Auschwitz visto por dentro: Leia trecho de livro de polonês que sobreviveu ao Holocausto


‘Adeus, Maria e outros contos’, de Tadeusz Borowski, escritor que foi enviado ao campo de concentração nazista em 1943, chega ao Brasil pela primeira vez pela editora Carambaia; conheça a obra

Por Julia Queiroz

A trajetória de Tadeusz Borowski (1922-1951) é daquelas difíceis de acreditar. Em apenas 28 anos de vida, o autor de Adeus, Maria e outros contos, publicado no Brasil pela Carambaia (leia trecho abaixo), viu o pior da humanidade: quando criança, os pais, por serem poloneses, foram enviados para campos de trabalho forçado da União Soviética, que ocupava a cidade de Jitomir (hoje parte do território ucraniano), onde ele nasceu.

Anos depois, quando conseguiu se reunir com os pais em Varsóvia, na Polônia, Borowski conheceu o amor de sua vida, Maria Rundo, enquanto cursava Letras na universidade. Envolvidos em um movimento de resistência, ambos foram presos e enviados, em 1943, ao campo de concentração de Auschwitz.

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Borowski não era judeu, mas conviveu com muitos deles e outras vítimas dos nazistas enquanto sobrevivia às crueldades do campo. Foi transferido duas vezes, sobreviveu e, com o fim da guerra, foi resgatado por tropas do exército americano.

Em 1946, finalmente reencontrou Maria e pôde casar-se com ela. Logo começou a escrever e, no ano seguinte, publicou a primeira versão do livro Adeus, Maria, com cinco contos inspirados pelas suas memórias da guerra. Em 1948, publicou mais um volume de contos, também com relação direta à sua vivência nos campos.

Tadeusz Borowski (1922-1951), autor de 'Adeus, Maria e outros contos', livro publicado pela editora Carambaia. Foto: Jerzy Benedykt Dorys/Domínio Público e Carambaia/Divulgação
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Borowski parecia encaminhado a tornar-se um grande escritor. Naquela época, foi também cofundador de um clube de artistas e intelectuais que atuava em colaboração com o regime comunista. Mas, apenas três anos depois, logo após o nascimento de sua primeira filha e afetado por uma depressão profunda, ele tirou a própria vida.

Como compreender a mente deste homem que foi considerado uma das promessas da literatura polonesa - e, principalmente, como as memórias da guerra afetaram sua vida e saúde mental? Parte das respostas pode estar justamente no livro Adeus, Maria e outros contos, que reúne a produção de Borowski entre 1947 e 1948, e que chega pela primeira vez às livrarias brasileiras, ainda em julho, pela editora Carambaia.

Os contos, individuais, mas interligados, são narrados por Tadek, um intelectual não judeu que atua como enfermeiro no campo de concentração. Em uma espécie de autoficção, o narrador escreve cartas apaixonadas para a namorada, Maria, e descreve seus dias durante cada período da guerra: do gueta em Varsóvia, já ocupada pelos alemães, à prisão, fome e o trabalho forçado nos campos, até à libertação e a transferência para um campo de refugiados na Alemanha.

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Em trecho selecionado pelo Estadão, do conto Aqui em Auschwitz..., Tadek descreve o dia a dia do campo na Polônia, os primeiros trabalhos como enfermeiro, e as conversas com outros prisioneiros. Confira:

Trecho do conto ‘Aqui em Auschwitz...’, do livro ‘Adeus, Maria e outros contos’:

... pois então, já estou fazendo os cursos médicos. Escolheram algumas dezenas de nós, de Birkenau todo, e nos formarão como quase doutores. Temos de saber quantos ossos tem uma pessoa, como o sangue circula, o que é o peritônio, como se combatem os estafilococos e como se combatem os estreptococos, como conduzir uma operação esterilizada de apendicectomia e para que serve a cirurgia de pneumotórax.

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Temos uma missão muito nobre: vamos tratar os colegas que por “má sina” se viram atacados por doença, apatia ou falta de vontade de viver. Nós temos a tarefa – e justamente nós, pouco mais de algumas dezenas de pessoas para 20 mil homens em Birkenau – de reduzir a taxa de mortalidade no campo de concentração e elevar o moral dos prisioneiros.

Foi isso o que nos disse o Lagerarzt125 ao ir embora. Ele também perguntou a cada um a idade e a ocupação. E quando respondi “estudante universitário” ele ergueu as sobrancelhas surpreso.

— E o que você estudava?

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— História da literatura – respondi modestamente.

Ele balançou a cabeça desanimado, entrou no carro e foi embora.

Depois fomos por uma estrada muito bonita até Auschwitz e vimos muita coisa do interior do país; em seguida alguém nos designou como Flegers convidados para um bloco hospitalar em algum canto, mas eu não estava muito interessado porque fui com o Staszek (sabe, aquele que me deu as calças marrons) até o campo de concentração. Fui procurar alguém que pudesse levar esta carta para você, e o Staszek foi até a despensa da cozinha para providenciar um jantar de pão branco, um tablete de margarina e ao menos uma linguiça que fosse, porque somos cinco.

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É claro que não encontrei ninguém, porque sou o milionésimo, e aqui só há pessoas de números antigos que olham para mim por cima do ombro. Mas o Staszek prometeu enviar a carta por meio de seus contatos, desde que não seja longa, “porque deve ser chato ficar escrevendo todo dia para a namorada assim”.

