Barbra Streisand conta tudo em novo livro de memórias - inclusive curiosidade sobre o Brasil


Em sua casa na Califórnia, Streisand fala sobre seu novo livro de memórias, explorando os filmes e os homens de sua vida, e sua determinação em controlar sua própria arte

Por Wesley Morris

THE NEW YORK TIMES - MALIBU, Califórnia – Talvez sejam os netos, talvez sejam os 81 anos de idade, mas o fato é que Barbra Streisand está aberta a coisas novas. Compartilhar, por exemplo. Pelo menos compartilhar suas próprias histórias. Está chegando My Name Is Barbra, seu primeiro livro de memórias. São 970 páginas repletas de dúvidas, raiva, ardor, mágoa, orgulho, persuasão, glória e iídiche. Não sei se algum artista conseguiu compartilhar mais do que ela.

E, ainda assim, no mês passado, depois do almoço na sua casa em Malibu, Califórnia, Streisand compartilhou mais uma coisa, um tesouro que ela guarda quase tanto quanto os detalhes de sua vida. É uma sobremesa. Seu livro traz muita coisa – bastidores de filmes e especiais de televisão, confrontos e vínculos com colaboradores, um capítulo inteiro sobre Don Johnson (é curto) e outro chamado “Política”, sua inabalável preferência por grandes misturas do masculino e do feminino. Mas a comida é tão onipresente que quase se apresenta como o amor da vida de Streisand, em especial o sorvete.

Então, quando chega a hora da sobremesa na casa de Streisand, apesar de qualquer escolha que lhe ofereçam, a verdade é que só existe uma opção. É o sorvete de café brasileiro da McConnell. Ela escreve sobre esse sabor com um zelo orgástico que talvez só se compare a seu entusiasmo por Modigliani e Sondheim.

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Barbra Streisand em show solo no Central Park, em Nova York, em 17 de junho de 1967 Foto: William E. Sauro/The New York Times

Quanto Streisand adora o sorvete de café brasileiro? No livro, ela está no meio de uma história triste sobre um jantar com seu amigo Marlon Brando na casa de Quincy Jones, quando interrompe a narrativa para se entusiasmar com o sabor e relembrar tudo que ela fez para conseguir um pouco do sorvete. Então, é claro que eu queria a mesma sobremesa que ela.

“Okaaayyyy”, disse Streisand. Ela lançou um olhar profundo e cheio de significado para sua assistente de longa data, Renata Buser.

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“Vamos negociar. Aí você faz uma crítica positiva”.

Pânico, pânico, pânico. Não consegui não gaguejar.

Ela ficou sorrindo. Buser ficou sorrindo.

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“Agora adoro dar risada”, disse Streisand, que disse andar preocupada com o estado do planeta.

Buser concordou: “Você realmente precisava rir um pouco”.

Mas Streisand não estava brincando – bem, estava brincando sobre a crítica positiva. Mas não sobre o sorvete.

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Veja só, elas explicaram como duas garotas malvadas fofocando no intervalo da escola, às vezes temos um problema de disponibilidade. (Basicamente, a McConnell’s às vezes tira o sabor “café brasileiro” do mercado, deixando o “café turco” e às vezes apenas... “café”). Quando ela consegue um pouco, praticamente o tranca debaixo de chave. “Meu marido gosta de café turco. Graças a Deus”, diz Streisand sobre o ator James Brolin, seu marido há 25 anos. “Então ele não toca no meu estoque”.

Para deixar claro: não é a mesma coisa?

“Nããão”, disseram Streisand e Buser juntas. Streisand se inclinou para frente e falou: “Você está falando sério? Turquia não é Brasil”.

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E a conversa continua por aí, até que algo crucial de repente ocorre a Streisand.

“Você não é fã de sorvete de café?”

Silêncio total.

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Ela não tinha tempo para isso. “Temos baunilha”. Mais zoeira. “Vou lhe dar uma bola de sorvete – bem, que tal meia bola? Ele vai querer uma bola. Eu fico com o resto”.

Um tempo depois, Buser chega com as tigelas.

Se Loro Piana fizesse sobremesa, teria esse gosto. Buser colocou a porção de Streisand dentro de um cone de wafer, do jeito que ela gosta. A minha parte desapareceu em cerca de noventa segundos. Mas Streisand fez do ato de tomar cada grama de sorvete uma ária de felicidade.

Pequenas mordidinhas na casquinha, depois uma girada em volta da boca. Mordisca, mordisca, gira. Já vi outra pessoa fazer amor com uma sobremesa dessa maneira – a pessoa que me deu à luz. Se não fosse assim, ninguém iria querer o mesmo doce que elas estavam comendo.

Barbra Streisand no camarim nos bastidores do Winter Garden Theatre, em Nova York, onde estava em cartaz com a peça 'Funny Girl', em 27 de março de 1964 Foto: John Orris/The New York Times

O livro de memórias de Streisand abrange sua infância na classe trabalhadora do Brooklyn da década de 1940, sua grande chance na Broadway em Funny Girl (1964), uma carreira no cinema que fez dela a maior atriz da década de 1970, seus álbuns populares e seus especiais de TV líderes audiência, seus prêmios e críticas, seus problemas, terrores e paixões, suas amigas próximas, os homens que ela amou e, sim, as comidas que ela mais adora. My Name Is Barbra é explicativo, reflexivo e esclarecedor. Também é engraçado e surpreendente. A mulher que escreveu está em contato consigo mesma, adora ser ela mesma. Mas não gostou do que há de ostensivo na escrita de memórias. “Fiz terapia muitos, muitos anos atrás, tentando entender essas coisas”, ela me disse. “E fiquei entediada. Realmente não queria reviver minha vida”.

Escrever o livro forçou Streisand não apenas a revivê-la, mas a fazer uma síntese entre presente e passado. Por exemplo: ela muitas vezes reconhece como perder o pai ainda jovem e viver décadas com a mãe – que sempre via a maternidade como um copo meio vazio – a preparou para uma jornada em busca de aprovação.

