Assombro e silêncio marcam livro premiado de Djaimilia Pereira de Almeida


'A Visão das Plantas' é centrado na figura de um ex-capitão de navio negreiro que volta a Portugal e cultiva um injevável jardim; debate marca o lançamento

Por Maria Fernanda Rodrigues

Djaimilia Pereira de Almeida conheceu Celestino, o personagem de A Visão das Plantas (Todavia), 15 anos atrás, num livro de Raul Brandão. Ele estava ali, em Os Pescadores, com toda sua contradição. Um capitão de navio negreiro que volta para casa, em Portugal, depois de cometer inimagináveis atrocidades.  Ele, então, passa a se ocupar do jardim de sua casa abandonada – abandonada porque sua mãe e as tias morreram enquanto ele cruzava o Atlântico levando africanos para serem escravizados no Brasil, enquanto ele trancava o porão do navio depois de um companheiro jogar cal sobre todos os cativos durante uma revolta, e eles morrerem asfixiados e serem jogados ao mar.

A Visão das Plantas é o terceiro livro publicado no Brasil desta portuguesa nascida em Angola em 1982. Ele ficou em segundo lugar no Prêmio Oceanos no ano passado (perdeu para Torto Arado). Em 2019, a autora ficou em primeiro, com Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras), sobre um pai e seu filho que nasceu com uma deformidade no pé. Eles partem para Portugal em busca de tratamento e nunca mais conseguem voltar para Angola. Sua estreia, Esse Cabelo (Leya; em breve em nova edição pela Todavia), a trouxe à Flip em 2017. 

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de 'A Vista das Plantas' Foto: Humberto Brito
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Djaimilia conversou com o Estadão por e-mail. 

Você estreou na literatura com uma obra mais pessoal, que é uma história compartilhada por tantas pessoas. Depois você amplia mais o olhar, muda de pessoa. Em ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, volta para Angola para então embarcar rumo a Portugal, um país tão conhecido de seus protagonistas e ao mesmo tempo tão inacessível. Agora, viaja alguns séculos para trás e nos leva para um momento que nos une e cujas marcas repercutem nos países africanos colonizados por Portugal, em Portugal e no Brasil. É uma coincidência que seja assim ou isso faz parte de um projeto, do resgate de uma história, da busca por uma identidade?

Não diria que faz parte de um projeto, porque não faço grandes planos, ou antes, só faço planos para um livro de cada vez. Reconheço que, desde Esse Cabelo, tenho feito um caminho de ampliação do olhar: da minha voz e pessoa para outras vozes e pessoas. E, no entanto, se alguma coisa une os vários livros e momentos até aqui é o modo como, por distantes que sejam ou pareçam, estou em cada história e em cada personagem. Se tivesse de encontrar um traço comum, diria que todos os livros que escrevi até ao momento, por outro lado, procuram apaziguar algum aspecto do meu caminho de leitora de outros livros.

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O que te interessa na literatura? O que te faz escrever, começar um novo livro?

A literatura é porventura o meu único grande interesse, que subjuga todos os outros. As outras coisas que me interessam interessam-me sob um ponto de vista literário. Na minha vida, funciona como contínuo de perguntas. O que me faz começar um livro novo é a necessidade de uma pergunta que me apoquenta, à qual não sei responder. A essas perguntas inquietantes chamo ‘fantasmas’. Livro a livro, parto com o intuito de ser capaz de as formular. Mas os livros ensinaram-me a amar aquilo que nelas me está vedado, a saber viver com o facto de que, na maioria dos casos, não conseguirei responder-lhes. Ensinam-me diariamente sobre esse mistério da humildade: perceber que o gozo está na pergunta e vem do fazer da pergunta; ajudam-me a viver com aquilo que na minha vida — e no mundo à minha volta — me é oculto.

Como a frase lida em ‘Os Pescadores’ ecoou em você e em que momento ela se transformou em ‘A Visão das Plantas’? Aliás, por que quis escrever essa história?

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Raul Brandão é o escritor português que mais admiro e Os Pescadores o livro que mais li. Desde a primeira leitura, há mais de 15 anos, as breves linhas sobre Celestino me assombram e fascinam. Voltei a esse parágrafo muitas vezes, muito antes de imaginar que viria algum dia a escrever livros. Quis escrever a sua história para perceber melhor a natureza desse fascínio e para apaziguar esse assombramento.

