Boris Schnaiderman lança livro sobre sua experiência de guerra


Em ‘Caderno Italiano’, escritor e tradutor liberta, aos 98 anos, suas memórias da luta na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial

Por Marcelo Godoy

A realidade da guerra sempre foi mais dura para Boris Schnaiderman do que ficou registrada pela memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Escritor, tradutor e professor do curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo, Schnaiderman resolveu acertar as contas com seu passado militar. Assim nasceu Caderno Italiano, o livro autobiográfico no qual reúne textos inéditos e antigos a respeito da experiência nos campos de batalha da Itália, durante a 2.ª Guerra Mundial.

Há décadas, desde que lançara Guerra em Surdina (1964), o melhor romance sobre os pracinhas escrito até hoje, esse homem sorridente e caloroso era perseguido pela pergunta: quando escreveria suas memórias de guerra? O romance demorara 19 anos para vencer o horror do conflito. O relato autobiográfico, precisou de 70 anos.

'Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta', diz o escritor de 98 anos Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO
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“Levou tempo para superar obstáculos. Havia impedimentos, problemas pessoais. Agora, que muita gente morreu, já não há necessidade de guardar segredo sobre certas coisas”, disse ao Estado

Boris nasceu no ano da Revolução Russa, 1917, em Úman, na Ucrânia. Emigrou da União Soviética com a família em 1924. Os amigos comunistas do pai – um comerciante judeu – pereceram no Grande Terror, os expurgos que Stalin promoveu nos anos 1930. Parte da família que permaneceu em Odessa morreu quando fugia das tropas romenas, então aliadas dos nazistas, que invadiram sua terra natal, em 1941.

O jovem Boris escolheu lutar. Primeiro contra o racismo. Conta que chegara a desmaiar, certa vez, ao ouvir o discurso do ditador Getúlio Vargas que parecia alinhar o Brasil com o Eixo nazi-fascista. A verdade aqui só se relevaria ao jovem muito depois – a fala de Vargas era um modo do residente obter mais vantagens dos Estados Unidos, com quem negociava.

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No front. Boris (E) e os colegas de batalha Foto: Reprodução

Assim é em cada passo do livro. A verdade, para Boris, só se revela em retrospectiva. Esse pacifista achava absolutamente necessário lutar contra a Alemanha de Hitler. “Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta.”

No Brasil, ficou a família e a namorada, deixada no Rio. Na Itália, participou da equipe que calculou o primeiro disparo da artilharia brasileira. Um dia, a moça parou de lhe escrever. A estranha solidão do soldado diante da montanha lembra a máxima de que todo combatente – general ou soldado – está sempre envolto pela névoa das batalhas que lhes turva a visão. Só depois da conflagração a memória pode conhecer e contar o que viu.

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A névoa de Boris também era real. “Estávamos diante de Monte Castelo e vivíamos em uma nuvem de fumaça.” Ela era produzida por uma máquina do exército americano e servia para esconder a tropa dos observadores da artilharia alemã. Schnaiderman precisou de tempo para que a paisagem do entorno se revelasse, o mesmo tempo para soubesse por que a namorada parou de lhe escrever ou para entender que os stalinistas não eram os heróis da guerra civil grega. De fato, enquanto os guerrilheiros lutavam naquele país, Stalin mandava os comunistas gregos para a Sibéria por suspeitar do apoio que recebiam de seu desafeto, o líder iugoslavo Josip Tito.

Foi preciso tempo para que Schnaiderman descobrisse que o oficial brasileiro que lhe apresentara os textos do teórico e líder comunista Antonio Gramsci, na Itália, se tornaria o diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O homem instituiria a censura postal, que ameaçava vedar ao professor o acesso à correspondência e aos textos soviéticos.

Esse homem de 98 anos levou mais tempo para escrever sua obra definitiva sobre a guerra do que empenhou nos três volumes da autobiografia de Gorki, que traduzira para a editora que publicara seu primeiro trabalho: Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski – texto que um revisor destruíra ao transformar o coloquialidade do russo num português castiço. Foi preciso tempo, porque esse veterano do 2.º Grupo de Artilharia precisava libertar suas memórias.