Essas 970 páginas também fazem do livro um halter de academia. Streisand não gosta do peso. “Eu queria dois volumes”, disse ela. “Quem quer segurar um livro pesado como esse nas mãos?”

Rick Kot, editor executivo da Viking que supervisionou a produção do livro, me disse: “Publicar livros em dois volumes é difícil como empreendimento comercial. E ninguém parece ter qualquer problema com o tamanho”.

"My Name is Barbra" by Barbra Streisand 

A grandeza do livro dá um peso literal à carreira que narra. Streisand se debruça sobre sua vida. Tateia, relembra, às vezes pesquisa no Google enquanto escreve. Não é um livro que você engole, por assim dizer. (A menos que você tenha um almoço com a autora dali a poucos dias, claro). Nem traz as tais “cinco lições” das novas memórias suculentas de Britney Spears e Jada Pinkett Smith. Não que não houvesse pedidos para material mais picante. Streisand disse que Christine Pittel, sua editora, disse “que eu tinha de deixar um pouco de sangue na página”. Então, sentimentos são aprofundados, nomes são revelados.

Também houve um tanto de hesitação. “Demorei muito a entregar o livro”, disse ela. “Acho que tinha de entregá-lo em dois anos”. Entregou em dez. E, enquanto escrevia, pensava em seu legado. “Se você quiser ler sobre mim daqui a vinte ou cinquenta anos, seja quando for – se o mundo durar até lá – estas são as minhas palavras. Estes são os meus pensamentos”. Ela também considerou os outros títulos sobre ela, escritos por outras pessoas. “Espero que você não precise ler muitos livros escritos sobre mim. Sabe, sempre que me contavam o que eles diziam, certas coisas que diziam, eu pensava, tipo, de quem eles estão falando?”

Existem lições, claro. Mas são específicas demais para serem qualificadas como “atuais”. E envolvem sobretudo sua fome de trabalhar e sua busca incessante para manter o controle sobre o trabalho. Cantar e atuar lhe deram fama. A insistência na perfeição lhe rendeu notoriedade. Sexismo e machismo aparecem o tempo todo ao longo do livro.

Mas o que fica mais evidente é que a mulher que tem crédito de “direção” em apenas três filmes (Yentl, O Príncipe das Marés e O Espelho Tem Duas Faces) foi diretora desde o início da carreira. Aqui está a grande revelação do livro – para o leitor, mas também para a autora. “Eu não sabia disso”, disse ela sobre essa tendência para gestão, planejamento, visão, autoridade e obediência aos próprios instintos. “Mas descobri escrevendo o livro. Eu já fazia tudo isso, sabe, quando tinha 19 anos – ou até quando mostrava para minha mãe como fumar”.

Streisand (D) dirigiu e estrelou 'Yentl' (1983) com Mandy Patinkin (E) e Amy Irving (centro). CRÉDITO: MGM Studios/Divulgação Foto: MGM Studios/Divulgação

Streisand é implacável com a deslealdade que enfrentou no trabalho, colaborando com homens. Sydney Chaplin (um dos filhos de Charlie) interpretou o Nick Arnstein original durante sua temporada de Funny Girl na Broadway, e eles tinham um flerte que Chaplin queria consumar e que Streisand preferia manter profissional (até mesmo porque ela era casada com Elliott Gould). Então, ela escreve, Chaplin aprontava com ela. Na frente da plateia ao vivo, ele se inclinava para sussurrar insultos e palavrões. Quando chegou a hora de filmar Hello, Dolly!, Streisand não conseguia entender por que seu colega de elenco Walter Matthau e seu diretor, Gene Kelly (sim, o Gene Kelly), eram tão hostis com ela. Ela confronta Matthau e ele confessa: “Você machucou meu amigo”, referindo-se a Chaplin, seu parceiro de pôquer. Ao longo da carreira, ela enfrentou o que um operador de câmera ranzinza do set de O Príncipe das Marés chamou de Clube do Bolinha.

Este é o tipo de sangue que dá poder ao livro – não a perspectiva de um Brando rude e um Pierre Trudeau amoroso serem almas gêmeas verdadeiras, nem seja lá o que fosse aquela sua coisa bizantina com Jon Peters. Barbra Streisand aguentou uma série de locais de trabalho difíceis, mas nunca parou de tentar fazer o melhor. A experiência com Chaplin a deixou com pavor de palco para o resto da vida. Mas será que também ajudou a aguçar sua vontade de fazer as coisas – no estúdio, no set de um filme, antes de um show – da maneira certa, talvez até exata e obsessivamente certa?

“Quando eu era mais nova, acho que eles tinham um preconceito, sabe, porque talvez eu fosse meio distante ou alguma coisa assim, porque eu era cantora, mas queria ser atriz. E depois, como atriz, eu já queria ser diretora”, ela me disse. “Em outras palavras, queria dar um passo a mais. Ser atriz e também cantora. Para mim, era muito mais fácil olhar o todo. Mesmo quando eu era atriz, eu já me importava com o todo”. Como aquela cena em Nosso Amor de Ontem (1973), de Sydney Pollack, em que Streisand toca o cabelo de Robert Redford enquanto ele dorme, uma escolha pessoal, que ela fez por instinto.

Repetidas vezes – com especiais de TV, shows ao vivo, arranjos musicais – ela punha ideias em prática, o que lhe rendeu uma reputação permanente. E ela sabe disso. No livro, ela conta uma história sobre como fez algumas sugestões para sua apresentação no Grammy de 1980 com Neil Diamond e pondera: “Esse tipo de incidente pode ser o motivo pelo qual sou chamada de ‘difícil’”.

As personagens de Streisand são feitas deste coquetel de “mercurial” e “determinada”, com umas pitadas de “selvagem”. Elas são multitarefas, consumidas tanto pelo trabalho quanto pelo aprendizado de como fazer alguma coisa. Ela era perfeita para comédias românticas durante a segunda onda do feminismo: seu impulso deixava os homens malucos. Minha atuação favorita dessa temporada dos anos 70 é em Negócios com Mulher Nunca Mais, um sucesso descarado, descompromissado e muito engraçado de 1979. Ela está em alta forma expressiva e com os cachos no auge, interpretando Hillary Kramer, uma magnata das fragrâncias forçada a vender sua empresa depois que o contador foge com todo o seu dinheiro. Mas ela descobre um trunfo surpresa: um péssimo boxeador, Eddie “Kid Natural” Scanlon (Ryan O’Neal), cuja carreira ela tenta mudar. O filme, dirigido por Howard Zieff, resume a experiência de Streisand: sua tenacidade, seu conforto tanto como atriz cômica quanto como versão de si mesma, sua exasperação com homens que a exploram e a excluem.

