo frontalmente desse argumento. Se fosse verdade essa afirmativa de que ele era gênio por ser epiléptico, deveríamos erigir um monumento à epilepsia. Meu ponto de vista, com o qual concordam os principais neurologistas que conhecem sua obra e sua vida, são enfáticos ao afirmarem: Dostoievski era um gênio, apesar da sua epilepsia, pois é uma doença que incapacita temporariamente. Note-se que a epilepsia de Dostoievski tinha um caráter hereditário, seu filho Alexey morreu ainda quando criança durante um ataque de epilepsia, doença herdada do pai, nas palavras de sua esposa, Anna Dostoiévskaia.

Você citou Freud. Ele dizia que escritores criativos eram aliados importantes da psicanálise porque conheciam profundamente a alma humana e antecipavam saberes que pesquisadores tardariam a nomear. Como a literatura de Dostoievski ajudou também a medicina?

A presença de Freud na biografia de Dostoievski foi seriamente questionada. Freud escreveu um artigo que se tornou famoso, Dostoievski e o Parricídio, no qual afirma, sem ter quase nenhuma informação da biografia de Dostoievski, que ele não era epiléptico e sim histérico, que sua primeira crise aconteceu quando ele soube da morte do pai por assassinato. Na verdade, Freud fez uma complexa construção a partir da suposta reação de Dostoievski à notícia do assassinato, o qual, de acordo com a teoria psicanalítica, realizou os impulsos parricidas que alimentava por causa da rivalidade edipiana, mas reprimia o tempo todo. Tomado pela culpa ao saber da notícia, que concretizou seus desejos mais secretos e insuportáveis, puniu-se com sua primeira crise epiléptica verdadeira. E que durante a prisão, com o pai agora morto, não havia motivo para outras crises. Ela já estava sendo punido pelo paizinho o Czar. Tudo isso é pura especulação. Dostoievski teve suas primeiras crises ainda na adolescência e teve várias crises durante a prisão. Freud tinha uma birra especial com Dostoievski. Supostamente por ter sido Dostoievski o primeiro a falar, em Os Irmãos Karamazov, do chamado pai da horda primitiva, teoria muita cara a Freud em Totem e Tabu.

Como conciliar medicina e literatura? Que espaço a literatura e Dostoievski ocupam em sua vida?

De certa forma consegui, até aqui, conciliar medicina e literatura. Creio que meu interesse pela literatura teve enorme influência no meu trabalho profissional como médico - pelo menos deu origem a quase todos os livros que publiquei anteriormente (O Homem Que Fazia Chover e Outras Histórias Inventadas pela Mente, Minha Cara Impune, Experiência de Quase Morte (EQM): Ciência, Mente e Cérebro). Dostoievski (ele próprio) ou seus personagens emblemáticos (quase todos) estão presentes em muitos dos pacientes que atendo no dia a dia. Tenho casos de epilepsia com aura de alegria e prazer publicados em revistas científicas e escrevi Dostoievski e a Síndrome de Stendhal, onde levanto a hipótese de que Dostoievski teve a síndrome diante do quadro de Holbein, O Cristo Morto, no museu da Basileia.

Edson Amâncio tem uma reprodução da tela O Cristo Morto, que, segundo ele, fez com que Dostoievski sofresse, ao vê-la, da Síndrome de Stendhall Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O livro te liberta um pouco de Dostoievski, dessa obsessão, dessa busca?

A publicação de qualquer livro é uma espécie de libertação. Meu Dostoievski, segundo minha intenção, não é meu final de carreira. Meu interesse por seus romances e sua vida não acaba aqui.

O que Dostoievski te ensinou?

Dostoievski me ensinou prezar a liberdade acima de tudo, que a perversidade humana não tem limites, que o perdão é indispensável e que há esperança na sobrevivência após a morte.

