O isolamento social, necessário para combater a pandemia da covid-19, pode ser aborrecido para alguns, mas se revelou plenamente produtivo para a escritora Ana Maria Machado – de uma só vez, uma das maiores autoras da literatura infantojuvenil do Brasil lança agora três novos livros: Igualzinho a Mim, A História que Eu Queria e O Mesmo Sonho, todos com a chancela da editora Moderna.
“Foram processos distintos de criação, pois alguns começaram a ser pensados há muitos anos, mas todos foram escritos durante a pandemia”, revela Ana Maria ao Estadão. “A ideia de O Mesmo Sonho, por exemplo, me acompanhava fazia 30 anos, pois nasceu a partir de uma pergunta feita pela minha filha, que era pequena: ‘Mãe, você pode entrar nos meus sonhos? Eles ficam no meu travesseiro?’ Aquilo era fascinante, mas eu não conseguia dar continuidade, o que só aconteceu durante a pandemia.”O Mesmo Sonho conta a história de Zeca, menino fascinado pelas fantasias que marcam o sono das pessoas – ele quer entender como acontecem, se podem se repetir, e por que cada um sonha de uma maneira tão distinta do outro. Ao descobrirem quais foram os sonhos de cada um, Zeca e sua turma decidem compartilhar as histórias, a fim de criar novos. Para isso, pretendem unir todos os sonhos, cada um do seu jeito, para criar um lugar muito feliz.Igualzinho a Mim também teve uma trajetória intensa até chegar ao formato ideal. Ana Maria conta que, no início, planejava uma história com bichos – primeiro, patinhos; depois, cachorrinhos –, mas a trama se esticava e não se sustentava. “Até que, num determinado dia da pandemia, me ocorreu que a história deveria ser contada quase como um poema, com texto metrificado. Aí, bastaram duas horas para o livro nascer.”
Assim, a obra trata das diferenças entre as pessoas, que são distintas sob diversos aspectos: cada um tem um cabelo, uma voz, uma cor de pele; há quem goste de correr, de pular, de assistir à televisão; há quem more em diferentes tipos de casas, de cidades e quem tenha famílias compostas das mais variadas maneiras. Apesar de tantas diferenças, que tornam cada indivíduo um ser único, existem também semelhanças: todos temos um coração no peito, os mesmos direitos e merecemos respeito – para principalmente ser do jeito que somos. “Eu pretendi discutir a noção de que somos parecidos”, conta a autora. “A criança, quando conhece outra pessoa, vê primeiro a semelhança, a igualdade, e faz isso com muita naturalidade. As diferenças vêm depois, à medida em que a criança cresce e se insere cada vez mais na sociedade. Vivemos um momento em que as diferenças são cada vez mais acentuadas, por isso eu quis valorizar as semelhanças.” A importância da solidariedade e de as pessoas serem mais colaborativas e criativas, respeitando a diversidade, inspirou o terceiro livro, A História que Eu Queria. Ana relembra que a ideia surgiu por acaso, em junho de 2019, quando estava na sede da editora Moderna, em São Paulo, para, entre outros assuntos, dar uma entrevista ao Estadão. “Eu estava no elevador quando, em uma parada, entraram duas moças e uma delas contava que a filha, ao descobrir onde a mãe trabalhava, ‘encomendou’ uma história de princesa.” Segundo a escritora, esse cardápio de histórias que as crianças pedem a incentivou a imaginar uma trama que mostrasse como os pequenos criam o próprio repertório, na maioria das vezes a partir de qualquer assunto, principalmente os mais banais. Dessa forma, A História que Eu Queria acompanha Nanda, Carol e Beto, três amigos fascinados por narrativas diversas – enquanto Carol gosta de contos de fadas com muitas princesas, Nanda adora as tramas com astronautas e que se passam no espaço, e Beto é fissurado por dinossauros. Como já devoraram tudo a respeito de suas preferências (até a internet não traz mais novidades), os amigos decidem criar eles próprios seus livros e contos, que nascem aos poucos, a partir da colaboração de cada um. “Eles inventam o que querem ler”, conta Ana Maria que, há anos, mantém contato direto com crianças. “O curioso é que as perguntas, em geral, são quase sempre as mesmas, e isso vale até para meninos e meninas de outros países, que falam outras línguas.” Segundo ela, o raciocínio de uma história bem contada – e bem assimilada pelos pequenos – está na letra que Chico Buarque criou para a canção João e Maria: “Agora eu era o herói / E o meu cavalo só falava inglês /A noiva do caubói / Era você além das outras três”. “Aqui, o jogo de dramatização é muito forte e incentiva a criatividade”, pondera. Com a pandemia e o isolamento social, Ana Maria há muito não conversa pessoalmente com crianças, especialmente os sobrinhos. “Sinto falta do contato afetivo”, afirma ela, que não imagina como este momento poderá afetar as crianças, mas algo poderá acontecer, principalmente a partir da observação que os menores fazem deste momento particular. “Nasci em 1941, durante a 2ª Guerra Mundial, e me lembro de ver minha mãe raspando o máximo que podia o papel que cobria a manteiga, pois havia racionamento. Tivemos, muitas vezes, de utilizar fogareiro à base de álcool para cozinhar”, comenta. “Criança é como uma esponja, absorve tudo com facilidade e o que mais preocupa hoje é a situação de pobreza coletiva no País.” Ganhadora, em 2000, do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil, a escritora tem ainda projetos para sua literatura dedicada a adultos: no segundo semestre, espera lançar Vestígios, pela editora Alfaguara, seu primeiro livro de contos em que as histórias se entrelaçam a partir de indícios deixados pelos personagens. Outra obra, essa pela editora Ática, vai trazer reflexões que Ana Maria criou a partir de reações de seus leitores. “São pensamentos sobre educação, sobre letras”, explica ela, que não tem (ou não quer revelar) ainda planos para seu aniversário de 80 anos, em dezembro, na véspera do Natal. “Não planejei nada”, disfarça ela, ocupante, desde 2003, da cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras, instituição que presidiu entre 2012 e 2013.