Eddie não quer trabalhar com Hillary e aposta que a visão de seu rosto machucado vai fazê-la desistir de ser empresária do boxe, só de nojo. A violência do esporte realmente faz Hillary vomitar no caminho de casa depois de uma das lutas. Mas não a faz desistir. “Espero que isso tenha lhe ensinado uma lição”, diz Whitman Mayo, que interpreta o amigo e treinador de Eddie, Percy. “Sim”, diz Streisand. “Precisamos deixá-lo em forma”.

Os dois homens compartilham um mesmo sentimento de desânimo, aparentemente típico quando se trata de Streisand. “Ela não vai desistir, Percy”, diz Eddie ao treinador, que só pode concordar: “É um problema”. As pessoas que negociaram com ela provavelmente reconhecem a resignação cansada no rosto de O’Neal. Ele vai perder a batalha.

É razoável suspeitar que Tom Rothman, chefe da Sony Pictures, conheça esse sentimento. Quando a empresa planejava lançar uma edição de aniversário de Nosso Amor de Ontem este ano, Streisand defendeu que ele incluísse duas cenas que – para sua tristeza – haviam sido omitidas do original. Para Rothman, o problema em ceder ao desejo a Streisand era que, como “executivo de cineastas”, segundo ele disse numa entrevista, ele não queria mudar nada sem a colaboração de Pollack. Mas Pollack morreu quinze anos atrás. Eles concordaram em lançar duas versões: a de Pollack e, essencialmente, a versão estendida de Streisand.

Foi um triunfo de sua implacabilidade, ela escreve. “A palavra que ela usa no livro é 100% precisa”, Rothman me disse. “Ela é implacável”. O fato de ela estar certa sobre as cenas não importava para seus resultados financeiros, exigindo que ele fizesse justiça à memória de Pollack ao mesmo tempo em que aplacava as preocupações de Streisand sobre a injustiça criativa. “Ela dizia: ‘Assim é melhor, assim é melhor!’ E eu dizia: ‘Mas Sydney Pollack não queria assim!’”.

A razão pela qual Rothman queria chegar a uma solução feliz era a pessoa com quem ele estava negociando. “Barbra quebrou muitas fronteiras não apenas artísticas para mulheres no mundo do cinema, de Hollywood, em termos de assumir o controle de sua carreira”, disse ele. “Tenho um respeito infinito por ela”.

A imensidão de Streisand – as ambições sem precedentes, o ar inocente, a sensualidade, o talento, a orquestração, a paixão, a originalidade; sua persistência e infatigabilidade; as roupas; o cabelo – foram um divisor de águas. Ela estava sempre se adaptando, talvez não ao que era “legal” ou “atual”, mas certamente a quem ela sentia que era em determinado momento. “Você me conhece”, ela escreve quase no final do livro. “Eu sou a rainha das versões”.

Há uma linha direta entre Streisand e Madonna, Janet Jackson, Jennifer Lopez, Queen Latifah, Beyoncé, Lady Gaga, Taylor Swift – rainhas de diferentes reinos. Esta é apenas uma lista das pessoas óbvias que a seguiram no showbiz e não faz menção às pessoas menos famosas que Streisand inspirou em milhares de outras conquistas. Ela é “seja verdadeira consigo mesma” em neon. Talvez seja este o verdadeiro Efeito Streisand. E agora ela pode dar um passo para trás e contemplar tudo isso.

“Tudo isso me dá uma verdadeira alegria, ter influenciado algumas pessoas a fazerem o que queriam”, disse Streisand. “Ter lhes dado algum tipo de coragem. Ou, sabe, se essas pessoas se sentiam diferentes, eu também era alguém que se sentia diferente. É uma recompensa para mim. Estou me sentindo maravilhosa”.

Este artigo foi originalmente publicado em The New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - MALIBU, Califórnia – Talvez sejam os netos, talvez sejam os 81 anos de idade, mas o fato é que Barbra Streisand está aberta a coisas novas. Compartilhar, por exemplo. Pelo menos compartilhar suas próprias histórias. Está chegando My Name Is Barbra, seu primeiro livro de memórias. São 970 páginas repletas de dúvidas, raiva, ardor, mágoa, orgulho, persuasão, glória e iídiche. Não sei se algum artista conseguiu compartilhar mais do que ela.

E, ainda assim, no mês passado, depois do almoço na sua casa em Malibu, Califórnia, Streisand compartilhou mais uma coisa, um tesouro que ela guarda quase tanto quanto os detalhes de sua vida. É uma sobremesa. Seu livro traz muita coisa – bastidores de filmes e especiais de televisão, confrontos e vínculos com colaboradores, um capítulo inteiro sobre Don Johnson (é curto) e outro chamado “Política”, sua inabalável preferência por grandes misturas do masculino e do feminino. Mas a comida é tão onipresente que quase se apresenta como o amor da vida de Streisand, em especial o sorvete.

Então, quando chega a hora da sobremesa na casa de Streisand, apesar de qualquer escolha que lhe ofereçam, a verdade é que só existe uma opção. É o sorvete de café brasileiro da McConnell. Ela escreve sobre esse sabor com um zelo orgástico que talvez só se compare a seu entusiasmo por Modigliani e Sondheim.

Barbra Streisand em show solo no Central Park, em Nova York, em 17 de junho de 1967 Foto: William E. Sauro/The New York Times

Quanto Streisand adora o sorvete de café brasileiro? No livro, ela está no meio de uma história triste sobre um jantar com seu amigo Marlon Brando na casa de Quincy Jones, quando interrompe a narrativa para se entusiasmar com o sabor e relembrar tudo que ela fez para conseguir um pouco do sorvete. Então, é claro que eu queria a mesma sobremesa que ela.