Meu Dostoievski: Os Minutos Finais

  • Autor: Edson Amâncio
  • Editora: Letra Selvagem (250 págs,; R$ 80)
  • Lançamento: Sábado (9), às 17h, na Livraria da Vila (Rua Pamplona, 1.704)

Essa história começa mais de 60 anos atrás, na biblioteca pública de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, quando um garoto de 14 anos, já um leitor voraz e colecionador de gibis, circulando entre estantes sem se interessar especialmente por nenhum livro, se depara com Recordações da Casa dos Mortos. Foi o primeiro encontro com a obra de Fiódor Dostoievski (1821-1881). Edson Amâncio, nascido em Sacramento em 1948, ficou tão empolgado que perdeu as contas de quantas vezes o releu, até que seguiu adiante.

Algum tempo depois, em Uberaba, quando ele já cursava o quarto ano da faculdade de Medicina, voltou a ouvir, em plena aula de neurologia, o nome do autor russo. Dostoievski era apontado como a primeira pessoa a descrever uma crise epiléptica que era precedida de uma aura de alegria e prazer.

“Isso e foi tirado de O Idiota, que ele considerava como seu principal romance. O príncipe Míchkin, epiléptico, descreve uma crise e diz que daria a vida por aquele minuto que precede o ataque, por aquela sensação de alegria e prazer. Tem gente que ouve barulho, tem clarão luminoso, sente cheiro horrível, mas nunca, na Medicina, alguém tinha descrito isso - que o epiléptico pode sentir alegria e prazer. Na boca do príncipe Michkin. Dostoievski fala dele mesmo”, explica Amâncio.

Edson Amâncio é neurologista, escritor e um grande leitor da obra de Dostoievski Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A partir daí, leu todas as biografias disponíveis e percorreu toda a obra de Dostoievski enquanto concluía sua formação. Amâncio se tornou um renomado neurocirurgião, referência na pesquisa de experiências de quase-morte (é autor de Experiências De Quase Morte (Eqms): Ciência, Mente E Cérebro, lançado pela Summus) e, ao longo de sua vida, seguiu os passos de Dostoievski - na Rússia em diferentes ocasiões (numa delas, levou até o compositor santista Gilberto Mendes para um café na casa-museu dedicada ao escritor), na França, na Inglaterra, na Suíça, enfim, aonde quer que ele - e seus personagens - tenham ido. E até onde o russo nunca pisou. Foi num desses lugares, a Índia, que o autor encontrou a chave de seu livro narrado justamente por um leitor-autor em busca de seu herói.

“Tem gente que tem muita mania. Eu só tenho essa”, brinca o médico, hoje com 75 anos, que se divide entre seus consultórios em Santos e em São Paulo, transita no círculo dostoievskiano da Rússia e ficou amigo de importantes figuras ligadas, lá, ao autor - a ponto de dedicar o livro que ele lança neste sábado, 9, à Vera Biron, diretora do museu literário Fiódor Mickhailovitch Dostoievski, em São Petersburgo, de emprestar de um quadro que ganhou de Ygor Knyazev, o marido dela, a imagem para a capa da obra e de receber o casal em sua casa.

A biblioteca científica do neurologista e escritor Edson Amâncio, em sua casa, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Meu Dostoievski: Os Minutos Finais, o livro que ele autografa a partir das 17h na Livraria da Vila do Shopping Pamplona (Rua Pamplona, 1.704), é um romance baseado na biografia do escritor. Um quebra-cabeça que Amâncio foi montando ao longo dos anos com as peças que ele colheu aqui e ali e guardou em cadernos, álbuns de fotos, na estante de casa. Há muitos fatos reais ali, incluindo materiais inéditos e outras descobertas, e há muita invenção.

Amâncio conversou com o Estadão sobre seu projeto.

Quem é o seu Dostoievski?

Um dos maiores escritores que já existiu. Freud o comparava a Shakespeare, embora o detestasse sob um certo ponto de vista. E dono de uma vida que é um grande romance. Eu quis falar sobre a vida dele.

