Ele sempre escreveu. Aos 7 anos, já rascunhava uma revista que distribuía no edifício em que morava em Washington. Jovem, rodou o mundo como diplomata, produzindo romances, ensaios e peças de teatro que resumem um universo tão intenso e cosmopolita quanto ele. A literatura, para o mexicano Carlos Fuentes, é mais que uma arte, é uma ferramenta para realizar mudanças. Próximo de completar 80 anos (terça-feira é a data exata), ele agora colhe os frutos - durante 14 dias, o México será tomado por representações referentes à sua obra, com exibições de filmes e palestras sobre literatura, educação e política, contando com mais de 70 personalidades, do presidente mexicano, Felipe Calderón, à ganhadora do Nobel de literatura, a sul-africana Nadine Gordimer; o Brasil será representado por Fernando Henrique Cardoso, Nélida Piñon e o editor Paulo Rocco. Autor de uma vasta obra, comprometida com o tempo e a história, Fuentes aproveitou a vivência em terras diversas para avaliar seu país (naturalizado mexicano, ele nasceu, na verdade, na Cidade do Panamá) e o mundo. Não sob o olhar de historiador, profissional incapaz de relatar toda a verdade, mas com o do escritor, que goza de liberdade plena. Com isso, redimensiona seus conceitos e oferece, na obra, uma América Latina mais nítida. Na expectativa da grande festa, Fuentes conversou por telefone com o Estado, desde Londres. Aos 80 anos, como o senhor ainda observa o ofício literário? Da minha parte, procuro manter o mesmo ímpeto criativo dos meus 18 anos (risos). Ou seja, com projetos de fôlego como meu mais recente livro, La Voluntad y la Fortuna, romance de quase 600 páginas. Portanto, não penso em parar tão cedo. Ao longo de sua carreira, a leitura de clássicos sempre foi decisiva, especialmente a de Dom Quixote, de Cervantes. Trata-se de um livro que não apenas ajudou a delinear a língua espanhola que hoje falamos como também (e principalmente) deu rumo à moderna literatura mundial, definindo o romance como um gênero. Na obra de Cervantes, estão presentes características do épico, do picaresco, do relato de costumes, do cômico. Enfim, uma capacidade enorme para abarcar todas as qualidades em apenas um livro. Isso em um país que, naquele momento, rejeitava a novidade. O paradoxo, aliás, é que ele, assim como Velázquez, surge durante a contra-reforma espanhola, ou seja, num sistema autoritário e dogmático por definição. E ambos decidem que a realidade pode fundar-se na imaginação. Isso, por si só, representa uma extraordinária revolução. Cervantes nos ensinou a ler, assim como Velázquez nos ensinou a ver. O senhor já comparou também as obras de Cervantes e Shakespeare, classificando-as em suas qualidades. Sim, são várias, pois foram contemporâneos e com a curiosidade de terem morrido na mesma data, 23 de abril de 1616. Há quem diga, aliás, que foram a mesma pessoa, o que não pode ser verdade. Mas, ambos, como poucos, conseguiram expressar com bastante intensidade as complexidades da condição humana. Outro autor de sua admiração é Honoré de Balzac, não? Sim. Descobri A Comédia Humana quando estava com 20 anos e fiquei tão fascinado que decidi estudar na própria França. Com ele, aprendi também detalhes importantes sobre a estrutura de um romance, os contrastes e as variedades que o distinguem como estilo literário. E ainda como não é necessário se prender ao gênero, ou seja, como um romance pode ser uma expressão múltipla e incluir estilos normalmente utilizados na poesia ou nos ensaios. Como o senhor acompanhou a evolução do romance ao longo de sua vida literária, como escritor e também como leitor? Pertenci a uma geração conhecida como boom latino-americano. Mas não se pode esquecer que, no período anterior, que compreende os anos 1950 e 60, surgiram autores como Juan Carlos Onetti, Alejo Carpentier, José Lezama Lima e Jorge Luis Borges, além de poetas como Pablo Neruda e Valejo. Autores que, com sua obra, confirmaram a máxima de que todos, latinos, somos partes de uma tradição, ou seja, que descendemos de um ponto comum. Assim, qualquer nova criação ou mesmo renovação não pode ser entendida isoladamente se não como fruto também da tradição. É o que garante, no meu entender, a força tanto da geração que participou do boom, como também de seus sucessores: a literatura feminina, o crack mexicano, o pós-boom, etc. Como artista, o senhor acredita que é possível ter uma personalidade religiosa mas não ter fé? Sim, creio ser possível ter um temperamento religioso, mesmo sem ter fé religiosa. Sobretudo, sem pertencer a uma Igreja. A dogmática pode ser muito estreita, até mesmo para limitar a extensão da fé. Daí minha simpatia em criar personagens que representam a possibilidade de se avançar com a fé a extremos do pensamento e da sensibilidade, extremos proibidos pelo dogma. É fácil para um artista trabalhar em um mundo globalizado? Tenho uma visão muito crítica da globalização. Especialmente pela falta de legalidade em relação aos trabalhadores imigrantes. Sentimos ainda a ausência de uma jurisdição internacional que coíba exageros e injustiças. Esse tipo de descontrole provocado pela globalização, aliás, é também responsável pela crise financeira mundial, em que se comprovou que o mercado não é a origem, nem o fim, muito mesmo a resposta para tudo. É preciso que o governo dos países tenha uma importância mais decisiva para botar ordem na desordem provocada pelas finanças. Qual a posição da América Latina nessa crise? Se há um aspecto positivo, é esse: pela primeira vez, não podemos ser culpados pela crise (risos). Argentina, México e outros países já foram acusados de bagunçar o mercado, mas agora a culpa é do Primeiro Mundo. Infelizmente, somos também afetados. E o que esperar do presidente Barack Obama? Apenas ele era capaz, entre os candidatos americanos, de enfrentar essa crise. McCain não conseguiria, especialmente com Sarah Palin como vice. Obama vai enfrentar uma realidade ameaçada, resultado da política desastrosa de George W. Bush. Seu governo deverá privilegiar o social e não a economia, o ser humano e não instituições financeiras. Ele terá ainda de recuperar um país arruinado, tarefa comparável à de Roosevelt em 1932. O destino de Bush agora é o esquecimento? Infelizmente, não. Seu governo foi tão catastrófico que Bush não será esquecido durante muitas gerações.