Então, quando eu aprender quantos ossos tem o ser humano e o que é o peritônio, quem sabe dou um jeito em sua piodermia e na febre da sua companheira de cama. Estou receoso, porém, de que, mesmo sabendo como se trata a úlcera duodenal, não serei capaz de roubar para você a droga da pomada Wilkinson para sarna, porque ela atualmente está em falta em todo o Birkenau. A gente aqui banhava os doentes com chá de hortelã, conjurando certos feitiços excepcionalmente eficazes, infelizmente impossíveis de serem reproduzidos.

Agora, no que diz respeito a diminuir a mortalidade: um mandachuva adoeceu no meu bloco; estava mal, com febre, falava cada vez mais sobre a morte. Certa vez me chamou. Sentei-me na beiradinha da cama.

— Tive lá alguma fama no campo, não tive? – perguntou, fitando inquieto meus olhos.

— Ah, e como é que alguém poderia não te conhecer... e não se lembrar de você? – respondi inocentemente.

— Veja – disse, apontando para as vidraças das janelas avermelhadas pelo fogo. Algo além do bosque estava queimando. — Sabe, eu gostaria que me enterrassem separadamente. Não junto com os outros. Não no monte. Entende?

— Não tenha medo – eu disse a ele, cordial. — Eu te darei até um lençol. E vou falar também com os cata-cadáveres.

Apertou minha mão calado. Mas tudo isso em vão. Ele melhorou e me enviou um tablete de margarina do campo de concentração. Uso para engraxar meus sapatos, porque é aquela feita de peixe. E foi assim que fiz minha parte para reduzir a mortalidade no campo. Mas vamos mudar de assunto, porque isso está focado demais no campo.

Já faz quase um mês que não recebo uma carta de casa...

Dias de deleite: sem chamadas, sem obrigações. O campo inteiro está de pé para a chamada, e nós, na janela, parcialmente inclinados para fora, espectadores de um outro mundo. As pessoas sorriem para nós e nós sorrimos para elas.

Elas nos chamam de “colegas de Birkenau”, com um pouco de compadecimento pelo nosso destino ser tão miserável e com um pouco de vergonha pelo delas ser tão bom. A vista daqui é inocente, não dá para ver os cremos. As pessoas são apaixonadas por Auschwitz, com orgulho dizem “aqui em Auschwitz”...

Mas no fim das contas elas têm do que se vangloriar. Imagine só o que é Auschwitz. Pegue o Pawiak, aquele prédio horrível, acrescente a Serbia, multiplique por 28 e coloque tudo junto de tal modo que entre os Pawiaks reste apenas um pouco de espaço. Passe uma cerca de arame dupla ao redor de tudo e levante muros de concreto em três lados, pavimente a lama, plante umas arvorezinhas anêmicas – e no meio de tudo coloque dezenas de milhares de pessoas que já passaram alguns anos no campo, sofreram magnificamente, sobreviveram ao pior período e agora têm as calças passadas com vincos pontudos como flechas e andam com os quadris balançando. Tendo feito isso tudo, você entenderá por que eles têm o maior desprezo e pena de nós, pessoas de Birkenau, onde há apenas barracas de madeira para cavalos, não existem calçadas e, em vez de um banheiro com água quente, há quatro crematórios.

Lá da enfermaria, que tem as paredes muito brancas, daquelas um tanto rurais, e o piso de concreto como de uma prisão, e muitos, muitos beliches de três andares, dá para ver perfeitamente a estrada da liberdade pela qual volta e meia passam pessoas, às vezes um carro ou uma carroça e às vezes alguém de bicicleta, certamente voltando do trabalho. Mais adiante, mas muito mesmo (você não faz ideia da quantidade de espaço que cabe numa janela pequena dessas; depois da guerra eu gostaria de morar, caso sobreviva, em uma casa alta com janelas para o campo), existem umas casas e depois um bosque azulado. A terra é negra e parece ser úmida. Assim como naquele soneto do Staff: lembra do Passeio da primavera?

Mas na nossa enfermaria há também coisas mais civilizadas: um forno de ladrilhos coloridos de maiólica, como aqueles do nosso armazém em Varsóvia. Esse forno tem grelhas montadas muito engenhosamente: pode não parecer, mas dá para assar até um leitão nele. Nos beliches há cobertores do Canadá, felpudos como pelo de gato. Lençóis brancos e sem rugas. Tem uma mesa às vezes coberta por uma toalha, mas só para refeições e datas comemorativas.

A janela dá para a estrada de bétulas – a Birkenweg. É uma pena que seja inverno e que as bétulas “choronas” sem folhas fiquem pendendo para baixo como vassouras esfarrapadas, e que, em vez de gramado embaixo delas, haja uma lama viscosa, certamente igual à que há no mundo “de lá”, além da estrada; só que aqui temos de batê-la com os pés.

Passeamos pela estradinha das bétulas de noitinha após a chamada, cheios de dignidade e com ar solene, cumprimentando os conhecidos, curvando a cabeça. Em uma das encruzilhadas há uma placa com um baixo-relevo de duas pessoas sentadas em um banco, sussurrando uma no ouvido da outra, e uma terceira que, curvando-se até elas, também estica a orelha e escuta. É um alerta: todas as conversas estão sendo ouvidas, comentadas e denunciadas à autoridade devida. Aqui todos sabem tudo sobre o outro: quando passou pela fase muçulmana, o que e quando conseguiu arranjar algo e de quem, quem esganou e quem delatou, e todo mundo sorri com deboche quando você elogia alguém.