Edson Amâncio descobriu Dostoievski por volta de 1962 e desde então dedica seu tempo livre a ler a obra do escritor russo e tudo o que já foi escrito sobre ele Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Você conheceu o autor na adolescência, depois o reencontrou na faculdade, quando soube da epilepsia. Foi essa condição que te fez mergulhar na obra dele? O que você esperava encontrar?

Eu fiquei profundamente envolvido com a literatura dele ao ler seu livro Recordações da Casa dos Mortos, que é a sua própria história dos anos em que ele passou na prisão siberiana. O segundo livro que li dele foi o primeiro que ele publicou, aos 23 anos, Gente Pobre. Bastou a leitura desses dois romances para nunca mais esquecê-lo. O reencontro como exemplo do epiléptico que apresenta aura de alegria e prazer, no curso de neurologia durante a faculdade, foi a gota d’água para ampliar meu interesse.

E o que encontrou?

A partir daí comecei a ler as biografias. A primeira delas que tomei conhecimento foi escrita por um membro da Academia Francesa de Letras - Henri Troyat. Foi neste livro que consegui compreender a verdadeira dimensão do autor como romancista e conheci detalhes da sua atribulada vida, o que ampliou meu interesse.

O que mais te chama atenção na trajetória de Dostoievski?

Há dois pontos que gosto de ressaltar. Os extraordinários romances Gente Pobre, Recordações da Casa dos Mortos, O Idiota, Crime e Castigo, Os Demônios, Os Irmãos Karamázov, O Adolescente e as novelas, os contos e os artigos de jornais. Em segundo lugar a biografia. A principal foi escrita não por um russo, mas por americano, Joseph Frank. Ela foi publicada no Brasil pela Edusp em 5 volumes contendo cerca de 3 mil páginas e, com outra tradução, pela Companhia das Letras num volume único de cerca de 1.200 páginas. Ele tem outros biógrafos, entre eles um dos mais importantes analistas da obra do escritor russo, Leonid Grossman, além de inúmeros tradutores e críticos literários, franceses e ingleses. Acredito que a vida de Dostoievski, do nascimento em 1821 até sua morte em 1881, foi criteriosamente pesquisada por todos. Logo, não me faltou material para a compreensão desse monstro sagrado.

O que se pode dizer sobre a epilepsia, e a epilepsia de Dostoievski?

Dostoievski foi o primeiro a descrever esse tipo de epilepsia. Antes dele, nenhum neurologista havia mencionado que um epiléptico pode sentir alegria e prazer nos segundos que antecedem o ataque. No romance O Idiota, o personagem principal, o Príncipe Michkin, apresenta esse tipo de epilepsia e, pelas palavras de Dostoievski, ele diz: “por um momento desses eu daria a própria vida”, tão grande era o êxtase no início do ataque. Em sua inúmera correspondência, Dostoievski chega a anotar: “Eu sei porque Maomé dizia que visitava o paraíso. Ele tinha a mesma doença que eu: a epilepsia”. Só muitos anos depois, já no começo do século 20, os médicos começaram a identificar casos de pacientes com epilepsia que apresentavam aura com alegria e prazer. Esta é a contribuição involuntária de Dostoievski à medicina. Todos os seus biógrafos concordam que ele teve cerca de 400 ataques epilépticos durante a vida, pois não havia tratamento eficaz.

Como podemos olhar para a obra do escritor à luz dessa doença? Ela aparece em alguns textos, mas interfere de alguma forma na produção, nos processos, nos temas? Ou o mais importante é o fato de ele ter criado o que criou apesar da epilepsia?