‘A Visão das Plantas’ é, na forma, um livro bastante diferente de ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’. Mas, em alguma medida, os dois falam sobre silêncios, sobre o que calamos e o abismo que cavamos com isso – que terá repercussão em nós, no nosso entorno e na grande história, e que deixará lacunas. Faz sentido?

Faz sentido, sim. De modos muito diferentes, ambos tratam o que não conhecemos, o que não dizemos, o que não percebemos, na nossa vida, e nas coisas à nossa volta. No caso de A Visão das Plantas, o silêncio é condição do jardim de Celestino, que o semeia sobre ele. O que me instiga, neste último caso, é a possibilidade de sermos acolhidos por aquilo que calamos, como Celestino é pelas suas vítimas, a possibilidade perturbadora de elas o abraçarem como mães aos seus filhos, ao invés de o assombrarem ou castigarem.

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Ao mesmo tempo em que Portugal não dá uma chance a Cartola e Aquiles, em ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, Celestino é recebido de volta, vive sua vida, é admirado por seu jardim e é presenteado com o esquecimento. É porque nos esquecemos do que se passou, como a cidade se esqueceu de Celestino, que não fomos – e não somos – capazes de elaborar nossa história, reparar as atrocidades cometidas e seguir adiante, com mais igualdade, respeito e justiça?

Não vejo Cartola e Celestino como as duas faces de um mesmo problema. São, em mim, dois enigmas, dois fantasmas, distintos, apenas indiretamente tangentes à história coletiva. Num caso, como no outro, a condição de possibilidade dos romances é aquilo que na vida de ambos não vemos respondido pelas dicotomias que usamos habitualmente para pensar sobre certos temas. Ambos fogem um pouco à regra, por assim dizer, e é nessa fuga que se constituem como indivíduos e como sensibilidades que justificam que se pense sobre eles. 

‘A Visão das Plantas’ retrata também as ambiguidades humanas. Uma pessoa que fez o que Celestino fez não só é capaz de continuar dormindo à noite como de criar um belo jardim, de dar vida e cuidar de suas plantas. Quem é Celestino para você e o que ele representa?

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Nunca olho para as personagens como representantes de uma ideia ou de um gênero de pessoa. Celestino interessa-me como possibilidade de pensamento e enquanto possibilidade humana, enquanto enigma acerca da justiça: poderemos nunca encontrar castigo, nunca nos redimirmos, nunca nos arrependermos nesta vida e, ainda assim, sentirmo-nos em casa no mundo e em paz conosco? Mas o meu ponto de vista sobre ele, o olhar com que o acerco de Celestino, tenta sempre uma suspensão do juízo (à maneira das plantas do seu jardim): como escritora, tento não julgar as minhas personagens, creio que é o único modo honesto de me aproximar delas e o único que ajuda a que elas se abram comigo.

Você já tinha passado um bom tempo lendo, estudando, escrevendo quando publicou seu primeiro livro há seis anos. A estreia foi festejada. Depois, vieram os prêmios. Como se sente hoje nesse ambiente? Como a escrita te desafia e qual é a sua ambição? 

Deixei de imaginar a minha vida sem escrever. O meu único desejo é capaz de perseverar, ser capaz de constância e continuidade, nunca me esquecendo do lugar de onde vim.

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Poderia comentar algo sobre seu novo livro, ‘As Telefones’?

As Telefones narra a relação telefônica entre Filomena e Solange, mãe e filha, ao longo de cerca de 30 anos. Afastadas, mutuamente incompreendidas, a distância fez delas mesmas telefones: mulheres sujeitas ao ruído e à interferência na linha, aos equívocos, a silêncios e a não ditos. Interessou-me pensar na forma como o meio que usamos para nos relacionarmos uns com os outros (neste caso, o telefone) transfigura a natureza das relações que temos uns com os outros e no fato de não existe amor sem obstáculo. 

Portugal começa a retomar, de novo, a vida desde o começo da pandemia. Como essa pandemia a tocou e o que aprendeu com ela?

Perdi o meu pai, durante o confinamento. Nada na minha vida será igual depois deste ano. Estou longe de perceber o que aprendi com a pandemia e julgo que demorarei muito tempo a entender este tempo, o que nos aconteceu e como nos transformou.