Imagine então o Pawiak, multiplicado sabe-se lá quantas vezes, rodeado por uma cerca de arame farpado dupla. Não é como em Birkenau, onde as torres de observação parecem cegonhas em varas altas e as lâmpadas estão acesas a cada três postes, com uma única cerca. Mas em compensação o número de setores é tal que não dá nem para contar nos dedos.

Pois aqui em Auschwitz não é assim. As lâmpadas ficam acesas a cada dois postes, as torres se erguem em bases maciças, o arame da cerca é duplo e ainda tem o muro.

Vamos andando então pela Birkenweg em nossos trajes civis, que acabaram de chegar da Zauna – os únicos cinco que não têm uniformes listrados.

Andamos pela Birkenweg de barba feita, ágeis e despreocupados. A pequena multidão perambula em grupos pequenos e desponta à frente do bloco número 10, onde, por trás das grades e das janelas cobertas de sólidas tábuas, ficam as moças – cobaias de experimentos que frequentemente se aglomeram na frente do bloco Szrajbsztuba –, não porque é onde ficam a sala da orquestra, a biblioteca e o museu, mas simplesmente porque no térreo está o Puff. Deixo para te contar o que é o Puff em outra ocasião; por enquanto pode ficar curiosa...

Você sabe como é estranho escrever para alguém cujo rosto não vejo faz tempo. Sua imagem se desmancha em minha memória e, mesmo com grande empenho e força de vontade, não consigo recordá-la. Há algo de incrível nos sonhos, porque sonho contigo tão nítida e vivamente. Sabe, os sonhos não são só imagem, mas uma experiência em que dá para sentir o peso dos objetos e o calor do seu corpo...

É difícil te imaginar num beliche de campo de concentração, com os cabelos raspados após pegar tifo... Me recordo de você como na época do Pawiak: uma jovem alta, esbelta, de sorriso suave e olhar tristonho. Estava sentada com a cabeça curvada na avenida Szucha e vi apenas seus cabelos escuros, que agora estão raspados.

E isso é a coisa mais poderosa que restou em mim de lá, do mundo de lá: sua imagem, por mais que seja tão difícil me recordar de você. É por isso que escrevo cartas tão longas: porque são como as nossas conversas noturnas de antigamente na rua Skaryszewska. E é por isso que essas cartas são serenas. Preservei muita serenidade dentro de mim e sei que você também. Apesar de tudo. Apesar da cabeça curvada na Gestapo, apesar do tifo, da pneumonia e dos cabelos raspados.

Mas essas pessoas... Veja bem, elas passaram desde o começo pela terrível escola do campo de concentração, sobre o qual circulam lendas. As pessoas pesavam uns 30 quilos, eram espancadas e escolhidas para a câmara de gás – você entende agora por que eles usam jaquetas engraçadas de cintura fina, têm esse andar gingado e exaltam Auschwitz a cada cinco minutos?

É assim que são as coisas... Estamos andando pela Birkenweg, elegantes, de trajes civis. Mas fazer o quê? Somos milionésimos! Cento e três mil, cento e dezenove mil. Mas que tristeza aterradora por não termos chegado a tempo de receber os números mais antigos! Um sujeito de uniforme listrado veio até nós com o número 27 mil, tão antigo que dá tontura imaginar. É um jovem com o olhar turvo de onanista e o andar de animal que pressente perigo.

— Amigos, de onde vocês são?

— De Birkenau, meu amigo.

— De Birkenau? – nos lançou um olhar crítico. — E estão tão bem assim? Mas lá é terrível... Como conseguem aguentar?

Witek, meu amigo alto e exímio músico, respondeu, ajeitando os punhos do terno.

— Piano, infelizmente, a gente não tem! Mas dá para aguentar.

O número antigo olhou para nós como se estivesse olhando através de uma névoa:

— É que a gente tem medo de Birkenau...

Adeus, Maria e outros contos

  • Autor: Tadeusz Borowski
  • Tradução: Matheus Moreira Pena
  • Editora: Carambaia (416 págs.; R$ 149,90 | Ebook R$ 99,90)

A trajetória de Tadeusz Borowski (1922-1951) é daquelas difíceis de acreditar. Em apenas 28 anos de vida, o autor de Adeus, Maria e outros contos, publicado no Brasil pela Carambaia (leia trecho abaixo), viu o pior da humanidade: quando criança, os pais, por serem poloneses, foram enviados para campos de trabalho forçado da União Soviética, que ocupava a cidade de Jitomir (hoje parte do território ucraniano), onde ele nasceu.

Anos depois, quando conseguiu se reunir com os pais em Varsóvia, na Polônia, Borowski conheceu o amor de sua vida, Maria Rundo, enquanto cursava Letras na universidade. Envolvidos em um movimento de resistência, ambos foram presos e enviados, em 1943, ao campo de concentração de Auschwitz.

Borowski não era judeu, mas conviveu com muitos deles e outras vítimas dos nazistas enquanto sobrevivia às crueldades do campo. Foi transferido duas vezes, sobreviveu e, com o fim da guerra, foi resgatado por tropas do exército americano.

Em 1946, finalmente reencontrou Maria e pôde casar-se com ela. Logo começou a escrever e, no ano seguinte, publicou a primeira versão do livro Adeus, Maria, com cinco contos inspirados pelas suas memórias da guerra. Em 1948, publicou mais um volume de contos, também com relação direta à sua vivência nos campos.