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Confira trecho da obra: "O ônibus continua em seu trajeto e logo chegam<MC0>os à praça principal de Montese. Desço em silêncio e fico andando pela cidade. Os tão típicos casarões italianos estão todos com remendos e eu os espio de soslaio, com um sentimento de culpa: estão ali os resultados dos meus cálculos. Ao contrário do meu comportamento em outros lugares da Itália, evito conversa com os habitantes de Montese. Chegando a hora do almoço, dirijo-me a uma trattoria próxima da Torre di Nerone, sobranceira à cidade. Em volta, jovens senhoras, acompanhadas de seus filhos. Percebo então que Montese havia se tornado o lugar ideal para o turismo doméstico, isto é, uma cidadezinha procurada pela classe média modesta, incapaz de veranear em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes italianos.”

CADERNO ITALIANO Autor: Boris Schnaiderman Editora: Perspectiva (120 págs., R$ 45) Lançamento Casa Guilherme de Almeida Anexo (Rua Cardoso de Almeida, 1943. Tel. 3673-1883). Sábado, 22/8, 15h.

A realidade da guerra sempre foi mais dura para Boris Schnaiderman do que ficou registrada pela memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Escritor, tradutor e professor do curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo, Schnaiderman resolveu acertar as contas com seu passado militar. Assim nasceu Caderno Italiano, o livro autobiográfico no qual reúne textos inéditos e antigos a respeito da experiência nos campos de batalha da Itália, durante a 2.ª Guerra Mundial.

Há décadas, desde que lançara Guerra em Surdina (1964), o melhor romance sobre os pracinhas escrito até hoje, esse homem sorridente e caloroso era perseguido pela pergunta: quando escreveria suas memórias de guerra? O romance demorara 19 anos para vencer o horror do conflito. O relato autobiográfico, precisou de 70 anos.

'Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta', diz o escritor de 98 anos Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO

“Levou tempo para superar obstáculos. Havia impedimentos, problemas pessoais. Agora, que muita gente morreu, já não há necessidade de guardar segredo sobre certas coisas”, disse ao Estado

Boris nasceu no ano da Revolução Russa, 1917, em Úman, na Ucrânia. Emigrou da União Soviética com a família em 1924. Os amigos comunistas do pai – um comerciante judeu – pereceram no Grande Terror, os expurgos que Stalin promoveu nos anos 1930. Parte da família que permaneceu em Odessa morreu quando fugia das tropas romenas, então aliadas dos nazistas, que invadiram sua terra natal, em 1941.

O jovem Boris escolheu lutar. Primeiro contra o racismo. Conta que chegara a desmaiar, certa vez, ao ouvir o discurso do ditador Getúlio Vargas que parecia alinhar o Brasil com o Eixo nazi-fascista. A verdade aqui só se relevaria ao jovem muito depois – a fala de Vargas era um modo do residente obter mais vantagens dos Estados Unidos, com quem negociava.

No front. Boris (E) e os colegas de batalha Foto: Reprodução

Assim é em cada passo do livro. A verdade, para Boris, só se revela em retrospectiva. Esse pacifista achava absolutamente necessário lutar contra a Alemanha de Hitler. “Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta.”

No Brasil, ficou a família e a namorada, deixada no Rio. Na Itália, participou da equipe que calculou o primeiro disparo da artilharia brasileira. Um dia, a moça parou de lhe escrever. A estranha solidão do soldado diante da montanha lembra a máxima de que todo combatente – general ou soldado – está sempre envolto pela névoa das batalhas que lhes turva a visão. Só depois da conflagração a memória pode conhecer e contar o que viu.

A névoa de Boris também era real. “Estávamos diante de Monte Castelo e vivíamos em uma nuvem de fumaça.” Ela era produzida por uma máquina do exército americano e servia para esconder a tropa dos observadores da artilharia alemã. Schnaiderman precisou de tempo para que a paisagem do entorno se revelasse, o mesmo tempo para soubesse por que a namorada parou de lhe escrever ou para entender que os stalinistas não eram os heróis da guerra civil grega. De fato, enquanto os guerrilheiros lutavam naquele país, Stalin mandava os comunistas gregos para a Sibéria por suspeitar do apoio que recebiam de seu desafeto, o líder iugoslavo Josip Tito.