Há ainda alguma polêmica entre os exegetas sobre criatividade e epilepsia. Alguns, certamente pouco informados do ponto de vista científico, teimam em atribuir a genialidade de Dostoievski à epilepsia. Discordo frontalmente desse argumento. Se fosse verdade essa afirmativa de que ele era gênio por ser epiléptico, deveríamos erigir um monumento à epilepsia. Meu ponto de vista, com o qual concordam os principais neurologistas que conhecem sua obra e sua vida, são enfáticos ao afirmarem: Dostoievski era um gênio, apesar da sua epilepsia, pois é uma doença que incapacita temporariamente. Note-se que a epilepsia de Dostoievski tinha um caráter hereditário, seu filho Alexey morreu ainda quando criança durante um ataque de epilepsia, doença herdada do pai, nas palavras de sua esposa, Anna Dostoiévskaia.

Você citou Freud. Ele dizia que escritores criativos eram aliados importantes da psicanálise porque conheciam profundamente a alma humana e antecipavam saberes que pesquisadores tardariam a nomear. Como a literatura de Dostoievski ajudou também a medicina?

A presença de Freud na biografia de Dostoievski foi seriamente questionada. Freud escreveu um artigo que se tornou famoso, Dostoievski e o Parricídio, no qual afirma, sem ter quase nenhuma informação da biografia de Dostoievski, que ele não era epiléptico e sim histérico, que sua primeira crise aconteceu quando ele soube da morte do pai por assassinato. Na verdade, Freud fez uma complexa construção a partir da suposta reação de Dostoievski à notícia do assassinato, o qual, de acordo com a teoria psicanalítica, realizou os impulsos parricidas que alimentava por causa da rivalidade edipiana, mas reprimia o tempo todo. Tomado pela culpa ao saber da notícia, que concretizou seus desejos mais secretos e insuportáveis, puniu-se com sua primeira crise epiléptica verdadeira. E que durante a prisão, com o pai agora morto, não havia motivo para outras crises. Ela já estava sendo punido pelo paizinho o Czar. Tudo isso é pura especulação. Dostoievski teve suas primeiras crises ainda na adolescência e teve várias crises durante a prisão. Freud tinha uma birra especial com Dostoievski. Supostamente por ter sido Dostoievski o primeiro a falar, em Os Irmãos Karamazov, do chamado pai da horda primitiva, teoria muita cara a Freud em Totem e Tabu.

Como conciliar medicina e literatura? Que espaço a literatura e Dostoievski ocupam em sua vida?

De certa forma consegui, até aqui, conciliar medicina e literatura. Creio que meu interesse pela literatura teve enorme influência no meu trabalho profissional como médico - pelo menos deu origem a quase todos os livros que publiquei anteriormente (O Homem Que Fazia Chover e Outras Histórias Inventadas pela Mente, Minha Cara Impune, Experiência de Quase Morte (EQM): Ciência, Mente e Cérebro). Dostoievski (ele próprio) ou seus personagens emblemáticos (quase todos) estão presentes em muitos dos pacientes que atendo no dia a dia. Tenho casos de epilepsia com aura de alegria e prazer publicados em revistas científicas e escrevi Dostoievski e a Síndrome de Stendhal, onde levanto a hipótese de que Dostoievski teve a síndrome diante do quadro de Holbein, O Cristo Morto, no museu da Basileia.

Edson Amâncio tem uma reprodução da tela O Cristo Morto, que, segundo ele, fez com que Dostoievski sofresse, ao vê-la, da Síndrome de Stendhall Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O livro te liberta um pouco de Dostoievski, dessa obsessão, dessa busca?

A publicação de qualquer livro é uma espécie de libertação. Meu Dostoievski, segundo minha intenção, não é meu final de carreira. Meu interesse por seus romances e sua vida não acaba aqui.

O que Dostoievski te ensinou?

Dostoievski me ensinou prezar a liberdade acima de tudo, que a perversidade humana não tem limites, que o perdão é indispensável e que há esperança na sobrevivência após a morte.

