Em 2024, o ator e cineasta Selton Mello, que completa 51 anos no dia 30, ganhará as telas em três papéis completamente diferentes. Em Enterre Seus Mortos, dirigido por Marco Dutra, ele experimenta o gênero terror na pele de Edgar Wilson, homem simples envolvido em situações de teor fantástico. “É um dos personagens mais fascinantes da minha carreira”, conta, entusiasmado.
O deputado Rubens Paiva, desaparecido e morto pela repressão militar, é outro tipo marcante que será visto em Ainda Estou Aqui, longa do cineasta Walter Salles baseado no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, em que Mello contracena com Fernanda Torres. “Fizemos um trabalho, sobretudo, necessário, porque é preciso falar e relembrar da ditadura militar”, observa.
Entre o terror e o registro histórico, existe a alegria de reviver um de seus clássicos, o Chicó, na esperada comédia O Auto da Compadecida 2, dirigida por Guel Arraes e Flávia Lacerda, em que reencontra o ator Matheus Nachtergaele, o João Grilo. “Foi uma alegria imensa ver que a gente voou igualzinho 25 anos depois, num ritmo frenético, de grande capacidade criativa”, comenta.
Selton Mello
Trabalho, trabalho, trabalho. Mello confirma que, sim, o trabalho move a sua vida, é o lugar onde deposita tudo, suas dores, seu tesão, seu amor, medos e fragilidades. Não sobrou tempo para se dedicar com intensidade a outros territórios da vida. E se são quase 51 anos de idade, 40 deles foram de suor no rosto.
Tudo começou com a vontade de cantar em programas de auditório, vieram os comerciais, testes para integrar os grupos Balão Mágico e Dominó e, claro, as novelas, os filmes. “Às vezes, me dá vontade de parar, de seguir o exemplo do Daniel Day-Lewis”, diz. “É um cansaço de 40 anos de labuta, se me perguntam o que eu fiz aos 20 e poucos, só me lembro de estar em um set, de câmeras, de luz, me lembro pouquíssimo de praias, viagens, mas esse é um tipo de coisa que estou mudando”, compartilha.
Para celebrar a vida e as conquistas, o artista propôs uma festa diferente, para ele, seus amigos e seu público, uma autobiografia Eu me Lembro, que será lançada nesta segunda, 4, às 18h30, na Livraria da Vila, da Rua Fradique Coutinho, 915, em São Paulo. Só que Mello não se sentou e escreveu um livro. Ele convidou quarenta pessoas – “fabulosos terapeutas”, segundo define – para lhe fazerem perguntas e desafiá-lo a abrir memórias, vasculhar a intimidade sempre camuflada.
Tem das atrizes Débora Falabella, Marjorie Estiano, Larissa Manoela e Fernanda Montenegro ao cantor Moacyr Franco, passando pelos colegas Fábio Assunção, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Johnny Massaro e Rodrigo Santoro, o jornalista Pedro Bial e o ex-jogador de futebol Raí. Fernanda Torres, Tonico Pereira, Nachtergaele e o irmão, Danton Mello, não perguntaram nada. Mandaram cartas que o dono do livro comentou na sequência.
Entre as surpresas aparecem a atriz Alice Wegmann, que arranca confissões sobre a dependência do ator em relação aos inibidores de apetite e os efeitos depressivos gerados pelos remédios que o acompanharam desde jovem. Um dia, no começo da adolescência, ele ouviu de alguém nos bastidores: “você é um baita ator, mas não vai engordar, hein?”. O comentário ficou na cabeça, e o abuso da medicação fugiu do controle nas filmagens do longa Jean Charles (2008), quando atingiu 120 quilos, tomando boletas [drogas estimulantes] e comendo feito louco.
