Análise|Adélia Prado, vencedora do Camões, herdou a ‘falsa simplicidade’ de Drummond e valorizou o cotidiano


Poeta mineira de 88 anos acaba de ser reconhecida com o mais importante prêmio da língua portuguesa

Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

A poeta Adélia Prado, 88, que na semana passada recebeu um dos prêmios mais importantes da língua portuguesa, o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), acaba de ser reconhecida com o Camões, prêmio conjunto oferecido anualmente pelo estado brasileiro e por Portugal.

Um prêmio como o Camões, oferecido a escritores que já cumpriram sua trajetória, deveria significar a coroação de uma trajetória literária e ser uma espécie de celebração coletiva da língua portuguesa e da cultura nacional e, portanto, não despertar qualquer controvérsia.

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No entanto, é curioso como o prêmio cedido à mineira de Divinópolis lança luz sobre o lugar da cultura letrada na sociedade brasileira. Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2023, Adélia tornou-se protagonista involuntária de um episódio digno de Dias Gomes. Um radialista de Divinópolis abriu uma entrevista ao vivo com o recém reeleito governador do Estado, presenteando-o com um exemplar dos 150 melhores poemas de Adélia, ao que o governador retrucou: “Muito bonito o livro. Vou fazer bom uso. Ela trabalha aqui?”. O desconcerto do entrevistador foi evidente, e ele se limitou a repetir a importância de Adélia e de dizer que era um presente da diretora da rádio.

A escritora Adélia Prado Foto: Wilton Junior/AE

O descompasso entre o governador e a mais importante poeta mineira encontra ecos recentes em relação a Estado e artistas em tempos recentes: em 2019 o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a entregar o prêmio a Chico Buarque, então premiado, e em 2016, o representante do então presidente Michel Temer, fez um discurso belicoso contra o premiado da vez, Raduan Nassar, o que fez a cerimônia terminar em bate boca.

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A cerimônia de entrega da honraria a Adélia promete ser nada controversa, mas não deixa de evidenciar como os prêmios recentes têm colocado de modo tão contundente a desconexão entre o poder estabelecido e os artistas da palavra, seja por oposição ideológica, seja por mero desconhecimento de sua trajetória.

O que também chama a atenção é que, nos 25 anos de existência do prêmio, Adélia Prado é a primeira brasileira que se dedica exclusivamente à poesia a recebê-lo. As conterrâneas Lygia Fagundes Telles, romancista e contista, e Rachel de Queiroz, cronista, romancista e contista, foram as duas outras laureadas. Entre os 15 prêmios destinados a autores do Brasil, portanto, apenas 20% premiaram autoras.

Adélia Prado, de 88 anos, venceu o Prêmio Camões 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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O fato é que o prêmio a Adélia coroa um projeto literário coerente que desde o início coloca em cena uma voz feminina, numa perspectiva doméstica e cotidiana. As gerações mais jovens talvez não se deixem arrebatar pela lírica de Adélia, menos disruptiva às convenções sociais do que desejariam os leitores ávidos por mudanças sociais. Veja-se o poema “Casamento”, do livro Terra de Santa Cruz (1981), por exemplo:

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto com a mão.O silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.Coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

Adélia Prado

A escritora Adélia Prado, em 1978. Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela sua fé cristã, uma das características de seu estilo. Foto: Acervo/Estadão
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É curioso perceber que mais do que um elogio da submissão, trata-se de um amor que se realiza no ambiente doméstico e, que pela presença dos elementos católicos, como o peixe e o matrimônio, pode-se lê-lo na chave de uma espécie de misticismo católico que remonta aos diálogos de Santa Teresa de Jesús e San Juan de la Cruz com o divino.