A VISÃO DAS PLANTAS

Autora: Djaimilia Pereira de Almeida Editora: Todavia (88 págs.; R$ 49,90; 29,90 o e-book) Lançamento: Hoje (13), às 19h, Stephanie Borges, Roberta Estrela D’Alva e Kalaf Epalanga conversam sobre o livro, com transmissão pelo YouTube, Facebook e Twitter da Todavia

Leia um trecho de A Visão das Plantas

“Noite abençoada. Acordou em casa, restaurado, após uma vida cheia. Mas a casa tinha mudado. Com as portas trancadas, a mobília coberta com lençóis, a toalha manchada de vinho sobre a mesa, a arca de roupa fechada a um canto, os reposteiros de veludo negro, esgarçados pela traça, tudo era outro e, ainda, o mesmo. Na penumbra, o volume dos móveis insinuava fantasmas. O pó, tornado um ser, animava o espaço, iluminado pela claridade através das frestas das janelas. A penumbra quase falava: respira, filho, chegaste. Um vestígio de alfazema seca perfumava o mofo. Ou seria cera? Os ouvidos sempre tinham sido melhores do que o nariz. Nenhum ruído, salvo os passos, a tactear o corredor. A lareira negra na qual restara o abafador de cobre, a panela de ferro na cinza pisada: gente muda. A mobília não saudou o seu regresso. Não tinha mais ninguém na vida. Sobrava-lhe a casa de jantar, a pequena saleta, os dois quartitos húmidos, a cozinha de tecto escuro aberta para a despensa, os frascos, caixas de farinha de milho bichada, garrafas de aguardente e o quintal, tomado pelas silvas, as urtigas e os cardos.”

Djaimilia Pereira de Almeida conheceu Celestino, o personagem de A Visão das Plantas (Todavia), 15 anos atrás, num livro de Raul Brandão. Ele estava ali, em Os Pescadores, com toda sua contradição. Um capitão de navio negreiro que volta para casa, em Portugal, depois de cometer inimagináveis atrocidades.  Ele, então, passa a se ocupar do jardim de sua casa abandonada – abandonada porque sua mãe e as tias morreram enquanto ele cruzava o Atlântico levando africanos para serem escravizados no Brasil, enquanto ele trancava o porão do navio depois de um companheiro jogar cal sobre todos os cativos durante uma revolta, e eles morrerem asfixiados e serem jogados ao mar.

A Visão das Plantas é o terceiro livro publicado no Brasil desta portuguesa nascida em Angola em 1982. Ele ficou em segundo lugar no Prêmio Oceanos no ano passado (perdeu para Torto Arado). Em 2019, a autora ficou em primeiro, com Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras), sobre um pai e seu filho que nasceu com uma deformidade no pé. Eles partem para Portugal em busca de tratamento e nunca mais conseguem voltar para Angola. Sua estreia, Esse Cabelo (Leya; em breve em nova edição pela Todavia), a trouxe à Flip em 2017. 

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de 'A Vista das Plantas' Foto: Humberto Brito

Djaimilia conversou com o Estadão por e-mail. 

Você estreou na literatura com uma obra mais pessoal, que é uma história compartilhada por tantas pessoas. Depois você amplia mais o olhar, muda de pessoa. Em ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, volta para Angola para então embarcar rumo a Portugal, um país tão conhecido de seus protagonistas e ao mesmo tempo tão inacessível. Agora, viaja alguns séculos para trás e nos leva para um momento que nos une e cujas marcas repercutem nos países africanos colonizados por Portugal, em Portugal e no Brasil. É uma coincidência que seja assim ou isso faz parte de um projeto, do resgate de uma história, da busca por uma identidade?

Não diria que faz parte de um projeto, porque não faço grandes planos, ou antes, só faço planos para um livro de cada vez. Reconheço que, desde Esse Cabelo, tenho feito um caminho de ampliação do olhar: da minha voz e pessoa para outras vozes e pessoas. E, no entanto, se alguma coisa une os vários livros e momentos até aqui é o modo como, por distantes que sejam ou pareçam, estou em cada história e em cada personagem. Se tivesse de encontrar um traço comum, diria que todos os livros que escrevi até ao momento, por outro lado, procuram apaziguar algum aspecto do meu caminho de leitora de outros livros.

O que te interessa na literatura? O que te faz escrever, começar um novo livro?