Mas Eu me Lembro, o livro, tem uma motivação pessoal que vai além da celebração. Desde o começo da carreira, Dona Selva, sua mãe, de 81 anos, foi a sua memória viva, sabendo de cor as histórias de cada passagem, cada trabalho, guardando as reportagens e admirando o filho prodígio. Há uma década, ela convive com o mal de Alzheimer e perdeu a fala, os movimentos e a visão.
“Não admito a hipótese de colocá-la em um lar de repouso, quero que minha mãe tenha essa passagem da vida na casa dela, onde tem as plantinhas dela, os quadros que pintou, porque ela sente onde está e o que está acontecendo”, afirma.
Mello reforça a importância do pai, o bancário aposentado Dalton, homem abençoado pela leveza, de quem herdou tudo o que chamam de “riso”. “São duas pessoas simples, do interior de Minas Gerais, de uma outra realidade, que vieram para São Paulo tentar uma vida melhor e caíram nesse universo junto comigo, o filho ator”, relembra.
Desde os 9 ou 10 anos, Mello contribuía para o orçamento familiar com as participações em publicidade e trabalhos artísticos, como as novelas Dona Santa (1982) e Braço de Ferro (1983), na Band. Um telefonema de um produtor da Globo fez a família largar tudo em São Paulo. “Todo mundo se foi para o Rio de Janeiro investir na minha carreira.”
Tremenda responsabilidade nas costas de um ator-mirim. Entre 1984 e 1985, o garoto conheceu a fama nacional em uma novela das oito, Corpo a Corpo, como o filho do casal protagonista (vivido por Antonio Fagundes e Débora Duarte) e, depois disso, amargou o ostracismo, um hiato de sete anos fora da televisão, enquanto o irmão, Danton, hoje com 48 anos, emplacava uma novela atrás da outra.
O adolescente frustrado encontrou trabalho no mercado dos dubladores. “Foi o momento mais duro da minha vida, apesar da rica experiência na dublagem, mas com muita tristeza por trás, porque tinha sido amputado na minha capacidade de atuar”, revela, que, em paralelo, estudou teatro e desenvolveu um lento processo de retomada da autoestima. “O teatro foi importante na minha vida, não só na minha carreira, foi onde pensei “eu sou bom! eu sou ator!”.
Escalado para a novela Pedra sobre Pedra (1992), Mello achou que não conseguiria trabalhar, tinha medo e chorava em casa. “Eu aprendi cedo que, hoje, você é o cara e, amanhã, não é mais, então, fui para a vida adulta, sabendo o que ia encontrar”, confessa. “Quando comentam comigo que ‘o filho quer ser ator’, sempre fico reticente, é uma vida difícil para uma criança porque, claro, vejo o lado bom de tudo que passei, mas teve tristeza, me achava inadequado e me causou muitos traumas.”
Nesta altura do campeonato, Mello celebra o privilégio de só aceitar os projetos que deseja muito fazer. “Médio prazer nem cabe mais, já fiz trabalhos de médio prazer e agora é só altíssimo prazer para me levar de novo a algum lugar”, avisa. Nas páginas do livro, fica claro que o Selton menino era muito parecido com o Selton maduro, artista consagrado, realizador de belos longas, como Feliz Natal (2008), O Palhaço (2011) e O Filme da Minha Vida (2017), que aprendeu a administrar as angústias e topou desvendar um pouco de sua intimidade.
“Eu tive a capacidade de manter esse meu lado menino como um anjo da guarda que me acompanhou a jornada inteira”, analisa. Mello observa preocupado o jeito como a garotada é tratada hoje, sem que haja respeito às individualidades e, muitas vezes, buscando remédios para igualá-los em um mesmo eixo. “Se eu fosse aquela criança hoje, talvez seria tratado como especial e me dessem remédios que impossibilitariam a capacidade de ser quem eu sou, mas, felizmente, preservei minha natureza, cuidei dela.”
Serviço
Selton Mello: Eu Me Lembro
- Editora: Jambô Editora
- Autor: Selton Mello
- 344 págs., R$ 79,90