O matrimônio de Adélia é físico e espiritual. Já em seu primeiro livro, publicado quando a poeta tinha 40 anos, Bagagem, o eu-lírico rende tributo a suas divindades: o rei Salomão, cujos Cântico dos Cânticos e os Salmos, que aparecem em epígrafe às diversas partes do livro; e também Carlos Drummond de Andrade, padrinho da publicação e poeta emulado em dois poemas da obra: “Com licença poética”, que reescreve o célebre “Poema das sete faces” e “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”. Vejamos o primeiro:

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não sou feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos— dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

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Adélia Prado, em 1997 / Acervo Estadão Foto: Mabel Feres/MABEL FERES

Existe uma perspectiva arguta de Adélia sobre o que é ser mulher, que não é nem a do feminismo, nem a da submissão. Que reúne uma dimensão doméstica e uma dimensão da vida social. Uma vida amatória que retoma a tradição judaica: não a separação eros, para o amor físico e ágape, para o amor espiritual; e sim a prática da ahavá, que reúne em si os dois aspectos. Alumbramentos enfim que surgem do mundo comezinho, sempre considerando a perspectiva da mulher, como nesse poema, “Solar”, do livro O Coração Disparado (1977), que ganhou o Prêmio Jabuti:

Minha mãe cozinhava exatamente:arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.Mas cantava.

Adélia Prado

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O universo lírico de Adélia Prado traz uma perspectiva singularíssima: a da mulher católica que ama e sonha, que é perspicaz, que não se submete. Isso tudo na falsa simplicidade aprendida de Drummond, que não se submete a rimas e ritmos martelados. Traz sobretudo a possibilidade de uma visão generosa às coisas do cotidiano. Que ela seja nossa primeira poeta a receber o Prêmio Camões é motivo de celebração, em tempos em que a delicadeza parece ter sido abandonada como coisa anacrônica em nossa vida social. Um país em que Adélia Prado possa ser reconhecida, em vida, como uma de suas melhores poetas, é certamente um lugar menos inóspito para se viver.

A poeta Adélia Prado, 88, que na semana passada recebeu um dos prêmios mais importantes da língua portuguesa, o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), acaba de ser reconhecida com o Camões, prêmio conjunto oferecido anualmente pelo estado brasileiro e por Portugal.

Um prêmio como o Camões, oferecido a escritores que já cumpriram sua trajetória, deveria significar a coroação de uma trajetória literária e ser uma espécie de celebração coletiva da língua portuguesa e da cultura nacional e, portanto, não despertar qualquer controvérsia.

No entanto, é curioso como o prêmio cedido à mineira de Divinópolis lança luz sobre o lugar da cultura letrada na sociedade brasileira. Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2023, Adélia tornou-se protagonista involuntária de um episódio digno de Dias Gomes. Um radialista de Divinópolis abriu uma entrevista ao vivo com o recém reeleito governador do Estado, presenteando-o com um exemplar dos 150 melhores poemas de Adélia, ao que o governador retrucou: “Muito bonito o livro. Vou fazer bom uso. Ela trabalha aqui?”. O desconcerto do entrevistador foi evidente, e ele se limitou a repetir a importância de Adélia e de dizer que era um presente da diretora da rádio.

A escritora Adélia Prado Foto: Wilton Junior/AE

O descompasso entre o governador e a mais importante poeta mineira encontra ecos recentes em relação a Estado e artistas em tempos recentes: em 2019 o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a entregar o prêmio a Chico Buarque, então premiado, e em 2016, o representante do então presidente Michel Temer, fez um discurso belicoso contra o premiado da vez, Raduan Nassar, o que fez a cerimônia terminar em bate boca.

A cerimônia de entrega da honraria a Adélia promete ser nada controversa, mas não deixa de evidenciar como os prêmios recentes têm colocado de modo tão contundente a desconexão entre o poder estabelecido e os artistas da palavra, seja por oposição ideológica, seja por mero desconhecimento de sua trajetória.

O que também chama a atenção é que, nos 25 anos de existência do prêmio, Adélia Prado é a primeira brasileira que se dedica exclusivamente à poesia a recebê-lo. As conterrâneas Lygia Fagundes Telles, romancista e contista, e Rachel de Queiroz, cronista, romancista e contista, foram as duas outras laureadas. Entre os 15 prêmios destinados a autores do Brasil, portanto, apenas 20% premiaram autoras.