“Okaaayyyy”, disse Streisand. Ela lançou um olhar profundo e cheio de significado para sua assistente de longa data, Renata Buser.

“Vamos negociar. Aí você faz uma crítica positiva”.

Pânico, pânico, pânico. Não consegui não gaguejar.

Ela ficou sorrindo. Buser ficou sorrindo.

“Agora adoro dar risada”, disse Streisand, que disse andar preocupada com o estado do planeta.

Buser concordou: “Você realmente precisava rir um pouco”.

Mas Streisand não estava brincando – bem, estava brincando sobre a crítica positiva. Mas não sobre o sorvete.

Veja só, elas explicaram como duas garotas malvadas fofocando no intervalo da escola, às vezes temos um problema de disponibilidade. (Basicamente, a McConnell’s às vezes tira o sabor “café brasileiro” do mercado, deixando o “café turco” e às vezes apenas... “café”). Quando ela consegue um pouco, praticamente o tranca debaixo de chave. “Meu marido gosta de café turco. Graças a Deus”, diz Streisand sobre o ator James Brolin, seu marido há 25 anos. “Então ele não toca no meu estoque”.

Para deixar claro: não é a mesma coisa?

“Nããão”, disseram Streisand e Buser juntas. Streisand se inclinou para frente e falou: “Você está falando sério? Turquia não é Brasil”.

E a conversa continua por aí, até que algo crucial de repente ocorre a Streisand.

“Você não é fã de sorvete de café?”

Silêncio total.

Ela não tinha tempo para isso. “Temos baunilha”. Mais zoeira. “Vou lhe dar uma bola de sorvete – bem, que tal meia bola? Ele vai querer uma bola. Eu fico com o resto”.

Um tempo depois, Buser chega com as tigelas.

Se Loro Piana fizesse sobremesa, teria esse gosto. Buser colocou a porção de Streisand dentro de um cone de wafer, do jeito que ela gosta. A minha parte desapareceu em cerca de noventa segundos. Mas Streisand fez do ato de tomar cada grama de sorvete uma ária de felicidade.

Pequenas mordidinhas na casquinha, depois uma girada em volta da boca. Mordisca, mordisca, gira. Já vi outra pessoa fazer amor com uma sobremesa dessa maneira – a pessoa que me deu à luz. Se não fosse assim, ninguém iria querer o mesmo doce que elas estavam comendo.

Barbra Streisand no camarim nos bastidores do Winter Garden Theatre, em Nova York, onde estava em cartaz com a peça 'Funny Girl', em 27 de março de 1964 Foto: John Orris/The New York Times

O livro de memórias de Streisand abrange sua infância na classe trabalhadora do Brooklyn da década de 1940, sua grande chance na Broadway em Funny Girl (1964), uma carreira no cinema que fez dela a maior atriz da década de 1970, seus álbuns populares e seus especiais de TV líderes audiência, seus prêmios e críticas, seus problemas, terrores e paixões, suas amigas próximas, os homens que ela amou e, sim, as comidas que ela mais adora. My Name Is Barbra é explicativo, reflexivo e esclarecedor. Também é engraçado e surpreendente. A mulher que escreveu está em contato consigo mesma, adora ser ela mesma. Mas não gostou do que há de ostensivo na escrita de memórias. “Fiz terapia muitos, muitos anos atrás, tentando entender essas coisas”, ela me disse. “E fiquei entediada. Realmente não queria reviver minha vida”.

Escrever o livro forçou Streisand não apenas a revivê-la, mas a fazer uma síntese entre presente e passado. Por exemplo: ela muitas vezes reconhece como perder o pai ainda jovem e viver décadas com a mãe – que sempre via a maternidade como um copo meio vazio – a preparou para uma jornada em busca de aprovação.

Essas 970 páginas também fazem do livro um halter de academia. Streisand não gosta do peso. “Eu queria dois volumes”, disse ela. “Quem quer segurar um livro pesado como esse nas mãos?”

Rick Kot, editor executivo da Viking que supervisionou a produção do livro, me disse: “Publicar livros em dois volumes é difícil como empreendimento comercial. E ninguém parece ter qualquer problema com o tamanho”.

"My Name is Barbra" by Barbra Streisand 

A grandeza do livro dá um peso literal à carreira que narra. Streisand se debruça sobre sua vida. Tateia, relembra, às vezes pesquisa no Google enquanto escreve. Não é um livro que você engole, por assim dizer. (A menos que você tenha um almoço com a autora dali a poucos dias, claro). Nem traz as tais “cinco lições” das novas memórias suculentas de Britney Spears e Jada Pinkett Smith. Não que não houvesse pedidos para material mais picante. Streisand disse que Christine Pittel, sua editora, disse “que eu tinha de deixar um pouco de sangue na página”. Então, sentimentos são aprofundados, nomes são revelados.

Também houve um tanto de hesitação. “Demorei muito a entregar o livro”, disse ela. “Acho que tinha de entregá-lo em dois anos”. Entregou em dez. E, enquanto escrevia, pensava em seu legado. “Se você quiser ler sobre mim daqui a vinte ou cinquenta anos, seja quando for – se o mundo durar até lá – estas são as minhas palavras. Estes são os meus pensamentos”. Ela também considerou os outros títulos sobre ela, escritos por outras pessoas. “Espero que você não precise ler muitos livros escritos sobre mim. Sabe, sempre que me contavam o que eles diziam, certas coisas que diziam, eu pensava, tipo, de quem eles estão falando?”

Existem lições, claro. Mas são específicas demais para serem qualificadas como “atuais”. E envolvem sobretudo sua fome de trabalhar e sua busca incessante para manter o controle sobre o trabalho. Cantar e atuar lhe deram fama. A insistência na perfeição lhe rendeu notoriedade. Sexismo e machismo aparecem o tempo todo ao longo do livro.