A literatura é porventura o meu único grande interesse, que subjuga todos os outros. As outras coisas que me interessam interessam-me sob um ponto de vista literário. Na minha vida, funciona como contínuo de perguntas. O que me faz começar um livro novo é a necessidade de uma pergunta que me apoquenta, à qual não sei responder. A essas perguntas inquietantes chamo ‘fantasmas’. Livro a livro, parto com o intuito de ser capaz de as formular. Mas os livros ensinaram-me a amar aquilo que nelas me está vedado, a saber viver com o facto de que, na maioria dos casos, não conseguirei responder-lhes. Ensinam-me diariamente sobre esse mistério da humildade: perceber que o gozo está na pergunta e vem do fazer da pergunta; ajudam-me a viver com aquilo que na minha vida — e no mundo à minha volta — me é oculto.

Como a frase lida em ‘Os Pescadores’ ecoou em você e em que momento ela se transformou em ‘A Visão das Plantas’? Aliás, por que quis escrever essa história?

Raul Brandão é o escritor português que mais admiro e Os Pescadores o livro que mais li. Desde a primeira leitura, há mais de 15 anos, as breves linhas sobre Celestino me assombram e fascinam. Voltei a esse parágrafo muitas vezes, muito antes de imaginar que viria algum dia a escrever livros. Quis escrever a sua história para perceber melhor a natureza desse fascínio e para apaziguar esse assombramento.

‘A Visão das Plantas’ é, na forma, um livro bastante diferente de ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’. Mas, em alguma medida, os dois falam sobre silêncios, sobre o que calamos e o abismo que cavamos com isso – que terá repercussão em nós, no nosso entorno e na grande história, e que deixará lacunas. Faz sentido?

Faz sentido, sim. De modos muito diferentes, ambos tratam o que não conhecemos, o que não dizemos, o que não percebemos, na nossa vida, e nas coisas à nossa volta. No caso de A Visão das Plantas, o silêncio é condição do jardim de Celestino, que o semeia sobre ele. O que me instiga, neste último caso, é a possibilidade de sermos acolhidos por aquilo que calamos, como Celestino é pelas suas vítimas, a possibilidade perturbadora de elas o abraçarem como mães aos seus filhos, ao invés de o assombrarem ou castigarem.

Ao mesmo tempo em que Portugal não dá uma chance a Cartola e Aquiles, em ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, Celestino é recebido de volta, vive sua vida, é admirado por seu jardim e é presenteado com o esquecimento. É porque nos esquecemos do que se passou, como a cidade se esqueceu de Celestino, que não fomos – e não somos – capazes de elaborar nossa história, reparar as atrocidades cometidas e seguir adiante, com mais igualdade, respeito e justiça?

Não vejo Cartola e Celestino como as duas faces de um mesmo problema. São, em mim, dois enigmas, dois fantasmas, distintos, apenas indiretamente tangentes à história coletiva. Num caso, como no outro, a condição de possibilidade dos romances é aquilo que na vida de ambos não vemos respondido pelas dicotomias que usamos habitualmente para pensar sobre certos temas. Ambos fogem um pouco à regra, por assim dizer, e é nessa fuga que se constituem como indivíduos e como sensibilidades que justificam que se pense sobre eles. 

‘A Visão das Plantas’ retrata também as ambiguidades humanas. Uma pessoa que fez o que Celestino fez não só é capaz de continuar dormindo à noite como de criar um belo jardim, de dar vida e cuidar de suas plantas. Quem é Celestino para você e o que ele representa?

Nunca olho para as personagens como representantes de uma ideia ou de um gênero de pessoa. Celestino interessa-me como possibilidade de pensamento e enquanto possibilidade humana, enquanto enigma acerca da justiça: poderemos nunca encontrar castigo, nunca nos redimirmos, nunca nos arrependermos nesta vida e, ainda assim, sentirmo-nos em casa no mundo e em paz conosco? Mas o meu ponto de vista sobre ele, o olhar com que o acerco de Celestino, tenta sempre uma suspensão do juízo (à maneira das plantas do seu jardim): como escritora, tento não julgar as minhas personagens, creio que é o único modo honesto de me aproximar delas e o único que ajuda a que elas se abram comigo.