Meu Dostoievski: Os Minutos Finais

  • Autor: Edson Amâncio
  • Editora: Letra Selvagem (250 págs,; R$ 80)
  • Lançamento: Sábado (9), às 17h, na Livraria da Vila (Rua Pamplona, 1.704)

Essa história começa mais de 60 anos atrás, na biblioteca pública de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, quando um garoto de 14 anos, já um leitor voraz e colecionador de gibis, circulando entre estantes sem se interessar especialmente por nenhum livro, se depara com Recordações da Casa dos Mortos. Foi o primeiro encontro com a obra de Fiódor Dostoievski (1821-1881). Edson Amâncio, nascido em Sacramento em 1948, ficou tão empolgado que perdeu as contas de quantas vezes o releu, até que seguiu adiante.

Algum tempo depois, em Uberaba, quando ele já cursava o quarto ano da faculdade de Medicina, voltou a ouvir, em plena aula de neurologia, o nome do autor russo. Dostoievski era apontado como a primeira pessoa a descrever uma crise epiléptica que era precedida de uma aura de alegria e prazer.

“Isso e foi tirado de O Idiota, que ele considerava como seu principal romance. O príncipe Míchkin, epiléptico, descreve uma crise e diz que daria a vida por aquele minuto que precede o ataque, por aquela sensação de alegria e prazer. Tem gente que ouve barulho, tem clarão luminoso, sente cheiro horrível, mas nunca, na Medicina, alguém tinha descrito isso - que o epiléptico pode sentir alegria e prazer. Na boca do príncipe Michkin. Dostoievski fala dele mesmo”, explica Amâncio.

Edson Amâncio é neurologista, escritor e um grande leitor da obra de Dostoievski Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A partir daí, leu todas as biografias disponíveis e percorreu toda a obra de Dostoievski enquanto concluía sua formação. Amâncio se tornou um renomado neurocirurgião, referência na pesquisa de experiências de quase-morte (é autor de Experiências De Quase Morte (Eqms): Ciência, Mente E Cérebro, lançado pela Summus) e, ao longo de sua vida, seguiu os passos de Dostoievski - na Rússia em diferentes ocasiões (numa delas, levou até o compositor santista Gilberto Mendes para um café na casa-museu dedicada ao escritor), na França, na Inglaterra, na Suíça, enfim, aonde quer que ele - e seus personagens - tenham ido. E até onde o russo nunca pisou. Foi num desses lugares, a Índia, que o autor encontrou a chave de seu livro narrado justamente por um leitor-autor em busca de seu herói.

“Tem gente que tem muita mania. Eu só tenho essa”, brinca o médico, hoje com 75 anos, que se divide entre seus consultórios em Santos e em São Paulo, transita no círculo dostoievskiano da Rússia e ficou amigo de importantes figuras ligadas, lá, ao autor - a ponto de dedicar o livro que ele lança neste sábado, 9, à Vera Biron, diretora do museu literário Fiódor Mickhailovitch Dostoievski, em São Petersburgo, de emprestar de um quadro que ganhou de Ygor Knyazev, o marido dela, a imagem para a capa da obra e de receber o casal em sua casa.

A biblioteca científica do neurologista e escritor Edson Amâncio, em sua casa, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Meu Dostoievski: Os Minutos Finais, o livro que ele autografa a partir das 17h na Livraria da Vila do Shopping Pamplona (Rua Pamplona, 1.704), é um romance baseado na biografia do escritor. Um quebra-cabeça que Amâncio foi montando ao longo dos anos com as peças que ele colheu aqui e ali e guardou em cadernos, álbuns de fotos, na estante de casa. Há muitos fatos reais ali, incluindo materiais inéditos e outras descobertas, e há muita invenção.

Amâncio conversou com o Estadão sobre seu projeto.

Quem é o seu Dostoievski?

Um dos maiores escritores que já existiu. Freud o comparava a Shakespeare, embora o detestasse sob um certo ponto de vista. E dono de uma vida que é um grande romance. Eu quis falar sobre a vida dele.