Mas o que fica mais evidente é que a mulher que tem crédito de “direção” em apenas três filmes (Yentl, O Príncipe das Marés e O Espelho Tem Duas Faces) foi diretora desde o início da carreira. Aqui está a grande revelação do livro – para o leitor, mas também para a autora. “Eu não sabia disso”, disse ela sobre essa tendência para gestão, planejamento, visão, autoridade e obediência aos próprios instintos. “Mas descobri escrevendo o livro. Eu já fazia tudo isso, sabe, quando tinha 19 anos – ou até quando mostrava para minha mãe como fumar”.

Streisand (D) dirigiu e estrelou 'Yentl' (1983) com Mandy Patinkin (E) e Amy Irving (centro). CRÉDITO: MGM Studios/Divulgação Foto: MGM Studios/Divulgação

Streisand é implacável com a deslealdade que enfrentou no trabalho, colaborando com homens. Sydney Chaplin (um dos filhos de Charlie) interpretou o Nick Arnstein original durante sua temporada de Funny Girl na Broadway, e eles tinham um flerte que Chaplin queria consumar e que Streisand preferia manter profissional (até mesmo porque ela era casada com Elliott Gould). Então, ela escreve, Chaplin aprontava com ela. Na frente da plateia ao vivo, ele se inclinava para sussurrar insultos e palavrões. Quando chegou a hora de filmar Hello, Dolly!, Streisand não conseguia entender por que seu colega de elenco Walter Matthau e seu diretor, Gene Kelly (sim, o Gene Kelly), eram tão hostis com ela. Ela confronta Matthau e ele confessa: “Você machucou meu amigo”, referindo-se a Chaplin, seu parceiro de pôquer. Ao longo da carreira, ela enfrentou o que um operador de câmera ranzinza do set de O Príncipe das Marés chamou de Clube do Bolinha.

Este é o tipo de sangue que dá poder ao livro – não a perspectiva de um Brando rude e um Pierre Trudeau amoroso serem almas gêmeas verdadeiras, nem seja lá o que fosse aquela sua coisa bizantina com Jon Peters. Barbra Streisand aguentou uma série de locais de trabalho difíceis, mas nunca parou de tentar fazer o melhor. A experiência com Chaplin a deixou com pavor de palco para o resto da vida. Mas será que também ajudou a aguçar sua vontade de fazer as coisas – no estúdio, no set de um filme, antes de um show – da maneira certa, talvez até exata e obsessivamente certa?

“Quando eu era mais nova, acho que eles tinham um preconceito, sabe, porque talvez eu fosse meio distante ou alguma coisa assim, porque eu era cantora, mas queria ser atriz. E depois, como atriz, eu já queria ser diretora”, ela me disse. “Em outras palavras, queria dar um passo a mais. Ser atriz e também cantora. Para mim, era muito mais fácil olhar o todo. Mesmo quando eu era atriz, eu já me importava com o todo”. Como aquela cena em Nosso Amor de Ontem (1973), de Sydney Pollack, em que Streisand toca o cabelo de Robert Redford enquanto ele dorme, uma escolha pessoal, que ela fez por instinto.

Repetidas vezes – com especiais de TV, shows ao vivo, arranjos musicais – ela punha ideias em prática, o que lhe rendeu uma reputação permanente. E ela sabe disso. No livro, ela conta uma história sobre como fez algumas sugestões para sua apresentação no Grammy de 1980 com Neil Diamond e pondera: “Esse tipo de incidente pode ser o motivo pelo qual sou chamada de ‘difícil’”.

As personagens de Streisand são feitas deste coquetel de “mercurial” e “determinada”, com umas pitadas de “selvagem”. Elas são multitarefas, consumidas tanto pelo trabalho quanto pelo aprendizado de como fazer alguma coisa. Ela era perfeita para comédias românticas durante a segunda onda do feminismo: seu impulso deixava os homens malucos. Minha atuação favorita dessa temporada dos anos 70 é em Negócios com Mulher Nunca Mais, um sucesso descarado, descompromissado e muito engraçado de 1979. Ela está em alta forma expressiva e com os cachos no auge, interpretando Hillary Kramer, uma magnata das fragrâncias forçada a vender sua empresa depois que o contador foge com todo o seu dinheiro. Mas ela descobre um trunfo surpresa: um péssimo boxeador, Eddie “Kid Natural” Scanlon (Ryan O’Neal), cuja carreira ela tenta mudar. O filme, dirigido por Howard Zieff, resume a experiência de Streisand: sua tenacidade, seu conforto tanto como atriz cômica quanto como versão de si mesma, sua exasperação com homens que a exploram e a excluem.

Eddie não quer trabalhar com Hillary e aposta que a visão de seu rosto machucado vai fazê-la desistir de ser empresária do boxe, só de nojo. A violência do esporte realmente faz Hillary vomitar no caminho de casa depois de uma das lutas. Mas não a faz desistir. “Espero que isso tenha lhe ensinado uma lição”, diz Whitman Mayo, que interpreta o amigo e treinador de Eddie, Percy. “Sim”, diz Streisand. “Precisamos deixá-lo em forma”.

Os dois homens compartilham um mesmo sentimento de desânimo, aparentemente típico quando se trata de Streisand. “Ela não vai desistir, Percy”, diz Eddie ao treinador, que só pode concordar: “É um problema”. As pessoas que negociaram com ela provavelmente reconhecem a resignação cansada no rosto de O’Neal. Ele vai perder a batalha.

É razoável suspeitar que Tom Rothman, chefe da Sony Pictures, conheça esse sentimento. Quando a empresa planejava lançar uma edição de aniversário de Nosso Amor de Ontem este ano, Streisand defendeu que ele incluísse duas cenas que – para sua tristeza – haviam sido omitidas do original. Para Rothman, o problema em ceder ao desejo a Streisand era que, como “executivo de cineastas”, segundo ele disse numa entrevista, ele não queria mudar nada sem a colaboração de Pollack. Mas Pollack morreu quinze anos atrás. Eles concordaram em lançar duas versões: a de Pollack e, essencialmente, a versão estendida de Streisand.