Você já tinha passado um bom tempo lendo, estudando, escrevendo quando publicou seu primeiro livro há seis anos. A estreia foi festejada. Depois, vieram os prêmios. Como se sente hoje nesse ambiente? Como a escrita te desafia e qual é a sua ambição? 

Deixei de imaginar a minha vida sem escrever. O meu único desejo é capaz de perseverar, ser capaz de constância e continuidade, nunca me esquecendo do lugar de onde vim.

Poderia comentar algo sobre seu novo livro, ‘As Telefones’?

As Telefones narra a relação telefônica entre Filomena e Solange, mãe e filha, ao longo de cerca de 30 anos. Afastadas, mutuamente incompreendidas, a distância fez delas mesmas telefones: mulheres sujeitas ao ruído e à interferência na linha, aos equívocos, a silêncios e a não ditos. Interessou-me pensar na forma como o meio que usamos para nos relacionarmos uns com os outros (neste caso, o telefone) transfigura a natureza das relações que temos uns com os outros e no fato de não existe amor sem obstáculo. 

Portugal começa a retomar, de novo, a vida desde o começo da pandemia. Como essa pandemia a tocou e o que aprendeu com ela?

Perdi o meu pai, durante o confinamento. Nada na minha vida será igual depois deste ano. Estou longe de perceber o que aprendi com a pandemia e julgo que demorarei muito tempo a entender este tempo, o que nos aconteceu e como nos transformou.

A VISÃO DAS PLANTAS

Autora: Djaimilia Pereira de Almeida Editora: Todavia (88 págs.; R$ 49,90; 29,90 o e-book) Lançamento: Hoje (13), às 19h, Stephanie Borges, Roberta Estrela D’Alva e Kalaf Epalanga conversam sobre o livro, com transmissão pelo YouTube, Facebook e Twitter da Todavia

Leia um trecho de A Visão das Plantas

“Noite abençoada. Acordou em casa, restaurado, após uma vida cheia. Mas a casa tinha mudado. Com as portas trancadas, a mobília coberta com lençóis, a toalha manchada de vinho sobre a mesa, a arca de roupa fechada a um canto, os reposteiros de veludo negro, esgarçados pela traça, tudo era outro e, ainda, o mesmo. Na penumbra, o volume dos móveis insinuava fantasmas. O pó, tornado um ser, animava o espaço, iluminado pela claridade através das frestas das janelas. A penumbra quase falava: respira, filho, chegaste. Um vestígio de alfazema seca perfumava o mofo. Ou seria cera? Os ouvidos sempre tinham sido melhores do que o nariz. Nenhum ruído, salvo os passos, a tactear o corredor. A lareira negra na qual restara o abafador de cobre, a panela de ferro na cinza pisada: gente muda. A mobília não saudou o seu regresso. Não tinha mais ninguém na vida. Sobrava-lhe a casa de jantar, a pequena saleta, os dois quartitos húmidos, a cozinha de tecto escuro aberta para a despensa, os frascos, caixas de farinha de milho bichada, garrafas de aguardente e o quintal, tomado pelas silvas, as urtigas e os cardos.”

Djaimilia Pereira de Almeida conheceu Celestino, o personagem de A Visão das Plantas (Todavia), 15 anos atrás, num livro de Raul Brandão. Ele estava ali, em Os Pescadores, com toda sua contradição. Um capitão de navio negreiro que volta para casa, em Portugal, depois de cometer inimagináveis atrocidades.  Ele, então, passa a se ocupar do jardim de sua casa abandonada – abandonada porque sua mãe e as tias morreram enquanto ele cruzava o Atlântico levando africanos para serem escravizados no Brasil, enquanto ele trancava o porão do navio depois de um companheiro jogar cal sobre todos os cativos durante uma revolta, e eles morrerem asfixiados e serem jogados ao mar.

A Visão das Plantas é o terceiro livro publicado no Brasil desta portuguesa nascida em Angola em 1982. Ele ficou em segundo lugar no Prêmio Oceanos no ano passado (perdeu para Torto Arado). Em 2019, a autora ficou em primeiro, com Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras), sobre um pai e seu filho que nasceu com uma deformidade no pé. Eles partem para Portugal em busca de tratamento e nunca mais conseguem voltar para Angola. Sua estreia, Esse Cabelo (Leya; em breve em nova edição pela Todavia), a trouxe à Flip em 2017. 

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de 'A Vista das Plantas' Foto: Humberto Brito

Djaimilia conversou com o Estadão por e-mail. 