Adélia Prado, de 88 anos, venceu o Prêmio Camões 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O fato é que o prêmio a Adélia coroa um projeto literário coerente que desde o início coloca em cena uma voz feminina, numa perspectiva doméstica e cotidiana. As gerações mais jovens talvez não se deixem arrebatar pela lírica de Adélia, menos disruptiva às convenções sociais do que desejariam os leitores ávidos por mudanças sociais. Veja-se o poema “Casamento”, do livro Terra de Santa Cruz (1981), por exemplo:

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto com a mão.O silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.Coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

Adélia Prado

A escritora Adélia Prado, em 1978. Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela sua fé cristã, uma das características de seu estilo. Foto: Acervo/Estadão

É curioso perceber que mais do que um elogio da submissão, trata-se de um amor que se realiza no ambiente doméstico e, que pela presença dos elementos católicos, como o peixe e o matrimônio, pode-se lê-lo na chave de uma espécie de misticismo católico que remonta aos diálogos de Santa Teresa de Jesús e San Juan de la Cruz com o divino.

O matrimônio de Adélia é físico e espiritual. Já em seu primeiro livro, publicado quando a poeta tinha 40 anos, Bagagem, o eu-lírico rende tributo a suas divindades: o rei Salomão, cujos Cântico dos Cânticos e os Salmos, que aparecem em epígrafe às diversas partes do livro; e também Carlos Drummond de Andrade, padrinho da publicação e poeta emulado em dois poemas da obra: “Com licença poética”, que reescreve o célebre “Poema das sete faces” e “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”. Vejamos o primeiro:

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não sou feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos— dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Adélia Prado, em 1997 / Acervo Estadão Foto: Mabel Feres/MABEL FERES

Existe uma perspectiva arguta de Adélia sobre o que é ser mulher, que não é nem a do feminismo, nem a da submissão. Que reúne uma dimensão doméstica e uma dimensão da vida social. Uma vida amatória que retoma a tradição judaica: não a separação eros, para o amor físico e ágape, para o amor espiritual; e sim a prática da ahavá, que reúne em si os dois aspectos. Alumbramentos enfim que surgem do mundo comezinho, sempre considerando a perspectiva da mulher, como nesse poema, “Solar”, do livro O Coração Disparado (1977), que ganhou o Prêmio Jabuti:

Minha mãe cozinhava exatamente:arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.Mas cantava.

Adélia Prado

O universo lírico de Adélia Prado traz uma perspectiva singularíssima: a da mulher católica que ama e sonha, que é perspicaz, que não se submete. Isso tudo na falsa simplicidade aprendida de Drummond, que não se submete a rimas e ritmos martelados. Traz sobretudo a possibilidade de uma visão generosa às coisas do cotidiano. Que ela seja nossa primeira poeta a receber o Prêmio Camões é motivo de celebração, em tempos em que a delicadeza parece ter sido abandonada como coisa anacrônica em nossa vida social. Um país em que Adélia Prado possa ser reconhecida, em vida, como uma de suas melhores poetas, é certamente um lugar menos inóspito para se viver.

A poeta Adélia Prado, 88, que na semana passada recebeu um dos prêmios mais importantes da língua portuguesa, o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), acaba de ser reconhecida com o Camões, prêmio conjunto oferecido anualmente pelo estado brasileiro e por Portugal.

Um prêmio como o Camões, oferecido a escritores que já cumpriram sua trajetória, deveria significar a coroação de uma trajetória literária e ser uma espécie de celebração coletiva da língua portuguesa e da cultura nacional e, portanto, não despertar qualquer controvérsia.