Foi um triunfo de sua implacabilidade, ela escreve. “A palavra que ela usa no livro é 100% precisa”, Rothman me disse. “Ela é implacável”. O fato de ela estar certa sobre as cenas não importava para seus resultados financeiros, exigindo que ele fizesse justiça à memória de Pollack ao mesmo tempo em que aplacava as preocupações de Streisand sobre a injustiça criativa. “Ela dizia: ‘Assim é melhor, assim é melhor!’ E eu dizia: ‘Mas Sydney Pollack não queria assim!’”.

A razão pela qual Rothman queria chegar a uma solução feliz era a pessoa com quem ele estava negociando. “Barbra quebrou muitas fronteiras não apenas artísticas para mulheres no mundo do cinema, de Hollywood, em termos de assumir o controle de sua carreira”, disse ele. “Tenho um respeito infinito por ela”.

A imensidão de Streisand – as ambições sem precedentes, o ar inocente, a sensualidade, o talento, a orquestração, a paixão, a originalidade; sua persistência e infatigabilidade; as roupas; o cabelo – foram um divisor de águas. Ela estava sempre se adaptando, talvez não ao que era “legal” ou “atual”, mas certamente a quem ela sentia que era em determinado momento. “Você me conhece”, ela escreve quase no final do livro. “Eu sou a rainha das versões”.

Há uma linha direta entre Streisand e Madonna, Janet Jackson, Jennifer Lopez, Queen Latifah, Beyoncé, Lady Gaga, Taylor Swift – rainhas de diferentes reinos. Esta é apenas uma lista das pessoas óbvias que a seguiram no showbiz e não faz menção às pessoas menos famosas que Streisand inspirou em milhares de outras conquistas. Ela é “seja verdadeira consigo mesma” em neon. Talvez seja este o verdadeiro Efeito Streisand. E agora ela pode dar um passo para trás e contemplar tudo isso.

“Tudo isso me dá uma verdadeira alegria, ter influenciado algumas pessoas a fazerem o que queriam”, disse Streisand. “Ter lhes dado algum tipo de coragem. Ou, sabe, se essas pessoas se sentiam diferentes, eu também era alguém que se sentia diferente. É uma recompensa para mim. Estou me sentindo maravilhosa”.

Este artigo foi originalmente publicado em The New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - MALIBU, Califórnia – Talvez sejam os netos, talvez sejam os 81 anos de idade, mas o fato é que Barbra Streisand está aberta a coisas novas. Compartilhar, por exemplo. Pelo menos compartilhar suas próprias histórias. Está chegando My Name Is Barbra, seu primeiro livro de memórias. São 970 páginas repletas de dúvidas, raiva, ardor, mágoa, orgulho, persuasão, glória e iídiche. Não sei se algum artista conseguiu compartilhar mais do que ela.

E, ainda assim, no mês passado, depois do almoço na sua casa em Malibu, Califórnia, Streisand compartilhou mais uma coisa, um tesouro que ela guarda quase tanto quanto os detalhes de sua vida. É uma sobremesa. Seu livro traz muita coisa – bastidores de filmes e especiais de televisão, confrontos e vínculos com colaboradores, um capítulo inteiro sobre Don Johnson (é curto) e outro chamado “Política”, sua inabalável preferência por grandes misturas do masculino e do feminino. Mas a comida é tão onipresente que quase se apresenta como o amor da vida de Streisand, em especial o sorvete.

Então, quando chega a hora da sobremesa na casa de Streisand, apesar de qualquer escolha que lhe ofereçam, a verdade é que só existe uma opção. É o sorvete de café brasileiro da McConnell. Ela escreve sobre esse sabor com um zelo orgástico que talvez só se compare a seu entusiasmo por Modigliani e Sondheim.

Barbra Streisand em show solo no Central Park, em Nova York, em 17 de junho de 1967 Foto: William E. Sauro/The New York Times

Quanto Streisand adora o sorvete de café brasileiro? No livro, ela está no meio de uma história triste sobre um jantar com seu amigo Marlon Brando na casa de Quincy Jones, quando interrompe a narrativa para se entusiasmar com o sabor e relembrar tudo que ela fez para conseguir um pouco do sorvete. Então, é claro que eu queria a mesma sobremesa que ela.

“Okaaayyyy”, disse Streisand. Ela lançou um olhar profundo e cheio de significado para sua assistente de longa data, Renata Buser.

“Vamos negociar. Aí você faz uma crítica positiva”.

Pânico, pânico, pânico. Não consegui não gaguejar.

Ela ficou sorrindo. Buser ficou sorrindo.

“Agora adoro dar risada”, disse Streisand, que disse andar preocupada com o estado do planeta.

Buser concordou: “Você realmente precisava rir um pouco”.

Mas Streisand não estava brincando – bem, estava brincando sobre a crítica positiva. Mas não sobre o sorvete.

Veja só, elas explicaram como duas garotas malvadas fofocando no intervalo da escola, às vezes temos um problema de disponibilidade. (Basicamente, a McConnell’s às vezes tira o sabor “café brasileiro” do mercado, deixando o “café turco” e às vezes apenas... “café”). Quando ela consegue um pouco, praticamente o tranca debaixo de chave. “Meu marido gosta de café turco. Graças a Deus”, diz Streisand sobre o ator James Brolin, seu marido há 25 anos. “Então ele não toca no meu estoque”.

Para deixar claro: não é a mesma coisa?

“Nããão”, disseram Streisand e Buser juntas. Streisand se inclinou para frente e falou: “Você está falando sério? Turquia não é Brasil”.

E a conversa continua por aí, até que algo crucial de repente ocorre a Streisand.

“Você não é fã de sorvete de café?”

Silêncio total.

Ela não tinha tempo para isso. “Temos baunilha”. Mais zoeira. “Vou lhe dar uma bola de sorvete – bem, que tal meia bola? Ele vai querer uma bola. Eu fico com o resto”.

Um tempo depois, Buser chega com as tigelas.

Se Loro Piana fizesse sobremesa, teria esse gosto. Buser colocou a porção de Streisand dentro de um cone de wafer, do jeito que ela gosta. A minha parte desapareceu em cerca de noventa segundos. Mas Streisand fez do ato de tomar cada grama de sorvete uma ária de felicidade.