Você estreou na literatura com uma obra mais pessoal, que é uma história compartilhada por tantas pessoas. Depois você amplia mais o olhar, muda de pessoa. Em ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, volta para Angola para então embarcar rumo a Portugal, um país tão conhecido de seus protagonistas e ao mesmo tempo tão inacessível. Agora, viaja alguns séculos para trás e nos leva para um momento que nos une e cujas marcas repercutem nos países africanos colonizados por Portugal, em Portugal e no Brasil. É uma coincidência que seja assim ou isso faz parte de um projeto, do resgate de uma história, da busca por uma identidade?

Não diria que faz parte de um projeto, porque não faço grandes planos, ou antes, só faço planos para um livro de cada vez. Reconheço que, desde Esse Cabelo, tenho feito um caminho de ampliação do olhar: da minha voz e pessoa para outras vozes e pessoas. E, no entanto, se alguma coisa une os vários livros e momentos até aqui é o modo como, por distantes que sejam ou pareçam, estou em cada história e em cada personagem. Se tivesse de encontrar um traço comum, diria que todos os livros que escrevi até ao momento, por outro lado, procuram apaziguar algum aspecto do meu caminho de leitora de outros livros.

O que te interessa na literatura? O que te faz escrever, começar um novo livro?

A literatura é porventura o meu único grande interesse, que subjuga todos os outros. As outras coisas que me interessam interessam-me sob um ponto de vista literário. Na minha vida, funciona como contínuo de perguntas. O que me faz começar um livro novo é a necessidade de uma pergunta que me apoquenta, à qual não sei responder. A essas perguntas inquietantes chamo ‘fantasmas’. Livro a livro, parto com o intuito de ser capaz de as formular. Mas os livros ensinaram-me a amar aquilo que nelas me está vedado, a saber viver com o facto de que, na maioria dos casos, não conseguirei responder-lhes. Ensinam-me diariamente sobre esse mistério da humildade: perceber que o gozo está na pergunta e vem do fazer da pergunta; ajudam-me a viver com aquilo que na minha vida — e no mundo à minha volta — me é oculto.

Como a frase lida em ‘Os Pescadores’ ecoou em você e em que momento ela se transformou em ‘A Visão das Plantas’? Aliás, por que quis escrever essa história?

Raul Brandão é o escritor português que mais admiro e Os Pescadores o livro que mais li. Desde a primeira leitura, há mais de 15 anos, as breves linhas sobre Celestino me assombram e fascinam. Voltei a esse parágrafo muitas vezes, muito antes de imaginar que viria algum dia a escrever livros. Quis escrever a sua história para perceber melhor a natureza desse fascínio e para apaziguar esse assombramento.

‘A Visão das Plantas’ é, na forma, um livro bastante diferente de ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’. Mas, em alguma medida, os dois falam sobre silêncios, sobre o que calamos e o abismo que cavamos com isso – que terá repercussão em nós, no nosso entorno e na grande história, e que deixará lacunas. Faz sentido?

Faz sentido, sim. De modos muito diferentes, ambos tratam o que não conhecemos, o que não dizemos, o que não percebemos, na nossa vida, e nas coisas à nossa volta. No caso de A Visão das Plantas, o silêncio é condição do jardim de Celestino, que o semeia sobre ele. O que me instiga, neste último caso, é a possibilidade de sermos acolhidos por aquilo que calamos, como Celestino é pelas suas vítimas, a possibilidade perturbadora de elas o abraçarem como mães aos seus filhos, ao invés de o assombrarem ou castigarem.

Ao mesmo tempo em que Portugal não dá uma chance a Cartola e Aquiles, em ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, Celestino é recebido de volta, vive sua vida, é admirado por seu jardim e é presenteado com o esquecimento. É porque nos esquecemos do que se passou, como a cidade se esqueceu de Celestino, que não fomos – e não somos – capazes de elaborar nossa história, reparar as atrocidades cometidas e seguir adiante, com mais igualdade, respeito e justiça?

Não vejo Cartola e Celestino como as duas faces de um mesmo problema. São, em mim, dois enigmas, dois fantasmas, distintos, apenas indiretamente tangentes à história coletiva. Num caso, como no outro, a condição de possibilidade dos romances é aquilo que na vida de ambos não vemos respondido pelas dicotomias que usamos habitualmente para pensar sobre certos temas. Ambos fogem um pouco à regra, por assim dizer, e é nessa fuga que se constituem como indivíduos e como sensibilidades que justificam que se pense sobre eles. 

‘A Visão das Plantas’ retrata também as ambiguidades humanas. Uma pessoa que fez o que Celestino fez não só é capaz de continuar dormindo à noite como de criar um belo jardim, de dar vida e cuidar de suas plantas. Quem é Celestino para você e o que ele representa?

Nunca olho para as personagens como representantes de uma ideia ou de um gênero de pessoa. Celestino interessa-me como possibilidade de pensamento e enquanto possibilidade humana, enquanto enigma acerca da justiça: poderemos nunca encontrar castigo, nunca nos redimirmos, nunca nos arrependermos nesta vida e, ainda assim, sentirmo-nos em casa no mundo e em paz conosco? Mas o meu ponto de vista sobre ele, o olhar com que o acerco de Celestino, tenta sempre uma suspensão do juízo (à maneira das plantas do seu jardim): como escritora, tento não julgar as minhas personagens, creio que é o único modo honesto de me aproximar delas e o único que ajuda a que elas se abram comigo.

Você já tinha passado um bom tempo lendo, estudando, escrevendo quando publicou seu primeiro livro há seis anos. A estreia foi festejada. Depois, vieram os prêmios. Como se sente hoje nesse ambiente? Como a escrita te desafia e qual é a sua ambição? 

Deixei de imaginar a minha vida sem escrever. O meu único desejo é capaz de perseverar, ser capaz de constância e continuidade, nunca me esquecendo do lugar de onde vim.

Poderia comentar algo sobre seu novo livro, ‘As Telefones’?

As Telefones narra a relação telefônica entre Filomena e Solange, mãe e filha, ao longo de cerca de 30 anos. Afastadas, mutuamente incompreendidas, a distância fez delas mesmas telefones: mulheres sujeitas ao ruído e à interferência na linha, aos equívocos, a silêncios e a não ditos. Interessou-me pensar na forma como o meio que usamos para nos relacionarmos uns com os outros (neste caso, o telefone) transfigura a natureza das relações que temos uns com os outros e no fato de não existe amor sem obstáculo. 

Portugal começa a retomar, de novo, a vida desde o começo da pandemia. Como essa pandemia a tocou e o que aprendeu com ela?

Perdi o meu pai, durante o confinamento. Nada na minha vida será igual depois deste ano. Estou longe de perceber o que aprendi com a pandemia e julgo que demorarei muito tempo a entender este tempo, o que nos aconteceu e como nos transformou.

A VISÃO DAS PLANTAS

Autora: Djaimilia Pereira de Almeida Editora: Todavia (88 págs.; R$ 49,90; 29,90 o e-book) Lançamento: Hoje (13), às 19h, Stephanie Borges, Roberta Estrela D’Alva e Kalaf Epalanga conversam sobre o livro, com transmissão pelo YouTube, Facebook e Twitter da Todavia

Leia um trecho de A Visão das Plantas

“Noite abençoada. Acordou em casa, restaurado, após uma vida cheia. Mas a casa tinha mudado. Com as portas trancadas, a mobília coberta com lençóis, a toalha manchada de vinho sobre a mesa, a arca de roupa fechada a um canto, os reposteiros de veludo negro, esgarçados pela traça, tudo era outro e, ainda, o mesmo. Na penumbra, o volume dos móveis insinuava fantasmas. O pó, tornado um ser, animava o espaço, iluminado pela claridade através das frestas das janelas. A penumbra quase falava: respira, filho, chegaste. Um vestígio de alfazema seca perfumava o mofo. Ou seria cera? Os ouvidos sempre tinham sido melhores do que o nariz. Nenhum ruído, salvo os passos, a tactear o corredor. A lareira negra na qual restara o abafador de cobre, a panela de ferro na cinza pisada: gente muda. A mobília não saudou o seu regresso. Não tinha mais ninguém na vida. Sobrava-lhe a casa de jantar, a pequena saleta, os dois quartitos húmidos, a cozinha de tecto escuro aberta para a despensa, os frascos, caixas de farinha de milho bichada, garrafas de aguardente e o quintal, tomado pelas silvas, as urtigas e os cardos.”

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