Tadeusz Borowski (1922-1951), autor de 'Adeus, Maria e outros contos', livro publicado pela editora Carambaia. Foto: Jerzy Benedykt Dorys/Domínio Público e Carambaia/Divulgação

Borowski parecia encaminhado a tornar-se um grande escritor. Naquela época, foi também cofundador de um clube de artistas e intelectuais que atuava em colaboração com o regime comunista. Mas, apenas três anos depois, logo após o nascimento de sua primeira filha e afetado por uma depressão profunda, ele tirou a própria vida.

Como compreender a mente deste homem que foi considerado uma das promessas da literatura polonesa - e, principalmente, como as memórias da guerra afetaram sua vida e saúde mental? Parte das respostas pode estar justamente no livro Adeus, Maria e outros contos, que reúne a produção de Borowski entre 1947 e 1948, e que chega pela primeira vez às livrarias brasileiras, ainda em julho, pela editora Carambaia.

Os contos, individuais, mas interligados, são narrados por Tadek, um intelectual não judeu que atua como enfermeiro no campo de concentração. Em uma espécie de autoficção, o narrador escreve cartas apaixonadas para a namorada, Maria, e descreve seus dias durante cada período da guerra: do gueta em Varsóvia, já ocupada pelos alemães, à prisão, fome e o trabalho forçado nos campos, até à libertação e a transferência para um campo de refugiados na Alemanha.

Em trecho selecionado pelo Estadão, do conto Aqui em Auschwitz..., Tadek descreve o dia a dia do campo na Polônia, os primeiros trabalhos como enfermeiro, e as conversas com outros prisioneiros. Confira:

Trecho do conto ‘Aqui em Auschwitz...’, do livro ‘Adeus, Maria e outros contos’:

... pois então, já estou fazendo os cursos médicos. Escolheram algumas dezenas de nós, de Birkenau todo, e nos formarão como quase doutores. Temos de saber quantos ossos tem uma pessoa, como o sangue circula, o que é o peritônio, como se combatem os estafilococos e como se combatem os estreptococos, como conduzir uma operação esterilizada de apendicectomia e para que serve a cirurgia de pneumotórax.

Temos uma missão muito nobre: vamos tratar os colegas que por “má sina” se viram atacados por doença, apatia ou falta de vontade de viver. Nós temos a tarefa – e justamente nós, pouco mais de algumas dezenas de pessoas para 20 mil homens em Birkenau – de reduzir a taxa de mortalidade no campo de concentração e elevar o moral dos prisioneiros.

Foi isso o que nos disse o Lagerarzt125 ao ir embora. Ele também perguntou a cada um a idade e a ocupação. E quando respondi “estudante universitário” ele ergueu as sobrancelhas surpreso.

— E o que você estudava?

— História da literatura – respondi modestamente.

Ele balançou a cabeça desanimado, entrou no carro e foi embora.

Depois fomos por uma estrada muito bonita até Auschwitz e vimos muita coisa do interior do país; em seguida alguém nos designou como Flegers convidados para um bloco hospitalar em algum canto, mas eu não estava muito interessado porque fui com o Staszek (sabe, aquele que me deu as calças marrons) até o campo de concentração. Fui procurar alguém que pudesse levar esta carta para você, e o Staszek foi até a despensa da cozinha para providenciar um jantar de pão branco, um tablete de margarina e ao menos uma linguiça que fosse, porque somos cinco.

É claro que não encontrei ninguém, porque sou o milionésimo, e aqui só há pessoas de números antigos que olham para mim por cima do ombro. Mas o Staszek prometeu enviar a carta por meio de seus contatos, desde que não seja longa, “porque deve ser chato ficar escrevendo todo dia para a namorada assim”.

Então, quando eu aprender quantos ossos tem o ser humano e o que é o peritônio, quem sabe dou um jeito em sua piodermia e na febre da sua companheira de cama. Estou receoso, porém, de que, mesmo sabendo como se trata a úlcera duodenal, não serei capaz de roubar para você a droga da pomada Wilkinson para sarna, porque ela atualmente está em falta em todo o Birkenau. A gente aqui banhava os doentes com chá de hortelã, conjurando certos feitiços excepcionalmente eficazes, infelizmente impossíveis de serem reproduzidos.

Agora, no que diz respeito a diminuir a mortalidade: um mandachuva adoeceu no meu bloco; estava mal, com febre, falava cada vez mais sobre a morte. Certa vez me chamou. Sentei-me na beiradinha da cama.

— Tive lá alguma fama no campo, não tive? – perguntou, fitando inquieto meus olhos.

— Ah, e como é que alguém poderia não te conhecer... e não se lembrar de você? – respondi inocentemente.

— Veja – disse, apontando para as vidraças das janelas avermelhadas pelo fogo. Algo além do bosque estava queimando. — Sabe, eu gostaria que me enterrassem separadamente. Não junto com os outros. Não no monte. Entende?

— Não tenha medo – eu disse a ele, cordial. — Eu te darei até um lençol. E vou falar também com os cata-cadáveres.

Apertou minha mão calado. Mas tudo isso em vão. Ele melhorou e me enviou um tablete de margarina do campo de concentração. Uso para engraxar meus sapatos, porque é aquela feita de peixe. E foi assim que fiz minha parte para reduzir a mortalidade no campo. Mas vamos mudar de assunto, porque isso está focado demais no campo.

Já faz quase um mês que não recebo uma carta de casa...

Dias de deleite: sem chamadas, sem obrigações. O campo inteiro está de pé para a chamada, e nós, na janela, parcialmente inclinados para fora, espectadores de um outro mundo. As pessoas sorriem para nós e nós sorrimos para elas.