No entanto, é curioso como o prêmio cedido à mineira de Divinópolis lança luz sobre o lugar da cultura letrada na sociedade brasileira. Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2023, Adélia tornou-se protagonista involuntária de um episódio digno de Dias Gomes. Um radialista de Divinópolis abriu uma entrevista ao vivo com o recém reeleito governador do Estado, presenteando-o com um exemplar dos 150 melhores poemas de Adélia, ao que o governador retrucou: “Muito bonito o livro. Vou fazer bom uso. Ela trabalha aqui?”. O desconcerto do entrevistador foi evidente, e ele se limitou a repetir a importância de Adélia e de dizer que era um presente da diretora da rádio.

A escritora Adélia Prado Foto: Wilton Junior/AE

O descompasso entre o governador e a mais importante poeta mineira encontra ecos recentes em relação a Estado e artistas em tempos recentes: em 2019 o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a entregar o prêmio a Chico Buarque, então premiado, e em 2016, o representante do então presidente Michel Temer, fez um discurso belicoso contra o premiado da vez, Raduan Nassar, o que fez a cerimônia terminar em bate boca.

A cerimônia de entrega da honraria a Adélia promete ser nada controversa, mas não deixa de evidenciar como os prêmios recentes têm colocado de modo tão contundente a desconexão entre o poder estabelecido e os artistas da palavra, seja por oposição ideológica, seja por mero desconhecimento de sua trajetória.

O que também chama a atenção é que, nos 25 anos de existência do prêmio, Adélia Prado é a primeira brasileira que se dedica exclusivamente à poesia a recebê-lo. As conterrâneas Lygia Fagundes Telles, romancista e contista, e Rachel de Queiroz, cronista, romancista e contista, foram as duas outras laureadas. Entre os 15 prêmios destinados a autores do Brasil, portanto, apenas 20% premiaram autoras.

Adélia Prado, de 88 anos, venceu o Prêmio Camões 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O fato é que o prêmio a Adélia coroa um projeto literário coerente que desde o início coloca em cena uma voz feminina, numa perspectiva doméstica e cotidiana. As gerações mais jovens talvez não se deixem arrebatar pela lírica de Adélia, menos disruptiva às convenções sociais do que desejariam os leitores ávidos por mudanças sociais. Veja-se o poema “Casamento”, do livro Terra de Santa Cruz (1981), por exemplo:

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto com a mão.O silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.Coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

Adélia Prado

A escritora Adélia Prado, em 1978. Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela sua fé cristã, uma das características de seu estilo. Foto: Acervo/Estadão

É curioso perceber que mais do que um elogio da submissão, trata-se de um amor que se realiza no ambiente doméstico e, que pela presença dos elementos católicos, como o peixe e o matrimônio, pode-se lê-lo na chave de uma espécie de misticismo católico que remonta aos diálogos de Santa Teresa de Jesús e San Juan de la Cruz com o divino.

O matrimônio de Adélia é físico e espiritual. Já em seu primeiro livro, publicado quando a poeta tinha 40 anos, Bagagem, o eu-lírico rende tributo a suas divindades: o rei Salomão, cujos Cântico dos Cânticos e os Salmos, que aparecem em epígrafe às diversas partes do livro; e também Carlos Drummond de Andrade, padrinho da publicação e poeta emulado em dois poemas da obra: “Com licença poética”, que reescreve o célebre “Poema das sete faces” e “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”. Vejamos o primeiro:

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não sou feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos— dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Adélia Prado, em 1997 / Acervo Estadão Foto: Mabel Feres/MABEL FERES

Existe uma perspectiva arguta de Adélia sobre o que é ser mulher, que não é nem a do feminismo, nem a da submissão. Que reúne uma dimensão doméstica e uma dimensão da vida social. Uma vida amatória que retoma a tradição judaica: não a separação eros, para o amor físico e ágape, para o amor espiritual; e sim a prática da ahavá, que reúne em si os dois aspectos. Alumbramentos enfim que surgem do mundo comezinho, sempre considerando a perspectiva da mulher, como nesse poema, “Solar”, do livro O Coração Disparado (1977), que ganhou o Prêmio Jabuti:

Minha mãe cozinhava exatamente:arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.Mas cantava.