Edson Amâncio descobriu Dostoievski por volta de 1962 e desde então dedica seu tempo livre a ler a obra do escritor russo e tudo o que já foi escrito sobre ele Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Você conheceu o autor na adolescência, depois o reencontrou na faculdade, quando soube da epilepsia. Foi essa condição que te fez mergulhar na obra dele? O que você esperava encontrar?

Eu fiquei profundamente envolvido com a literatura dele ao ler seu livro Recordações da Casa dos Mortos, que é a sua própria história dos anos em que ele passou na prisão siberiana. O segundo livro que li dele foi o primeiro que ele publicou, aos 23 anos, Gente Pobre. Bastou a leitura desses dois romances para nunca mais esquecê-lo. O reencontro como exemplo do epiléptico que apresenta aura de alegria e prazer, no curso de neurologia durante a faculdade, foi a gota d’água para ampliar meu interesse.

E o que encontrou?

A partir daí comecei a ler as biografias. A primeira delas que tomei conhecimento foi escrita por um membro da Academia Francesa de Letras - Henri Troyat. Foi neste livro que consegui compreender a verdadeira dimensão do autor como romancista e conheci detalhes da sua atribulada vida, o que ampliou meu interesse.

O que mais te chama atenção na trajetória de Dostoievski?

Há dois pontos que gosto de ressaltar. Os extraordinários romances Gente Pobre, Recordações da Casa dos Mortos, O Idiota, Crime e Castigo, Os Demônios, Os Irmãos Karamázov, O Adolescente e as novelas, os contos e os artigos de jornais. Em segundo lugar a biografia. A principal foi escrita não por um russo, mas por americano, Joseph Frank. Ela foi publicada no Brasil pela Edusp em 5 volumes contendo cerca de 3 mil páginas e, com outra tradução, pela Companhia das Letras num volume único de cerca de 1.200 páginas. Ele tem outros biógrafos, entre eles um dos mais importantes analistas da obra do escritor russo, Leonid Grossman, além de inúmeros tradutores e críticos literários, franceses e ingleses. Acredito que a vida de Dostoievski, do nascimento em 1821 até sua morte em 1881, foi criteriosamente pesquisada por todos. Logo, não me faltou material para a compreensão desse monstro sagrado.

O que se pode dizer sobre a epilepsia, e a epilepsia de Dostoievski?

Dostoievski foi o primeiro a descrever esse tipo de epilepsia. Antes dele, nenhum neurologista havia mencionado que um epiléptico pode sentir alegria e prazer nos segundos que antecedem o ataque. No romance O Idiota, o personagem principal, o Príncipe Michkin, apresenta esse tipo de epilepsia e, pelas palavras de Dostoievski, ele diz: “por um momento desses eu daria a própria vida”, tão grande era o êxtase no início do ataque. Em sua inúmera correspondência, Dostoievski chega a anotar: “Eu sei porque Maomé dizia que visitava o paraíso. Ele tinha a mesma doença que eu: a epilepsia”. Só muitos anos depois, já no começo do século 20, os médicos começaram a identificar casos de pacientes com epilepsia que apresentavam aura com alegria e prazer. Esta é a contribuição involuntária de Dostoievski à medicina. Todos os seus biógrafos concordam que ele teve cerca de 400 ataques epilépticos durante a vida, pois não havia tratamento eficaz.

Como podemos olhar para a obra do escritor à luz dessa doença? Ela aparece em alguns textos, mas interfere de alguma forma na produção, nos processos, nos temas? Ou o mais importante é o fato de ele ter criado o que criou apesar da epilepsia?

