Com As Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano pode ter sido o mais jovem ensaísta clássico de nossa América. Ele cresceu no meio de uma geração que viu a América Latina se inflamar com ânsias de progresso, arrebatamentos revolucionários e combinações políticas insólitas para tentar minar “o imperialismo” (percebido como o “polvo” que se apropriava das riquezas de nossas terras e mares) e que se organizou politicamente para enfrentá-lo.
As distintas versões dessa rebelião deixaram como herança ânsias de democracia naqueles países onde esta não existia, de democracia mais profunda onde ela já existia, e até se sinalizou o socialismo com diversos apelidos e inspirações como a meta final desses empenhos. Os confrontos terminaram mal para essas gerações jovens que, entusiasmadas, empreenderam distintos tipos de luta. O Cone Sul de Brasil, Uruguai, Argentina e Chile foi tomado por ditaduras brutais que, para salvar a democracia, a fizeram desaparecer.
Galeano unia a sua paixão revolucionária a uma técnica jornalística concisa e frontal, e certa fantasia lúdica, mordaz, que lhe permitia desmontar a estratégia do “imperialismo” quase como um espetáculo: eram tão variadas suas anedotas que o relato de nossos infortúnios desembocava em imagens e ideias didaticamente inesquecíveis.
O amor de Galeano pelos povos originários da América Latina, por suas sabedorias, suas resistências dramáticas, infiltrou muita poesia e ternura às páginas de quase todos seus livros.
Ele acompanhou o grande “boom” do romance latino-americano desde a vanguarda ensaística, e foi este complemento a nossos grandes narradores que permitiu uma maior compreensão desta maravilhosa expansão do imaginário latino-americano no mundo.
Da mesma geração de Galeano, era inevitável que compartilhássemos grandes jornadas de amizade, análise, sonhos e tristezas. Houve um duro exílio e Galeano era frequentemente convidado a proferir conferências na Europa. Eu o vi em ação meia dezena de vezes. Com a voz grave, a autoridade de sua sabedoria e o fino coloquialismo de suas expressões, ele rapidamente seduzia e conquistava a solidariedade de suas plateias.
As professoras e estudantes universitárias o consideravam muito atraente e Eduardo sabia apreciar as miradas que lhe dirigiam, respondendo-as com um sorriso simpático e o lampejo de seus incomparáveis e coquetes olhos azuis.
O Brasil tem algo a ver com nossas vidas. Antes de tudo, é preciso dizer que Galeano falava português e dava suas “palestras” nesse idioma, podendo discutir as obras de Jorge Amado ou as jogadas de Garrincha com os brasileiros sem nunca se atrapalhar com a língua. Dado meu comprovado amor pelo Brasil, sua gente, literatura, cinema e música, o fato de Galeano saber se expressar em português tão bem como em espanhol provocava em mim a mais cordial inveja. Nós nos vimos na Bienal do Livro de Brasília, e no novembro seguinte, comemoramos meu aniversário na encantadora Feira do Livro de Porto das Galinhas.
Eu o recebi em minha casa no Chile há um ou dois anos, pois tinha vindo a Santiago para receber um dos muitos prêmios que o mundo lhe tributou. Lembro-me de que nessa noitada entre amigos ele contou que havia sido operado de algo grave e que, ao acordar da anestesia, viu sentado na beirada de sua cama o presidente José Mujica.
Com um sorriso que não ocultou a emoção revivida desse momento, Galeano disse ao presidente: “E você está fazendo o que aqui? Vá governar!”. Como dizem no Brasil, “a gente se fala, Eduardo”. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK