A coleção de livros de Christian Dunker é um ‘megazord’. Um organismo enorme e em constante transformação. A biblioteca toma boa parte de seu escritório, com direito a um anexo ao lado, e ainda se espalha por outros cômodos da casa na zona sul de São Paulo. “É difícil calcular quantos exemplares tem aqui. Houve uma época em que chegamos a 7 mil, mas depois uma parte foi para a casa do meu filho e outra parte foi doada. Só que agora o número está crescendo de novo.”
Dunker abriu as portas da residência à reportagem do Estadão e fez um tour pelo acervo pessoal. Entre os destaques estão seu fascínio pelo psicanalista francês Jacques Lacan e uma variada coleção de filósofos. Mas o escritor garante que não lê apenas pensadores com os quais concorda. Olavo de Carvalho, por exemplo, com quem ele diz que ‘teve inúmeros entreveros’, tem espaço em sua estante.
Christian Dunker
De Olavo, ele destaca o exemplar de O Imbecil Coletivo: “É interessante para entender o Brasil dos anos 1950, o início de um pensamento conservador brasileiro e a gênese dos seus equívocos”. Dunker diz ainda que leu um trabalho do falecido autor sobre Aristóteles. “É um texto que começa muito bem, até me surpreendeu, mas depois degringola completamente.”
O ‘guru bolsonarista’ está numa parte da biblioteca de Dunker dedicada a pensadores e políticos brasileiros. Por ali, no alto da estante, também é possível encontrar obras como O diálogo possível, de Francisco Bosco, Os sentidos do Lulismo, de André Singer, O terceiro excluído, de Fernando Haddad, e Bolsonaro: o homem que peitou o exército e desafia a democracia, biografia do ex-presidente escrita por Clóvis Saint-Clair.
A psicanálise no divã
Dunker não se limita a apenas ler quem pensa diferente, como também gosta do debate franco e aberto. Uma de suas obras mais recentes, Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência, em coautoria com Gilson Iannini, é um ‘livro-resposta’ a outros dois cientistas brasileiros, Natalia Pasternak e Carlos Orsi.
Em julho do ano passado, Natalia concedeu uma entrevista ao Estadão sobre seu novo livro, Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. A obra, escrita ao lado de Orsi, argumenta que práticas como homeopatia, psicanálise e acupuntura não têm comprovação científica e que, portanto, deveriam ser deixadas de lado. O assunto, claro, rendeu uma grande discussão.
“A psicanálise já foi completamente desbancada em países como os EUA. Enquanto que no Brasil, Argentina e França, ainda é levada muito a sério, inclusive por classes intelectualmente muito fortes, que têm uma erudição. Talvez porque a psicanálise tenha, historicamente, uma influência grande nas artes e na literatura”, afirmou Natalia, à época. Leia a entrevista completa aqui.
Cinco meses depois, Dunker e Iannini contra-argumentaram com seu exemplar de 288 páginas lançado pela Ubu Editora. “É uma resposta circunstanciada, argumento por argumento, e feita para um público mais extenso. O livro da Pasternak tinha uma versão da psicanálise ‘muito anos 1970′″, opina Dunker.
Durante a visita por sua biblioteca, ele faz questão de mostrar uma prateleira repleta de estudos que considera validadores da eficácia da psicanálise. É o caso de Psychoanalytische forschung, uma obra alemã de Bernhard Rüger e Marianne Leuzinger-Bohleber, publicada em 2015, mas sem tradução ao português. Entre os brasileiros, Dunker aponta Psicanálise e ciência, de Paulo Beer.
“A psicanálise ainda enfrenta dificuldades metodológicas para abordar problemas, especificamente sob o método experimental. Por que, em vez de trabalhar o entendimento do ser humano como um ser que produz comportamentos, a gente também pensa em termos de linguagem”, explica Dunker. “E para estudar a linguagem, o método experimental talvez não seja o melhor. Os métodos matemáticos, formais, computação, são mais relevantes.”
Uma família muito unida… pelos livros
As estantes da casa de Dunker são compartilhadas com a mulher, Ana Cristina, e os filhos, Mathias e Nathalia. “Durante a infância, minha filha pedia para que eu parasse de escrever livros, porque o trabalho me afastava dela. Hoje em dia, nós nos reconciliamos, conversamos muito sobre literatura e boa parte da atual configuração da biblioteca tem o dedo dela.”
Formada em relações internacionais, Nathalia idealizou o anexo da biblioteca e ‘revitalizou’ o acervo do pai. Foi dela a ideia de garimpar a clássica coleção ‘Os Pensadores’, uma relíquia de 56 volumes de capa dura azul e detalhes em dourado. Publicada originalmente pela editora Abril nos anos 1970, a coletânea reúne desde intelectuais pré-socráticos a figuras modernas, como Noam Chomsky e Jean Paul Sartre.
Obras feministas, de autoras como bell hooks, Angela Davis, Simone de Beauvoir e Djamila Ribeiro, também são contribuição da caçula. “Graças a ela, comecei a ler Paulina Chiziane [moçambicana vencedora do Prêmio Camões]”, destaca Dunker. Um de seus exemplares preferidos da escritora africana é A Voz do Cárcere, que narra histórias de presidiários de diferentes etnias e localidades, a partir de cartas e depoimentos em primeira pessoa.
Se a relação literária com a filha é estreita, Dunker brinca que vive um momento de ‘tensão conjugal’ com a mulher. Uma ‘disputa territorial’ por espaço no maior cômodo da biblioteca. “Meu acervo de filosofia está crescendo e empurrando os livros dela, de psicanálise para crianças, para o quarto.”