Adélia Prado

O universo lírico de Adélia Prado traz uma perspectiva singularíssima: a da mulher católica que ama e sonha, que é perspicaz, que não se submete. Isso tudo na falsa simplicidade aprendida de Drummond, que não se submete a rimas e ritmos martelados. Traz sobretudo a possibilidade de uma visão generosa às coisas do cotidiano. Que ela seja nossa primeira poeta a receber o Prêmio Camões é motivo de celebração, em tempos em que a delicadeza parece ter sido abandonada como coisa anacrônica em nossa vida social. Um país em que Adélia Prado possa ser reconhecida, em vida, como uma de suas melhores poetas, é certamente um lugar menos inóspito para se viver.

A poeta Adélia Prado, 88, que na semana passada recebeu um dos prêmios mais importantes da língua portuguesa, o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), acaba de ser reconhecida com o Camões, prêmio conjunto oferecido anualmente pelo estado brasileiro e por Portugal.

Um prêmio como o Camões, oferecido a escritores que já cumpriram sua trajetória, deveria significar a coroação de uma trajetória literária e ser uma espécie de celebração coletiva da língua portuguesa e da cultura nacional e, portanto, não despertar qualquer controvérsia.

No entanto, é curioso como o prêmio cedido à mineira de Divinópolis lança luz sobre o lugar da cultura letrada na sociedade brasileira. Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2023, Adélia tornou-se protagonista involuntária de um episódio digno de Dias Gomes. Um radialista de Divinópolis abriu uma entrevista ao vivo com o recém reeleito governador do Estado, presenteando-o com um exemplar dos 150 melhores poemas de Adélia, ao que o governador retrucou: “Muito bonito o livro. Vou fazer bom uso. Ela trabalha aqui?”. O desconcerto do entrevistador foi evidente, e ele se limitou a repetir a importância de Adélia e de dizer que era um presente da diretora da rádio.

A escritora Adélia Prado Foto: Wilton Junior/AE

O descompasso entre o governador e a mais importante poeta mineira encontra ecos recentes em relação a Estado e artistas em tempos recentes: em 2019 o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a entregar o prêmio a Chico Buarque, então premiado, e em 2016, o representante do então presidente Michel Temer, fez um discurso belicoso contra o premiado da vez, Raduan Nassar, o que fez a cerimônia terminar em bate boca.

A cerimônia de entrega da honraria a Adélia promete ser nada controversa, mas não deixa de evidenciar como os prêmios recentes têm colocado de modo tão contundente a desconexão entre o poder estabelecido e os artistas da palavra, seja por oposição ideológica, seja por mero desconhecimento de sua trajetória.

O que também chama a atenção é que, nos 25 anos de existência do prêmio, Adélia Prado é a primeira brasileira que se dedica exclusivamente à poesia a recebê-lo. As conterrâneas Lygia Fagundes Telles, romancista e contista, e Rachel de Queiroz, cronista, romancista e contista, foram as duas outras laureadas. Entre os 15 prêmios destinados a autores do Brasil, portanto, apenas 20% premiaram autoras.

Adélia Prado, de 88 anos, venceu o Prêmio Camões 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O fato é que o prêmio a Adélia coroa um projeto literário coerente que desde o início coloca em cena uma voz feminina, numa perspectiva doméstica e cotidiana. As gerações mais jovens talvez não se deixem arrebatar pela lírica de Adélia, menos disruptiva às convenções sociais do que desejariam os leitores ávidos por mudanças sociais. Veja-se o poema “Casamento”, do livro Terra de Santa Cruz (1981), por exemplo:

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto com a mão.O silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.Coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

Adélia Prado

A escritora Adélia Prado, em 1978. Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela sua fé cristã, uma das características de seu estilo. Foto: Acervo/Estadão

É curioso perceber que mais do que um elogio da submissão, trata-se de um amor que se realiza no ambiente doméstico e, que pela presença dos elementos católicos, como o peixe e o matrimônio, pode-se lê-lo na chave de uma espécie de misticismo católico que remonta aos diálogos de Santa Teresa de Jesús e San Juan de la Cruz com o divino.