Foi preciso tempo para que Schnaiderman descobrisse que o oficial brasileiro que lhe apresentara os textos do teórico e líder comunista Antonio Gramsci, na Itália, se tornaria o diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O homem instituiria a censura postal, que ameaçava vedar ao professor o acesso à correspondência e aos textos soviéticos.

Esse homem de 98 anos levou mais tempo para escrever sua obra definitiva sobre a guerra do que empenhou nos três volumes da autobiografia de Gorki, que traduzira para a editora que publicara seu primeiro trabalho: Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski – texto que um revisor destruíra ao transformar o coloquialidade do russo num português castiço. Foi preciso tempo, porque esse veterano do 2.º Grupo de Artilharia precisava libertar suas memórias.

Confira trecho da obra: "O ônibus continua em seu trajeto e logo chegam<MC0>os à praça principal de Montese. Desço em silêncio e fico andando pela cidade. Os tão típicos casarões italianos estão todos com remendos e eu os espio de soslaio, com um sentimento de culpa: estão ali os resultados dos meus cálculos. Ao contrário do meu comportamento em outros lugares da Itália, evito conversa com os habitantes de Montese. Chegando a hora do almoço, dirijo-me a uma trattoria próxima da Torre di Nerone, sobranceira à cidade. Em volta, jovens senhoras, acompanhadas de seus filhos. Percebo então que Montese havia se tornado o lugar ideal para o turismo doméstico, isto é, uma cidadezinha procurada pela classe média modesta, incapaz de veranear em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes italianos.”

CADERNO ITALIANO Autor: Boris Schnaiderman Editora: Perspectiva (120 págs., R$ 45) Lançamento Casa Guilherme de Almeida Anexo (Rua Cardoso de Almeida, 1943. Tel. 3673-1883). Sábado, 22/8, 15h.

A realidade da guerra sempre foi mais dura para Boris Schnaiderman do que ficou registrada pela memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Escritor, tradutor e professor do curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo, Schnaiderman resolveu acertar as contas com seu passado militar. Assim nasceu Caderno Italiano, o livro autobiográfico no qual reúne textos inéditos e antigos a respeito da experiência nos campos de batalha da Itália, durante a 2.ª Guerra Mundial.

Há décadas, desde que lançara Guerra em Surdina (1964), o melhor romance sobre os pracinhas escrito até hoje, esse homem sorridente e caloroso era perseguido pela pergunta: quando escreveria suas memórias de guerra? O romance demorara 19 anos para vencer o horror do conflito. O relato autobiográfico, precisou de 70 anos.

'Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta', diz o escritor de 98 anos Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO

“Levou tempo para superar obstáculos. Havia impedimentos, problemas pessoais. Agora, que muita gente morreu, já não há necessidade de guardar segredo sobre certas coisas”, disse ao Estado

Boris nasceu no ano da Revolução Russa, 1917, em Úman, na Ucrânia. Emigrou da União Soviética com a família em 1924. Os amigos comunistas do pai – um comerciante judeu – pereceram no Grande Terror, os expurgos que Stalin promoveu nos anos 1930. Parte da família que permaneceu em Odessa morreu quando fugia das tropas romenas, então aliadas dos nazistas, que invadiram sua terra natal, em 1941.

O jovem Boris escolheu lutar. Primeiro contra o racismo. Conta que chegara a desmaiar, certa vez, ao ouvir o discurso do ditador Getúlio Vargas que parecia alinhar o Brasil com o Eixo nazi-fascista. A verdade aqui só se relevaria ao jovem muito depois – a fala de Vargas era um modo do residente obter mais vantagens dos Estados Unidos, com quem negociava.

No front. Boris (E) e os colegas de batalha Foto: Reprodução

Assim é em cada passo do livro. A verdade, para Boris, só se revela em retrospectiva. Esse pacifista achava absolutamente necessário lutar contra a Alemanha de Hitler. “Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta.”

No Brasil, ficou a família e a namorada, deixada no Rio. Na Itália, participou da equipe que calculou o primeiro disparo da artilharia brasileira. Um dia, a moça parou de lhe escrever. A estranha solidão do soldado diante da montanha lembra a máxima de que todo combatente – general ou soldado – está sempre envolto pela névoa das batalhas que lhes turva a visão. Só depois da conflagração a memória pode conhecer e contar o que viu.