Elas nos chamam de “colegas de Birkenau”, com um pouco de compadecimento pelo nosso destino ser tão miserável e com um pouco de vergonha pelo delas ser tão bom. A vista daqui é inocente, não dá para ver os cremos. As pessoas são apaixonadas por Auschwitz, com orgulho dizem “aqui em Auschwitz”...

Mas no fim das contas elas têm do que se vangloriar. Imagine só o que é Auschwitz. Pegue o Pawiak, aquele prédio horrível, acrescente a Serbia, multiplique por 28 e coloque tudo junto de tal modo que entre os Pawiaks reste apenas um pouco de espaço. Passe uma cerca de arame dupla ao redor de tudo e levante muros de concreto em três lados, pavimente a lama, plante umas arvorezinhas anêmicas – e no meio de tudo coloque dezenas de milhares de pessoas que já passaram alguns anos no campo, sofreram magnificamente, sobreviveram ao pior período e agora têm as calças passadas com vincos pontudos como flechas e andam com os quadris balançando. Tendo feito isso tudo, você entenderá por que eles têm o maior desprezo e pena de nós, pessoas de Birkenau, onde há apenas barracas de madeira para cavalos, não existem calçadas e, em vez de um banheiro com água quente, há quatro crematórios.

Lá da enfermaria, que tem as paredes muito brancas, daquelas um tanto rurais, e o piso de concreto como de uma prisão, e muitos, muitos beliches de três andares, dá para ver perfeitamente a estrada da liberdade pela qual volta e meia passam pessoas, às vezes um carro ou uma carroça e às vezes alguém de bicicleta, certamente voltando do trabalho. Mais adiante, mas muito mesmo (você não faz ideia da quantidade de espaço que cabe numa janela pequena dessas; depois da guerra eu gostaria de morar, caso sobreviva, em uma casa alta com janelas para o campo), existem umas casas e depois um bosque azulado. A terra é negra e parece ser úmida. Assim como naquele soneto do Staff: lembra do Passeio da primavera?

Mas na nossa enfermaria há também coisas mais civilizadas: um forno de ladrilhos coloridos de maiólica, como aqueles do nosso armazém em Varsóvia. Esse forno tem grelhas montadas muito engenhosamente: pode não parecer, mas dá para assar até um leitão nele. Nos beliches há cobertores do Canadá, felpudos como pelo de gato. Lençóis brancos e sem rugas. Tem uma mesa às vezes coberta por uma toalha, mas só para refeições e datas comemorativas.

A janela dá para a estrada de bétulas – a Birkenweg. É uma pena que seja inverno e que as bétulas “choronas” sem folhas fiquem pendendo para baixo como vassouras esfarrapadas, e que, em vez de gramado embaixo delas, haja uma lama viscosa, certamente igual à que há no mundo “de lá”, além da estrada; só que aqui temos de batê-la com os pés.

Passeamos pela estradinha das bétulas de noitinha após a chamada, cheios de dignidade e com ar solene, cumprimentando os conhecidos, curvando a cabeça. Em uma das encruzilhadas há uma placa com um baixo-relevo de duas pessoas sentadas em um banco, sussurrando uma no ouvido da outra, e uma terceira que, curvando-se até elas, também estica a orelha e escuta. É um alerta: todas as conversas estão sendo ouvidas, comentadas e denunciadas à autoridade devida. Aqui todos sabem tudo sobre o outro: quando passou pela fase muçulmana, o que e quando conseguiu arranjar algo e de quem, quem esganou e quem delatou, e todo mundo sorri com deboche quando você elogia alguém.

Imagine então o Pawiak, multiplicado sabe-se lá quantas vezes, rodeado por uma cerca de arame farpado dupla. Não é como em Birkenau, onde as torres de observação parecem cegonhas em varas altas e as lâmpadas estão acesas a cada três postes, com uma única cerca. Mas em compensação o número de setores é tal que não dá nem para contar nos dedos.

Pois aqui em Auschwitz não é assim. As lâmpadas ficam acesas a cada dois postes, as torres se erguem em bases maciças, o arame da cerca é duplo e ainda tem o muro.

Vamos andando então pela Birkenweg em nossos trajes civis, que acabaram de chegar da Zauna – os únicos cinco que não têm uniformes listrados.

Andamos pela Birkenweg de barba feita, ágeis e despreocupados. A pequena multidão perambula em grupos pequenos e desponta à frente do bloco número 10, onde, por trás das grades e das janelas cobertas de sólidas tábuas, ficam as moças – cobaias de experimentos que frequentemente se aglomeram na frente do bloco Szrajbsztuba –, não porque é onde ficam a sala da orquestra, a biblioteca e o museu, mas simplesmente porque no térreo está o Puff. Deixo para te contar o que é o Puff em outra ocasião; por enquanto pode ficar curiosa...

Você sabe como é estranho escrever para alguém cujo rosto não vejo faz tempo. Sua imagem se desmancha em minha memória e, mesmo com grande empenho e força de vontade, não consigo recordá-la. Há algo de incrível nos sonhos, porque sonho contigo tão nítida e vivamente. Sabe, os sonhos não são só imagem, mas uma experiência em que dá para sentir o peso dos objetos e o calor do seu corpo...

É difícil te imaginar num beliche de campo de concentração, com os cabelos raspados após pegar tifo... Me recordo de você como na época do Pawiak: uma jovem alta, esbelta, de sorriso suave e olhar tristonho. Estava sentada com a cabeça curvada na avenida Szucha e vi apenas seus cabelos escuros, que agora estão raspados.