O matrimônio de Adélia é físico e espiritual. Já em seu primeiro livro, publicado quando a poeta tinha 40 anos, Bagagem, o eu-lírico rende tributo a suas divindades: o rei Salomão, cujos Cântico dos Cânticos e os Salmos, que aparecem em epígrafe às diversas partes do livro; e também Carlos Drummond de Andrade, padrinho da publicação e poeta emulado em dois poemas da obra: “Com licença poética”, que reescreve o célebre “Poema das sete faces” e “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”. Vejamos o primeiro:

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não sou feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos— dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Adélia Prado, em 1997 / Acervo Estadão Foto: Mabel Feres/MABEL FERES

Existe uma perspectiva arguta de Adélia sobre o que é ser mulher, que não é nem a do feminismo, nem a da submissão. Que reúne uma dimensão doméstica e uma dimensão da vida social. Uma vida amatória que retoma a tradição judaica: não a separação eros, para o amor físico e ágape, para o amor espiritual; e sim a prática da ahavá, que reúne em si os dois aspectos. Alumbramentos enfim que surgem do mundo comezinho, sempre considerando a perspectiva da mulher, como nesse poema, “Solar”, do livro O Coração Disparado (1977), que ganhou o Prêmio Jabuti:

Minha mãe cozinhava exatamente:arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.Mas cantava.

Adélia Prado

O universo lírico de Adélia Prado traz uma perspectiva singularíssima: a da mulher católica que ama e sonha, que é perspicaz, que não se submete. Isso tudo na falsa simplicidade aprendida de Drummond, que não se submete a rimas e ritmos martelados. Traz sobretudo a possibilidade de uma visão generosa às coisas do cotidiano. Que ela seja nossa primeira poeta a receber o Prêmio Camões é motivo de celebração, em tempos em que a delicadeza parece ter sido abandonada como coisa anacrônica em nossa vida social. Um país em que Adélia Prado possa ser reconhecida, em vida, como uma de suas melhores poetas, é certamente um lugar menos inóspito para se viver.

A poeta Adélia Prado, 88, que na semana passada recebeu um dos prêmios mais importantes da língua portuguesa, o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), acaba de ser reconhecida com o Camões, prêmio conjunto oferecido anualmente pelo estado brasileiro e por Portugal.

Um prêmio como o Camões, oferecido a escritores que já cumpriram sua trajetória, deveria significar a coroação de uma trajetória literária e ser uma espécie de celebração coletiva da língua portuguesa e da cultura nacional e, portanto, não despertar qualquer controvérsia.

No entanto, é curioso como o prêmio cedido à mineira de Divinópolis lança luz sobre o lugar da cultura letrada na sociedade brasileira. Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2023, Adélia tornou-se protagonista involuntária de um episódio digno de Dias Gomes. Um radialista de Divinópolis abriu uma entrevista ao vivo com o recém reeleito governador do Estado, presenteando-o com um exemplar dos 150 melhores poemas de Adélia, ao que o governador retrucou: “Muito bonito o livro. Vou fazer bom uso. Ela trabalha aqui?”. O desconcerto do entrevistador foi evidente, e ele se limitou a repetir a importância de Adélia e de dizer que era um presente da diretora da rádio.

A escritora Adélia Prado Foto: Wilton Junior/AE

O descompasso entre o governador e a mais importante poeta mineira encontra ecos recentes em relação a Estado e artistas em tempos recentes: em 2019 o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a entregar o prêmio a Chico Buarque, então premiado, e em 2016, o representante do então presidente Michel Temer, fez um discurso belicoso contra o premiado da vez, Raduan Nassar, o que fez a cerimônia terminar em bate boca.