Pequenas mordidinhas na casquinha, depois uma girada em volta da boca. Mordisca, mordisca, gira. Já vi outra pessoa fazer amor com uma sobremesa dessa maneira – a pessoa que me deu à luz. Se não fosse assim, ninguém iria querer o mesmo doce que elas estavam comendo.

Barbra Streisand no camarim nos bastidores do Winter Garden Theatre, em Nova York, onde estava em cartaz com a peça 'Funny Girl', em 27 de março de 1964 Foto: John Orris/The New York Times

O livro de memórias de Streisand abrange sua infância na classe trabalhadora do Brooklyn da década de 1940, sua grande chance na Broadway em Funny Girl (1964), uma carreira no cinema que fez dela a maior atriz da década de 1970, seus álbuns populares e seus especiais de TV líderes audiência, seus prêmios e críticas, seus problemas, terrores e paixões, suas amigas próximas, os homens que ela amou e, sim, as comidas que ela mais adora. My Name Is Barbra é explicativo, reflexivo e esclarecedor. Também é engraçado e surpreendente. A mulher que escreveu está em contato consigo mesma, adora ser ela mesma. Mas não gostou do que há de ostensivo na escrita de memórias. “Fiz terapia muitos, muitos anos atrás, tentando entender essas coisas”, ela me disse. “E fiquei entediada. Realmente não queria reviver minha vida”.

Escrever o livro forçou Streisand não apenas a revivê-la, mas a fazer uma síntese entre presente e passado. Por exemplo: ela muitas vezes reconhece como perder o pai ainda jovem e viver décadas com a mãe – que sempre via a maternidade como um copo meio vazio – a preparou para uma jornada em busca de aprovação.

Essas 970 páginas também fazem do livro um halter de academia. Streisand não gosta do peso. “Eu queria dois volumes”, disse ela. “Quem quer segurar um livro pesado como esse nas mãos?”

Rick Kot, editor executivo da Viking que supervisionou a produção do livro, me disse: “Publicar livros em dois volumes é difícil como empreendimento comercial. E ninguém parece ter qualquer problema com o tamanho”.

"My Name is Barbra" by Barbra Streisand 

A grandeza do livro dá um peso literal à carreira que narra. Streisand se debruça sobre sua vida. Tateia, relembra, às vezes pesquisa no Google enquanto escreve. Não é um livro que você engole, por assim dizer. (A menos que você tenha um almoço com a autora dali a poucos dias, claro). Nem traz as tais “cinco lições” das novas memórias suculentas de Britney Spears e Jada Pinkett Smith. Não que não houvesse pedidos para material mais picante. Streisand disse que Christine Pittel, sua editora, disse “que eu tinha de deixar um pouco de sangue na página”. Então, sentimentos são aprofundados, nomes são revelados.

Também houve um tanto de hesitação. “Demorei muito a entregar o livro”, disse ela. “Acho que tinha de entregá-lo em dois anos”. Entregou em dez. E, enquanto escrevia, pensava em seu legado. “Se você quiser ler sobre mim daqui a vinte ou cinquenta anos, seja quando for – se o mundo durar até lá – estas são as minhas palavras. Estes são os meus pensamentos”. Ela também considerou os outros títulos sobre ela, escritos por outras pessoas. “Espero que você não precise ler muitos livros escritos sobre mim. Sabe, sempre que me contavam o que eles diziam, certas coisas que diziam, eu pensava, tipo, de quem eles estão falando?”

Existem lições, claro. Mas são específicas demais para serem qualificadas como “atuais”. E envolvem sobretudo sua fome de trabalhar e sua busca incessante para manter o controle sobre o trabalho. Cantar e atuar lhe deram fama. A insistência na perfeição lhe rendeu notoriedade. Sexismo e machismo aparecem o tempo todo ao longo do livro.

Mas o que fica mais evidente é que a mulher que tem crédito de “direção” em apenas três filmes (Yentl, O Príncipe das Marés e O Espelho Tem Duas Faces) foi diretora desde o início da carreira. Aqui está a grande revelação do livro – para o leitor, mas também para a autora. “Eu não sabia disso”, disse ela sobre essa tendência para gestão, planejamento, visão, autoridade e obediência aos próprios instintos. “Mas descobri escrevendo o livro. Eu já fazia tudo isso, sabe, quando tinha 19 anos – ou até quando mostrava para minha mãe como fumar”.

Streisand (D) dirigiu e estrelou 'Yentl' (1983) com Mandy Patinkin (E) e Amy Irving (centro). CRÉDITO: MGM Studios/Divulgação Foto: MGM Studios/Divulgação

Streisand é implacável com a deslealdade que enfrentou no trabalho, colaborando com homens. Sydney Chaplin (um dos filhos de Charlie) interpretou o Nick Arnstein original durante sua temporada de Funny Girl na Broadway, e eles tinham um flerte que Chaplin queria consumar e que Streisand preferia manter profissional (até mesmo porque ela era casada com Elliott Gould). Então, ela escreve, Chaplin aprontava com ela. Na frente da plateia ao vivo, ele se inclinava para sussurrar insultos e palavrões. Quando chegou a hora de filmar Hello, Dolly!, Streisand não conseguia entender por que seu colega de elenco Walter Matthau e seu diretor, Gene Kelly (sim, o Gene Kelly), eram tão hostis com ela. Ela confronta Matthau e ele confessa: “Você machucou meu amigo”, referindo-se a Chaplin, seu parceiro de pôquer. Ao longo da carreira, ela enfrentou o que um operador de câmera ranzinza do set de O Príncipe das Marés chamou de Clube do Bolinha.

Este é o tipo de sangue que dá poder ao livro – não a perspectiva de um Brando rude e um Pierre Trudeau amoroso serem almas gêmeas verdadeiras, nem seja lá o que fosse aquela sua coisa bizantina com Jon Peters. Barbra Streisand aguentou uma série de locais de trabalho difíceis, mas nunca parou de tentar fazer o melhor. A experiência com Chaplin a deixou com pavor de palco para o resto da vida. Mas será que também ajudou a aguçar sua vontade de fazer as coisas – no estúdio, no set de um filme, antes de um show – da maneira certa, talvez até exata e obsessivamente certa?