E isso é a coisa mais poderosa que restou em mim de lá, do mundo de lá: sua imagem, por mais que seja tão difícil me recordar de você. É por isso que escrevo cartas tão longas: porque são como as nossas conversas noturnas de antigamente na rua Skaryszewska. E é por isso que essas cartas são serenas. Preservei muita serenidade dentro de mim e sei que você também. Apesar de tudo. Apesar da cabeça curvada na Gestapo, apesar do tifo, da pneumonia e dos cabelos raspados.

Mas essas pessoas... Veja bem, elas passaram desde o começo pela terrível escola do campo de concentração, sobre o qual circulam lendas. As pessoas pesavam uns 30 quilos, eram espancadas e escolhidas para a câmara de gás – você entende agora por que eles usam jaquetas engraçadas de cintura fina, têm esse andar gingado e exaltam Auschwitz a cada cinco minutos?

É assim que são as coisas... Estamos andando pela Birkenweg, elegantes, de trajes civis. Mas fazer o quê? Somos milionésimos! Cento e três mil, cento e dezenove mil. Mas que tristeza aterradora por não termos chegado a tempo de receber os números mais antigos! Um sujeito de uniforme listrado veio até nós com o número 27 mil, tão antigo que dá tontura imaginar. É um jovem com o olhar turvo de onanista e o andar de animal que pressente perigo.

— Amigos, de onde vocês são?

— De Birkenau, meu amigo.

— De Birkenau? – nos lançou um olhar crítico. — E estão tão bem assim? Mas lá é terrível... Como conseguem aguentar?

Witek, meu amigo alto e exímio músico, respondeu, ajeitando os punhos do terno.

— Piano, infelizmente, a gente não tem! Mas dá para aguentar.

O número antigo olhou para nós como se estivesse olhando através de uma névoa:

— É que a gente tem medo de Birkenau...

Adeus, Maria e outros contos

  • Autor: Tadeusz Borowski
  • Tradução: Matheus Moreira Pena
  • Editora: Carambaia (416 págs.; R$ 149,90 | Ebook R$ 99,90)

A trajetória de Tadeusz Borowski (1922-1951) é daquelas difíceis de acreditar. Em apenas 28 anos de vida, o autor de Adeus, Maria e outros contos, publicado no Brasil pela Carambaia (leia trecho abaixo), viu o pior da humanidade: quando criança, os pais, por serem poloneses, foram enviados para campos de trabalho forçado da União Soviética, que ocupava a cidade de Jitomir (hoje parte do território ucraniano), onde ele nasceu.

Anos depois, quando conseguiu se reunir com os pais em Varsóvia, na Polônia, Borowski conheceu o amor de sua vida, Maria Rundo, enquanto cursava Letras na universidade. Envolvidos em um movimento de resistência, ambos foram presos e enviados, em 1943, ao campo de concentração de Auschwitz.

Borowski não era judeu, mas conviveu com muitos deles e outras vítimas dos nazistas enquanto sobrevivia às crueldades do campo. Foi transferido duas vezes, sobreviveu e, com o fim da guerra, foi resgatado por tropas do exército americano.

Em 1946, finalmente reencontrou Maria e pôde casar-se com ela. Logo começou a escrever e, no ano seguinte, publicou a primeira versão do livro Adeus, Maria, com cinco contos inspirados pelas suas memórias da guerra. Em 1948, publicou mais um volume de contos, também com relação direta à sua vivência nos campos.

Tadeusz Borowski (1922-1951), autor de 'Adeus, Maria e outros contos', livro publicado pela editora Carambaia. Foto: Jerzy Benedykt Dorys/Domínio Público e Carambaia/Divulgação

Borowski parecia encaminhado a tornar-se um grande escritor. Naquela época, foi também cofundador de um clube de artistas e intelectuais que atuava em colaboração com o regime comunista. Mas, apenas três anos depois, logo após o nascimento de sua primeira filha e afetado por uma depressão profunda, ele tirou a própria vida.

Como compreender a mente deste homem que foi considerado uma das promessas da literatura polonesa - e, principalmente, como as memórias da guerra afetaram sua vida e saúde mental? Parte das respostas pode estar justamente no livro Adeus, Maria e outros contos, que reúne a produção de Borowski entre 1947 e 1948, e que chega pela primeira vez às livrarias brasileiras, ainda em julho, pela editora Carambaia.

Os contos, individuais, mas interligados, são narrados por Tadek, um intelectual não judeu que atua como enfermeiro no campo de concentração. Em uma espécie de autoficção, o narrador escreve cartas apaixonadas para a namorada, Maria, e descreve seus dias durante cada período da guerra: do gueta em Varsóvia, já ocupada pelos alemães, à prisão, fome e o trabalho forçado nos campos, até à libertação e a transferência para um campo de refugiados na Alemanha.

Em trecho selecionado pelo Estadão, do conto Aqui em Auschwitz..., Tadek descreve o dia a dia do campo na Polônia, os primeiros trabalhos como enfermeiro, e as conversas com outros prisioneiros. Confira:

Trecho do conto ‘Aqui em Auschwitz...’, do livro ‘Adeus, Maria e outros contos’:

... pois então, já estou fazendo os cursos médicos. Escolheram algumas dezenas de nós, de Birkenau todo, e nos formarão como quase doutores. Temos de saber quantos ossos tem uma pessoa, como o sangue circula, o que é o peritônio, como se combatem os estafilococos e como se combatem os estreptococos, como conduzir uma operação esterilizada de apendicectomia e para que serve a cirurgia de pneumotórax.