A cerimônia de entrega da honraria a Adélia promete ser nada controversa, mas não deixa de evidenciar como os prêmios recentes têm colocado de modo tão contundente a desconexão entre o poder estabelecido e os artistas da palavra, seja por oposição ideológica, seja por mero desconhecimento de sua trajetória.

O que também chama a atenção é que, nos 25 anos de existência do prêmio, Adélia Prado é a primeira brasileira que se dedica exclusivamente à poesia a recebê-lo. As conterrâneas Lygia Fagundes Telles, romancista e contista, e Rachel de Queiroz, cronista, romancista e contista, foram as duas outras laureadas. Entre os 15 prêmios destinados a autores do Brasil, portanto, apenas 20% premiaram autoras.

Adélia Prado, de 88 anos, venceu o Prêmio Camões 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O fato é que o prêmio a Adélia coroa um projeto literário coerente que desde o início coloca em cena uma voz feminina, numa perspectiva doméstica e cotidiana. As gerações mais jovens talvez não se deixem arrebatar pela lírica de Adélia, menos disruptiva às convenções sociais do que desejariam os leitores ávidos por mudanças sociais. Veja-se o poema “Casamento”, do livro Terra de Santa Cruz (1981), por exemplo:

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto com a mão.O silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.Coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

Adélia Prado

A escritora Adélia Prado, em 1978. Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela sua fé cristã, uma das características de seu estilo. Foto: Acervo/Estadão

É curioso perceber que mais do que um elogio da submissão, trata-se de um amor que se realiza no ambiente doméstico e, que pela presença dos elementos católicos, como o peixe e o matrimônio, pode-se lê-lo na chave de uma espécie de misticismo católico que remonta aos diálogos de Santa Teresa de Jesús e San Juan de la Cruz com o divino.

O matrimônio de Adélia é físico e espiritual. Já em seu primeiro livro, publicado quando a poeta tinha 40 anos, Bagagem, o eu-lírico rende tributo a suas divindades: o rei Salomão, cujos Cântico dos Cânticos e os Salmos, que aparecem em epígrafe às diversas partes do livro; e também Carlos Drummond de Andrade, padrinho da publicação e poeta emulado em dois poemas da obra: “Com licença poética”, que reescreve o célebre “Poema das sete faces” e “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”. Vejamos o primeiro:

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não sou feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos— dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Adélia Prado, em 1997 / Acervo Estadão Foto: Mabel Feres/MABEL FERES

Existe uma perspectiva arguta de Adélia sobre o que é ser mulher, que não é nem a do feminismo, nem a da submissão. Que reúne uma dimensão doméstica e uma dimensão da vida social. Uma vida amatória que retoma a tradição judaica: não a separação eros, para o amor físico e ágape, para o amor espiritual; e sim a prática da ahavá, que reúne em si os dois aspectos. Alumbramentos enfim que surgem do mundo comezinho, sempre considerando a perspectiva da mulher, como nesse poema, “Solar”, do livro O Coração Disparado (1977), que ganhou o Prêmio Jabuti:

Minha mãe cozinhava exatamente:arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.Mas cantava.

Adélia Prado

O universo lírico de Adélia Prado traz uma perspectiva singularíssima: a da mulher católica que ama e sonha, que é perspicaz, que não se submete. Isso tudo na falsa simplicidade aprendida de Drummond, que não se submete a rimas e ritmos martelados. Traz sobretudo a possibilidade de uma visão generosa às coisas do cotidiano. Que ela seja nossa primeira poeta a receber o Prêmio Camões é motivo de celebração, em tempos em que a delicadeza parece ter sido abandonada como coisa anacrônica em nossa vida social. Um país em que Adélia Prado possa ser reconhecida, em vida, como uma de suas melhores poetas, é certamente um lugar menos inóspito para se viver.

Análise por Wilson Alves-Bezerra

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