A névoa de Boris também era real. “Estávamos diante de Monte Castelo e vivíamos em uma nuvem de fumaça.” Ela era produzida por uma máquina do exército americano e servia para esconder a tropa dos observadores da artilharia alemã. Schnaiderman precisou de tempo para que a paisagem do entorno se revelasse, o mesmo tempo para soubesse por que a namorada parou de lhe escrever ou para entender que os stalinistas não eram os heróis da guerra civil grega. De fato, enquanto os guerrilheiros lutavam naquele país, Stalin mandava os comunistas gregos para a Sibéria por suspeitar do apoio que recebiam de seu desafeto, o líder iugoslavo Josip Tito.

Foi preciso tempo para que Schnaiderman descobrisse que o oficial brasileiro que lhe apresentara os textos do teórico e líder comunista Antonio Gramsci, na Itália, se tornaria o diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O homem instituiria a censura postal, que ameaçava vedar ao professor o acesso à correspondência e aos textos soviéticos.

Esse homem de 98 anos levou mais tempo para escrever sua obra definitiva sobre a guerra do que empenhou nos três volumes da autobiografia de Gorki, que traduzira para a editora que publicara seu primeiro trabalho: Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski – texto que um revisor destruíra ao transformar o coloquialidade do russo num português castiço. Foi preciso tempo, porque esse veterano do 2.º Grupo de Artilharia precisava libertar suas memórias.

Confira trecho da obra: "O ônibus continua em seu trajeto e logo chegam<MC0>os à praça principal de Montese. Desço em silêncio e fico andando pela cidade. Os tão típicos casarões italianos estão todos com remendos e eu os espio de soslaio, com um sentimento de culpa: estão ali os resultados dos meus cálculos. Ao contrário do meu comportamento em outros lugares da Itália, evito conversa com os habitantes de Montese. Chegando a hora do almoço, dirijo-me a uma trattoria próxima da Torre di Nerone, sobranceira à cidade. Em volta, jovens senhoras, acompanhadas de seus filhos. Percebo então que Montese havia se tornado o lugar ideal para o turismo doméstico, isto é, uma cidadezinha procurada pela classe média modesta, incapaz de veranear em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes italianos.”

CADERNO ITALIANO Autor: Boris Schnaiderman Editora: Perspectiva (120 págs., R$ 45) Lançamento Casa Guilherme de Almeida Anexo (Rua Cardoso de Almeida, 1943. Tel. 3673-1883). Sábado, 22/8, 15h.

A realidade da guerra sempre foi mais dura para Boris Schnaiderman do que ficou registrada pela memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Escritor, tradutor e professor do curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo, Schnaiderman resolveu acertar as contas com seu passado militar. Assim nasceu Caderno Italiano, o livro autobiográfico no qual reúne textos inéditos e antigos a respeito da experiência nos campos de batalha da Itália, durante a 2.ª Guerra Mundial.

Há décadas, desde que lançara Guerra em Surdina (1964), o melhor romance sobre os pracinhas escrito até hoje, esse homem sorridente e caloroso era perseguido pela pergunta: quando escreveria suas memórias de guerra? O romance demorara 19 anos para vencer o horror do conflito. O relato autobiográfico, precisou de 70 anos.

'Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta', diz o escritor de 98 anos Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO

“Levou tempo para superar obstáculos. Havia impedimentos, problemas pessoais. Agora, que muita gente morreu, já não há necessidade de guardar segredo sobre certas coisas”, disse ao Estado

Boris nasceu no ano da Revolução Russa, 1917, em Úman, na Ucrânia. Emigrou da União Soviética com a família em 1924. Os amigos comunistas do pai – um comerciante judeu – pereceram no Grande Terror, os expurgos que Stalin promoveu nos anos 1930. Parte da família que permaneceu em Odessa morreu quando fugia das tropas romenas, então aliadas dos nazistas, que invadiram sua terra natal, em 1941.

O jovem Boris escolheu lutar. Primeiro contra o racismo. Conta que chegara a desmaiar, certa vez, ao ouvir o discurso do ditador Getúlio Vargas que parecia alinhar o Brasil com o Eixo nazi-fascista. A verdade aqui só se relevaria ao jovem muito depois – a fala de Vargas era um modo do residente obter mais vantagens dos Estados Unidos, com quem negociava.