Ana Cristina, que trabalha com ensino infantil, tem sua coleção centrada em educadores e pedagogos, além de outra de suas paixões: as viagens. Um conjunto de guias de turismo toma conta das prateleiras do quarto do casal: Tanzânia, Grécia, Chipre, Itália. São pelo menos 30 diferentes livros com dicas do que fazer em cada local pelo qual os dois, casados há mais de três décadas, já passaram.
Mathias, o primogênito, é a cabeça de exatas da família. “Ele é professor e tem uma paixão: os livros sobre história da matemática e da física”, afirma Dunker. Na coleção, um raro exemplar original de 1939 dos estudos do grupo de Nicolas Bourbaki. Era um coletivo de franceses que buscava reformular o ensino da matemática após a Primeira Guerra Mundial. “Foi uma obra que influenciou muito o Lacan, e que, portanto, é um livro ‘em disputa’ aqui em casa. Uma das joias do nosso acervo.”
Livros afetivos
Dunker também tem seus xodós. Aqueles livros que carregam uma história por trás e guardam, portanto, um pedaço especial em sua memória. Ele menciona quatro ao longo de nossa conversa:
- O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud, de Jacques Lacan (1986) “Esse livro foi comprado pela minha avó em um tempo de penúria absoluta, não tinha grana para nada. Ela me perguntou o que eu estudava na faculdade, e eu disse: Lacan. Ela foi lá e comprou este livro. Meu primeiro exemplar de Lacan, dado pela minha avó.”
- Poesia, Fernando Pessoa (1942) “Esse exemplar foi furtado da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras pela Iara Iavelberg, que era amante de Carlos Lamarca, e que foi assassinada pela ditadura militar. Ela era vizinha da minha mãe, no bairro do Ipiranga, e deu esse livro com uma dedicatória. Minha mãe jamais imaginava que, anos depois, eu me tornaria presidente do Centro Acadêmico do Instituto de Psicologia da USP e daria o nome de Iara Iavelberg para o CA da Psico.”
- Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, de André Lalande (1956) “Considero o ‘livro zero’ da nossa biblioteca. Quando eu e minha mulher estávamos para nos casar, ela ganhou uma bolsa de iniciação científica. O valor era relativamente simples, mas ela pegou os três primeiros salários da bolsa e me presenteou com esse exemplar do Lalande. À época, era uma coisa que só tinha em português de Portugal, feito pela editora Res. Uma verdadeira declaração de amor, né? Irresistível. E até hoje estamos casados.”
- A inconstância da alma selvagem, de Eduardo Viveiros de Castro (2002) “Eu fui adquirindo uma mania de colar fotos de família ou adesivos nos livros que são de maior uso. E neste livro do Viveiros de Castro eu colei uma imagem dos meus filhos pequenos. Porque depois de um tempo, a circulação dos livros começou a ficar muito mais intensa aqui em casa. Então, especialmente para os livros mais afetivos, eu precisava marcar de alguma forma para não dar a alguém.”
As leituras mais recentes
Dunker está sempre lendo. Afinal, é parte de seu trabalho. Sobre a mesa do escritório, pelo menos uma dezena de livros estava espalhada durante a entrevista, entre os quais A Arte de Amar, de Ovídio. “Porque estou lançando um livro sobre o amor”, explica Dunker. Na pilha também estavam O Judeu Pós-Judeu, de Peter Pal Perbart, e O não judeu judeu, de Michel Gherman. “Esses dois para compreender melhor o que está ocorrendo entre Israel e Palestina”, ele justifica.
Entre os clássicos brasileiros, Dunker afirma que o ‘interminável’ Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, segue em sua fila de leituras, e que leu recentemente uma nova versão de O Alienista, de Machado de Assis, lançada pela editora Cobogó. “Não leio só teoria. Tenho uma prática constante de literatura, mas sempre orientada para temas analíticos.”
Na parte de literatura estrangeira, o autor destaca: seu exemplar capa dura de Coração das Trevas, de Joseph Conrad; Escute as Feras, de Nastassja Martin; Esboço, de Rachel Cusk; além de um livro que reúne duas obras clássicas de Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá.
Christian Dunker
Descendente de alemães, Dunker tem um espaço dedicado a livros sobre o horror do holocausto. “É uma espécie de acerto de contas que temos que fazer, de entender essa história.” Entre as obras, Rethinking The Holocaust, do Yehuda Bauer, e LTI: Linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer.
A biblioteca de Dunker ainda tem um cantinho de personalidades de outras áreas, que também decidiram se aventurar na área editorial. Casos de Coração Quente, Cabeça Fria, de Abel Ferreira (Dunker é um palmeirense fanático) e do livro infantil E Foi Assim Que Eu e a Escuridão Ficamos Amigas, do rapper Emicida.
Os livros essenciais de Christian Dunker
“Levei seis anos para escrever meu último livro”, diz Dunker ao empunhar Lutos Finitos e Infinitos, lançado em 2023. A obra, que o autor passou a rascunhar após a morte da mãe, debate os desafios e dores da perda sob a perspectiva filosófica e ética.
Para conhecer mais da obra de Chris Dunker, vale ler ainda:
- O palhaço e o psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas (2019)
- Lacan e a Democracia: Clínica e Crítica em Tempos Sombrios (2022)
- Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano (2017)
- Uma biografia da depressão (2021)