“Quando eu era mais nova, acho que eles tinham um preconceito, sabe, porque talvez eu fosse meio distante ou alguma coisa assim, porque eu era cantora, mas queria ser atriz. E depois, como atriz, eu já queria ser diretora”, ela me disse. “Em outras palavras, queria dar um passo a mais. Ser atriz e também cantora. Para mim, era muito mais fácil olhar o todo. Mesmo quando eu era atriz, eu já me importava com o todo”. Como aquela cena em Nosso Amor de Ontem (1973), de Sydney Pollack, em que Streisand toca o cabelo de Robert Redford enquanto ele dorme, uma escolha pessoal, que ela fez por instinto.

Repetidas vezes – com especiais de TV, shows ao vivo, arranjos musicais – ela punha ideias em prática, o que lhe rendeu uma reputação permanente. E ela sabe disso. No livro, ela conta uma história sobre como fez algumas sugestões para sua apresentação no Grammy de 1980 com Neil Diamond e pondera: “Esse tipo de incidente pode ser o motivo pelo qual sou chamada de ‘difícil’”.

As personagens de Streisand são feitas deste coquetel de “mercurial” e “determinada”, com umas pitadas de “selvagem”. Elas são multitarefas, consumidas tanto pelo trabalho quanto pelo aprendizado de como fazer alguma coisa. Ela era perfeita para comédias românticas durante a segunda onda do feminismo: seu impulso deixava os homens malucos. Minha atuação favorita dessa temporada dos anos 70 é em Negócios com Mulher Nunca Mais, um sucesso descarado, descompromissado e muito engraçado de 1979. Ela está em alta forma expressiva e com os cachos no auge, interpretando Hillary Kramer, uma magnata das fragrâncias forçada a vender sua empresa depois que o contador foge com todo o seu dinheiro. Mas ela descobre um trunfo surpresa: um péssimo boxeador, Eddie “Kid Natural” Scanlon (Ryan O’Neal), cuja carreira ela tenta mudar. O filme, dirigido por Howard Zieff, resume a experiência de Streisand: sua tenacidade, seu conforto tanto como atriz cômica quanto como versão de si mesma, sua exasperação com homens que a exploram e a excluem.

Eddie não quer trabalhar com Hillary e aposta que a visão de seu rosto machucado vai fazê-la desistir de ser empresária do boxe, só de nojo. A violência do esporte realmente faz Hillary vomitar no caminho de casa depois de uma das lutas. Mas não a faz desistir. “Espero que isso tenha lhe ensinado uma lição”, diz Whitman Mayo, que interpreta o amigo e treinador de Eddie, Percy. “Sim”, diz Streisand. “Precisamos deixá-lo em forma”.

Os dois homens compartilham um mesmo sentimento de desânimo, aparentemente típico quando se trata de Streisand. “Ela não vai desistir, Percy”, diz Eddie ao treinador, que só pode concordar: “É um problema”. As pessoas que negociaram com ela provavelmente reconhecem a resignação cansada no rosto de O’Neal. Ele vai perder a batalha.

É razoável suspeitar que Tom Rothman, chefe da Sony Pictures, conheça esse sentimento. Quando a empresa planejava lançar uma edição de aniversário de Nosso Amor de Ontem este ano, Streisand defendeu que ele incluísse duas cenas que – para sua tristeza – haviam sido omitidas do original. Para Rothman, o problema em ceder ao desejo a Streisand era que, como “executivo de cineastas”, segundo ele disse numa entrevista, ele não queria mudar nada sem a colaboração de Pollack. Mas Pollack morreu quinze anos atrás. Eles concordaram em lançar duas versões: a de Pollack e, essencialmente, a versão estendida de Streisand.

Foi um triunfo de sua implacabilidade, ela escreve. “A palavra que ela usa no livro é 100% precisa”, Rothman me disse. “Ela é implacável”. O fato de ela estar certa sobre as cenas não importava para seus resultados financeiros, exigindo que ele fizesse justiça à memória de Pollack ao mesmo tempo em que aplacava as preocupações de Streisand sobre a injustiça criativa. “Ela dizia: ‘Assim é melhor, assim é melhor!’ E eu dizia: ‘Mas Sydney Pollack não queria assim!’”.

A razão pela qual Rothman queria chegar a uma solução feliz era a pessoa com quem ele estava negociando. “Barbra quebrou muitas fronteiras não apenas artísticas para mulheres no mundo do cinema, de Hollywood, em termos de assumir o controle de sua carreira”, disse ele. “Tenho um respeito infinito por ela”.

A imensidão de Streisand – as ambições sem precedentes, o ar inocente, a sensualidade, o talento, a orquestração, a paixão, a originalidade; sua persistência e infatigabilidade; as roupas; o cabelo – foram um divisor de águas. Ela estava sempre se adaptando, talvez não ao que era “legal” ou “atual”, mas certamente a quem ela sentia que era em determinado momento. “Você me conhece”, ela escreve quase no final do livro. “Eu sou a rainha das versões”.

Há uma linha direta entre Streisand e Madonna, Janet Jackson, Jennifer Lopez, Queen Latifah, Beyoncé, Lady Gaga, Taylor Swift – rainhas de diferentes reinos. Esta é apenas uma lista das pessoas óbvias que a seguiram no showbiz e não faz menção às pessoas menos famosas que Streisand inspirou em milhares de outras conquistas. Ela é “seja verdadeira consigo mesma” em neon. Talvez seja este o verdadeiro Efeito Streisand. E agora ela pode dar um passo para trás e contemplar tudo isso.

“Tudo isso me dá uma verdadeira alegria, ter influenciado algumas pessoas a fazerem o que queriam”, disse Streisand. “Ter lhes dado algum tipo de coragem. Ou, sabe, se essas pessoas se sentiam diferentes, eu também era alguém que se sentia diferente. É uma recompensa para mim. Estou me sentindo maravilhosa”.

Este artigo foi originalmente publicado em The New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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