No front. Boris (E) e os colegas de batalha Foto: Reprodução

Assim é em cada passo do livro. A verdade, para Boris, só se revela em retrospectiva. Esse pacifista achava absolutamente necessário lutar contra a Alemanha de Hitler. “Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta.”

No Brasil, ficou a família e a namorada, deixada no Rio. Na Itália, participou da equipe que calculou o primeiro disparo da artilharia brasileira. Um dia, a moça parou de lhe escrever. A estranha solidão do soldado diante da montanha lembra a máxima de que todo combatente – general ou soldado – está sempre envolto pela névoa das batalhas que lhes turva a visão. Só depois da conflagração a memória pode conhecer e contar o que viu.

A névoa de Boris também era real. “Estávamos diante de Monte Castelo e vivíamos em uma nuvem de fumaça.” Ela era produzida por uma máquina do exército americano e servia para esconder a tropa dos observadores da artilharia alemã. Schnaiderman precisou de tempo para que a paisagem do entorno se revelasse, o mesmo tempo para soubesse por que a namorada parou de lhe escrever ou para entender que os stalinistas não eram os heróis da guerra civil grega. De fato, enquanto os guerrilheiros lutavam naquele país, Stalin mandava os comunistas gregos para a Sibéria por suspeitar do apoio que recebiam de seu desafeto, o líder iugoslavo Josip Tito.

Foi preciso tempo para que Schnaiderman descobrisse que o oficial brasileiro que lhe apresentara os textos do teórico e líder comunista Antonio Gramsci, na Itália, se tornaria o diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O homem instituiria a censura postal, que ameaçava vedar ao professor o acesso à correspondência e aos textos soviéticos.

Esse homem de 98 anos levou mais tempo para escrever sua obra definitiva sobre a guerra do que empenhou nos três volumes da autobiografia de Gorki, que traduzira para a editora que publicara seu primeiro trabalho: Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski – texto que um revisor destruíra ao transformar o coloquialidade do russo num português castiço. Foi preciso tempo, porque esse veterano do 2.º Grupo de Artilharia precisava libertar suas memórias.

Confira trecho da obra: "O ônibus continua em seu trajeto e logo chegam<MC0>os à praça principal de Montese. Desço em silêncio e fico andando pela cidade. Os tão típicos casarões italianos estão todos com remendos e eu os espio de soslaio, com um sentimento de culpa: estão ali os resultados dos meus cálculos. Ao contrário do meu comportamento em outros lugares da Itália, evito conversa com os habitantes de Montese. Chegando a hora do almoço, dirijo-me a uma trattoria próxima da Torre di Nerone, sobranceira à cidade. Em volta, jovens senhoras, acompanhadas de seus filhos. Percebo então que Montese havia se tornado o lugar ideal para o turismo doméstico, isto é, uma cidadezinha procurada pela classe média modesta, incapaz de veranear em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes italianos.”

CADERNO ITALIANO Autor: Boris Schnaiderman Editora: Perspectiva (120 págs., R$ 45) Lançamento Casa Guilherme de Almeida Anexo (Rua Cardoso de Almeida, 1943. Tel. 3673-1883). Sábado, 22/8, 15h.

A realidade da guerra sempre foi mais dura para Boris Schnaiderman do que ficou registrada pela memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Escritor, tradutor e professor do curso de Língua e Literatura Russa da Universidade de São Paulo, Schnaiderman resolveu acertar as contas com seu passado militar. Assim nasceu Caderno Italiano, o livro autobiográfico no qual reúne textos inéditos e antigos a respeito da experiência nos campos de batalha da Itália, durante a 2.ª Guerra Mundial.

Há décadas, desde que lançara Guerra em Surdina (1964), o melhor romance sobre os pracinhas escrito até hoje, esse homem sorridente e caloroso era perseguido pela pergunta: quando escreveria suas memórias de guerra? O romance demorara 19 anos para vencer o horror do conflito. O relato autobiográfico, precisou de 70 anos.

'Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta', diz o escritor de 98 anos Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO

“Levou tempo para superar obstáculos. Havia impedimentos, problemas pessoais. Agora, que muita gente morreu, já não há necessidade de guardar segredo sobre certas coisas”, disse ao Estado

Boris nasceu no ano da Revolução Russa, 1917, em Úman, na Ucrânia. Emigrou da União Soviética com a família em 1924. Os amigos comunistas do pai – um comerciante judeu – pereceram no Grande Terror, os expurgos que Stalin promoveu nos anos 1930. Parte da família que permaneceu em Odessa morreu quando fugia das tropas romenas, então aliadas dos nazistas, que invadiram sua terra natal, em 1941.

O jovem Boris escolheu lutar. Primeiro contra o racismo. Conta que chegara a desmaiar, certa vez, ao ouvir o discurso do ditador Getúlio Vargas que parecia alinhar o Brasil com o Eixo nazi-fascista. A verdade aqui só se relevaria ao jovem muito depois – a fala de Vargas era um modo do residente obter mais vantagens dos Estados Unidos, com quem negociava.

No front. Boris (E) e os colegas de batalha Foto: Reprodução

Assim é em cada passo do livro. A verdade, para Boris, só se revela em retrospectiva. Esse pacifista achava absolutamente necessário lutar contra a Alemanha de Hitler. “Fui para guerra porque queria ir. Tínhamos conhecimento das coisas, daí a convicção da necessidade da luta.”

No Brasil, ficou a família e a namorada, deixada no Rio. Na Itália, participou da equipe que calculou o primeiro disparo da artilharia brasileira. Um dia, a moça parou de lhe escrever. A estranha solidão do soldado diante da montanha lembra a máxima de que todo combatente – general ou soldado – está sempre envolto pela névoa das batalhas que lhes turva a visão. Só depois da conflagração a memória pode conhecer e contar o que viu.

A névoa de Boris também era real. “Estávamos diante de Monte Castelo e vivíamos em uma nuvem de fumaça.” Ela era produzida por uma máquina do exército americano e servia para esconder a tropa dos observadores da artilharia alemã. Schnaiderman precisou de tempo para que a paisagem do entorno se revelasse, o mesmo tempo para soubesse por que a namorada parou de lhe escrever ou para entender que os stalinistas não eram os heróis da guerra civil grega. De fato, enquanto os guerrilheiros lutavam naquele país, Stalin mandava os comunistas gregos para a Sibéria por suspeitar do apoio que recebiam de seu desafeto, o líder iugoslavo Josip Tito.

Foi preciso tempo para que Schnaiderman descobrisse que o oficial brasileiro que lhe apresentara os textos do teórico e líder comunista Antonio Gramsci, na Itália, se tornaria o diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O homem instituiria a censura postal, que ameaçava vedar ao professor o acesso à correspondência e aos textos soviéticos.

Esse homem de 98 anos levou mais tempo para escrever sua obra definitiva sobre a guerra do que empenhou nos três volumes da autobiografia de Gorki, que traduzira para a editora que publicara seu primeiro trabalho: Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski – texto que um revisor destruíra ao transformar o coloquialidade do russo num português castiço. Foi preciso tempo, porque esse veterano do 2.º Grupo de Artilharia precisava libertar suas memórias.

Confira trecho da obra: "O ônibus continua em seu trajeto e logo chegam<MC0>os à praça principal de Montese. Desço em silêncio e fico andando pela cidade. Os tão típicos casarões italianos estão todos com remendos e eu os espio de soslaio, com um sentimento de culpa: estão ali os resultados dos meus cálculos. Ao contrário do meu comportamento em outros lugares da Itália, evito conversa com os habitantes de Montese. Chegando a hora do almoço, dirijo-me a uma trattoria próxima da Torre di Nerone, sobranceira à cidade. Em volta, jovens senhoras, acompanhadas de seus filhos. Percebo então que Montese havia se tornado o lugar ideal para o turismo doméstico, isto é, uma cidadezinha procurada pela classe média modesta, incapaz de veranear em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes italianos.”

CADERNO ITALIANO Autor: Boris Schnaiderman Editora: Perspectiva (120 págs., R$ 45) Lançamento Casa Guilherme de Almeida Anexo (Rua Cardoso de Almeida, 1943. Tel. 3673-1883). Sábado, 22/8, 15h.

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