Temos uma missão muito nobre: vamos tratar os colegas que por “má sina” se viram atacados por doença, apatia ou falta de vontade de viver. Nós temos a tarefa – e justamente nós, pouco mais de algumas dezenas de pessoas para 20 mil homens em Birkenau – de reduzir a taxa de mortalidade no campo de concentração e elevar o moral dos prisioneiros.

Foi isso o que nos disse o Lagerarzt125 ao ir embora. Ele também perguntou a cada um a idade e a ocupação. E quando respondi “estudante universitário” ele ergueu as sobrancelhas surpreso.

— E o que você estudava?

— História da literatura – respondi modestamente.

Ele balançou a cabeça desanimado, entrou no carro e foi embora.

Depois fomos por uma estrada muito bonita até Auschwitz e vimos muita coisa do interior do país; em seguida alguém nos designou como Flegers convidados para um bloco hospitalar em algum canto, mas eu não estava muito interessado porque fui com o Staszek (sabe, aquele que me deu as calças marrons) até o campo de concentração. Fui procurar alguém que pudesse levar esta carta para você, e o Staszek foi até a despensa da cozinha para providenciar um jantar de pão branco, um tablete de margarina e ao menos uma linguiça que fosse, porque somos cinco.

É claro que não encontrei ninguém, porque sou o milionésimo, e aqui só há pessoas de números antigos que olham para mim por cima do ombro. Mas o Staszek prometeu enviar a carta por meio de seus contatos, desde que não seja longa, “porque deve ser chato ficar escrevendo todo dia para a namorada assim”.

Então, quando eu aprender quantos ossos tem o ser humano e o que é o peritônio, quem sabe dou um jeito em sua piodermia e na febre da sua companheira de cama. Estou receoso, porém, de que, mesmo sabendo como se trata a úlcera duodenal, não serei capaz de roubar para você a droga da pomada Wilkinson para sarna, porque ela atualmente está em falta em todo o Birkenau. A gente aqui banhava os doentes com chá de hortelã, conjurando certos feitiços excepcionalmente eficazes, infelizmente impossíveis de serem reproduzidos.

Agora, no que diz respeito a diminuir a mortalidade: um mandachuva adoeceu no meu bloco; estava mal, com febre, falava cada vez mais sobre a morte. Certa vez me chamou. Sentei-me na beiradinha da cama.

— Tive lá alguma fama no campo, não tive? – perguntou, fitando inquieto meus olhos.

— Ah, e como é que alguém poderia não te conhecer... e não se lembrar de você? – respondi inocentemente.

— Veja – disse, apontando para as vidraças das janelas avermelhadas pelo fogo. Algo além do bosque estava queimando. — Sabe, eu gostaria que me enterrassem separadamente. Não junto com os outros. Não no monte. Entende?

— Não tenha medo – eu disse a ele, cordial. — Eu te darei até um lençol. E vou falar também com os cata-cadáveres.

Apertou minha mão calado. Mas tudo isso em vão. Ele melhorou e me enviou um tablete de margarina do campo de concentração. Uso para engraxar meus sapatos, porque é aquela feita de peixe. E foi assim que fiz minha parte para reduzir a mortalidade no campo. Mas vamos mudar de assunto, porque isso está focado demais no campo.

Já faz quase um mês que não recebo uma carta de casa...

Dias de deleite: sem chamadas, sem obrigações. O campo inteiro está de pé para a chamada, e nós, na janela, parcialmente inclinados para fora, espectadores de um outro mundo. As pessoas sorriem para nós e nós sorrimos para elas.

Elas nos chamam de “colegas de Birkenau”, com um pouco de compadecimento pelo nosso destino ser tão miserável e com um pouco de vergonha pelo delas ser tão bom. A vista daqui é inocente, não dá para ver os cremos. As pessoas são apaixonadas por Auschwitz, com orgulho dizem “aqui em Auschwitz”...

Mas no fim das contas elas têm do que se vangloriar. Imagine só o que é Auschwitz. Pegue o Pawiak, aquele prédio horrível, acrescente a Serbia, multiplique por 28 e coloque tudo junto de tal modo que entre os Pawiaks reste apenas um pouco de espaço. Passe uma cerca de arame dupla ao redor de tudo e levante muros de concreto em três lados, pavimente a lama, plante umas arvorezinhas anêmicas – e no meio de tudo coloque dezenas de milhares de pessoas que já passaram alguns anos no campo, sofreram magnificamente, sobreviveram ao pior período e agora têm as calças passadas com vincos pontudos como flechas e andam com os quadris balançando. Tendo feito isso tudo, você entenderá por que eles têm o maior desprezo e pena de nós, pessoas de Birkenau, onde há apenas barracas de madeira para cavalos, não existem calçadas e, em vez de um banheiro com água quente, há quatro crematórios.

Lá da enfermaria, que tem as paredes muito brancas, daquelas um tanto rurais, e o piso de concreto como de uma prisão, e muitos, muitos beliches de três andares, dá para ver perfeitamente a estrada da liberdade pela qual volta e meia passam pessoas, às vezes um carro ou uma carroça e às vezes alguém de bicicleta, certamente voltando do trabalho. Mais adiante, mas muito mesmo (você não faz ideia da quantidade de espaço que cabe numa janela pequena dessas; depois da guerra eu gostaria de morar, caso sobreviva, em uma casa alta com janelas para o campo), existem umas casas e depois um bosque azulado. A terra é negra e parece ser úmida. Assim como naquele soneto do Staff: lembra do Passeio da primavera?