Há ainda alguma polêmica entre os exegetas sobre criatividade e epilepsia. Alguns, certamente pouco informados do ponto de vista científico, teimam em atribuir a genialidade de Dostoievski à epilepsia. Discordo frontalmente desse argumento. Se fosse verdade essa afirmativa de que ele era gênio por ser epiléptico, deveríamos erigir um monumento à epilepsia. Meu ponto de vista, com o qual concordam os principais neurologistas que conhecem sua obra e sua vida, são enfáticos ao afirmarem: Dostoievski era um gênio, apesar da sua epilepsia, pois é uma doença que incapacita temporariamente. Note-se que a epilepsia de Dostoievski tinha um caráter hereditário, seu filho Alexey morreu ainda quando criança durante um ataque de epilepsia, doença herdada do pai, nas palavras de sua esposa, Anna Dostoiévskaia.

Você citou Freud. Ele dizia que escritores criativos eram aliados importantes da psicanálise porque conheciam profundamente a alma humana e antecipavam saberes que pesquisadores tardariam a nomear. Como a literatura de Dostoievski ajudou também a medicina?

A presença de Freud na biografia de Dostoievski foi seriamente questionada. Freud escreveu um artigo que se tornou famoso, Dostoievski e o Parricídio, no qual afirma, sem ter quase nenhuma informação da biografia de Dostoievski, que ele não era epiléptico e sim histérico, que sua primeira crise aconteceu quando ele soube da morte do pai por assassinato. Na verdade, Freud fez uma complexa construção a partir da suposta reação de Dostoievski à notícia do assassinato, o qual, de acordo com a teoria psicanalítica, realizou os impulsos parricidas que alimentava por causa da rivalidade edipiana, mas reprimia o tempo todo. Tomado pela culpa ao saber da notícia, que concretizou seus desejos mais secretos e insuportáveis, puniu-se com sua primeira crise epiléptica verdadeira. E que durante a prisão, com o pai agora morto, não havia motivo para outras crises. Ela já estava sendo punido pelo paizinho o Czar. Tudo isso é pura especulação. Dostoievski teve suas primeiras crises ainda na adolescência e teve várias crises durante a prisão. Freud tinha uma birra especial com Dostoievski. Supostamente por ter sido Dostoievski o primeiro a falar, em Os Irmãos Karamazov, do chamado pai da horda primitiva, teoria muita cara a Freud em Totem e Tabu.

Como conciliar medicina e literatura? Que espaço a literatura e Dostoievski ocupam em sua vida?

De certa forma consegui, até aqui, conciliar medicina e literatura. Creio que meu interesse pela literatura teve enorme influência no meu trabalho profissional como médico - pelo menos deu origem a quase todos os livros que publiquei anteriormente (O Homem Que Fazia Chover e Outras Histórias Inventadas pela Mente, Minha Cara Impune, Experiência de Quase Morte (EQM): Ciência, Mente e Cérebro). Dostoievski (ele próprio) ou seus personagens emblemáticos (quase todos) estão presentes em muitos dos pacientes que atendo no dia a dia. Tenho casos de epilepsia com aura de alegria e prazer publicados em revistas científicas e escrevi Dostoievski e a Síndrome de Stendhal, onde levanto a hipótese de que Dostoievski teve a síndrome diante do quadro de Holbein, O Cristo Morto, no museu da Basileia.

Edson Amâncio tem uma reprodução da tela O Cristo Morto, que, segundo ele, fez com que Dostoievski sofresse, ao vê-la, da Síndrome de Stendhall Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O livro te liberta um pouco de Dostoievski, dessa obsessão, dessa busca?

A publicação de qualquer livro é uma espécie de libertação. Meu Dostoievski, segundo minha intenção, não é meu final de carreira. Meu interesse por seus romances e sua vida não acaba aqui.

O que Dostoievski te ensinou?

Dostoievski me ensinou prezar a liberdade acima de tudo, que a perversidade humana não tem limites, que o perdão é indispensável e que há esperança na sobrevivência após a morte.

Meu Dostoievski: Os Minutos Finais

  • Autor: Edson Amâncio
  • Editora: Letra Selvagem (250 págs,; R$ 80)
  • Lançamento: Sábado (9), às 17h, na Livraria da Vila (Rua Pamplona, 1.704)

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