Mas na nossa enfermaria há também coisas mais civilizadas: um forno de ladrilhos coloridos de maiólica, como aqueles do nosso armazém em Varsóvia. Esse forno tem grelhas montadas muito engenhosamente: pode não parecer, mas dá para assar até um leitão nele. Nos beliches há cobertores do Canadá, felpudos como pelo de gato. Lençóis brancos e sem rugas. Tem uma mesa às vezes coberta por uma toalha, mas só para refeições e datas comemorativas.

A janela dá para a estrada de bétulas – a Birkenweg. É uma pena que seja inverno e que as bétulas “choronas” sem folhas fiquem pendendo para baixo como vassouras esfarrapadas, e que, em vez de gramado embaixo delas, haja uma lama viscosa, certamente igual à que há no mundo “de lá”, além da estrada; só que aqui temos de batê-la com os pés.

Passeamos pela estradinha das bétulas de noitinha após a chamada, cheios de dignidade e com ar solene, cumprimentando os conhecidos, curvando a cabeça. Em uma das encruzilhadas há uma placa com um baixo-relevo de duas pessoas sentadas em um banco, sussurrando uma no ouvido da outra, e uma terceira que, curvando-se até elas, também estica a orelha e escuta. É um alerta: todas as conversas estão sendo ouvidas, comentadas e denunciadas à autoridade devida. Aqui todos sabem tudo sobre o outro: quando passou pela fase muçulmana, o que e quando conseguiu arranjar algo e de quem, quem esganou e quem delatou, e todo mundo sorri com deboche quando você elogia alguém.

Imagine então o Pawiak, multiplicado sabe-se lá quantas vezes, rodeado por uma cerca de arame farpado dupla. Não é como em Birkenau, onde as torres de observação parecem cegonhas em varas altas e as lâmpadas estão acesas a cada três postes, com uma única cerca. Mas em compensação o número de setores é tal que não dá nem para contar nos dedos.

Pois aqui em Auschwitz não é assim. As lâmpadas ficam acesas a cada dois postes, as torres se erguem em bases maciças, o arame da cerca é duplo e ainda tem o muro.

Vamos andando então pela Birkenweg em nossos trajes civis, que acabaram de chegar da Zauna – os únicos cinco que não têm uniformes listrados.

Andamos pela Birkenweg de barba feita, ágeis e despreocupados. A pequena multidão perambula em grupos pequenos e desponta à frente do bloco número 10, onde, por trás das grades e das janelas cobertas de sólidas tábuas, ficam as moças – cobaias de experimentos que frequentemente se aglomeram na frente do bloco Szrajbsztuba –, não porque é onde ficam a sala da orquestra, a biblioteca e o museu, mas simplesmente porque no térreo está o Puff. Deixo para te contar o que é o Puff em outra ocasião; por enquanto pode ficar curiosa...

Você sabe como é estranho escrever para alguém cujo rosto não vejo faz tempo. Sua imagem se desmancha em minha memória e, mesmo com grande empenho e força de vontade, não consigo recordá-la. Há algo de incrível nos sonhos, porque sonho contigo tão nítida e vivamente. Sabe, os sonhos não são só imagem, mas uma experiência em que dá para sentir o peso dos objetos e o calor do seu corpo...

É difícil te imaginar num beliche de campo de concentração, com os cabelos raspados após pegar tifo... Me recordo de você como na época do Pawiak: uma jovem alta, esbelta, de sorriso suave e olhar tristonho. Estava sentada com a cabeça curvada na avenida Szucha e vi apenas seus cabelos escuros, que agora estão raspados.

E isso é a coisa mais poderosa que restou em mim de lá, do mundo de lá: sua imagem, por mais que seja tão difícil me recordar de você. É por isso que escrevo cartas tão longas: porque são como as nossas conversas noturnas de antigamente na rua Skaryszewska. E é por isso que essas cartas são serenas. Preservei muita serenidade dentro de mim e sei que você também. Apesar de tudo. Apesar da cabeça curvada na Gestapo, apesar do tifo, da pneumonia e dos cabelos raspados.

Mas essas pessoas... Veja bem, elas passaram desde o começo pela terrível escola do campo de concentração, sobre o qual circulam lendas. As pessoas pesavam uns 30 quilos, eram espancadas e escolhidas para a câmara de gás – você entende agora por que eles usam jaquetas engraçadas de cintura fina, têm esse andar gingado e exaltam Auschwitz a cada cinco minutos?

É assim que são as coisas... Estamos andando pela Birkenweg, elegantes, de trajes civis. Mas fazer o quê? Somos milionésimos! Cento e três mil, cento e dezenove mil. Mas que tristeza aterradora por não termos chegado a tempo de receber os números mais antigos! Um sujeito de uniforme listrado veio até nós com o número 27 mil, tão antigo que dá tontura imaginar. É um jovem com o olhar turvo de onanista e o andar de animal que pressente perigo.

— Amigos, de onde vocês são?

— De Birkenau, meu amigo.

— De Birkenau? – nos lançou um olhar crítico. — E estão tão bem assim? Mas lá é terrível... Como conseguem aguentar?

Witek, meu amigo alto e exímio músico, respondeu, ajeitando os punhos do terno.

— Piano, infelizmente, a gente não tem! Mas dá para aguentar.

O número antigo olhou para nós como se estivesse olhando através de uma névoa:

— É que a gente tem medo de Birkenau...

Adeus, Maria e outros contos

  • Autor: Tadeusz Borowski
  • Tradução: Matheus Moreira Pena
  • Editora: Carambaia (416 págs.; R$ 149,90 | Ebook R$ 99,90)

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