Nos 10 anos de sua morte, completados nesta quarta, 12 de setembro, o legado de David Foster Wallace merece ser revisitado. O escritor americano, um indiscutível gênio literário, era, ao mesmo tempo, um “bostinha” – para repetir uma palavra usada por Caetano Galindo, tradutor para o português da obra-prima do autor, Graça Infinita, e do romance póstumo O Rei Pálido, que tem lançamento previsto para o ano que vem.
Em maio, motivada pela revelação de assédios cometidos pelo escritor Junot Díaz, a poeta Mary Karr publicou em seu Twitter os vários abusos que sofreu pelas mãos de Wallace no início dos anos 1990 – ele tentou empurrá-la de um carro em movimento, e ela teve de trocar de número de telefone duas vezes para evitar sua perseguição. As acusações já eram conhecidas, mas largamente subestimadas ou até ignoradas.
O que torna os defeitos de caráter de Wallace complicados de ponderar é que sua obra é justamente marcada pela busca por sinceridade, por conexão pessoal e pela tentativa de ser uma pessoa melhor. Na biblioteca pessoal do escritor, um inovador técnico muitas vezes comparado a James Joyce e Thomas Pynchon, foram catalogados diversos livros de autoajuda, sublinhados e anotados.
“O legado dele existe e é complexo. Ele queria que a literatura fosse uma ferramenta de buscar, no lugar mais fundo de cada um de nós, na parte mais escura e dolorosa, um pedacinho que ainda brilhe, e trazê-lo à superfície”, lembra Galindo.
Tentar ser melhor não quer dizer que ele tenha conseguido, como sublinha o tradutor. No entanto, essa preocupação ética wallaciana gerou, em parte, um fenômeno que o biógrafo do autor, D. T. Max, descreveu como a ‘canonização do Santo Dave’. Um dos textos mais famosos e acessíveis do americano é Isso É Água, um discurso de patrono em que o escritor versa sobre a importância de ter consciência e empatia.
A fala foi publicada em Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo, coletânea de ensaios selecionados pelo escritor Daniel Galera. Ele vê na canonização o problema de banalização geral da obra de Wallace – e pede que seu legado seja abordado com uma visão franca.
“Ele era brilhante e muito compassivo, mas também era uma pessoa muito perturbada. Isso torna a obra mais potente, não menos”, diz. “É preciso tomar cuidado para não incorrer em uma demonização que é a canonização com sinal invertido. Posições estreitas terminam por apagar ou simplificar as complexidades contraditórias e apaixonantes de sua literatura.”
Em 12 de setembro de 2008, Wallace se matou, com 46 anos de idade. Ele sofria de depressão crônica por ao menos duas décadas e havia recentemente trocado a medicação que usara durante a maior parte da vida. No prefácio da coletânea de ensaios, Galera escreve que poucos autores que produziram uma literatura tão “exigente” conseguiram estabelecer uma conexão tão íntima com seus leitores.
Essa relação leitor-autor, explica o Daniel Galera, passa pelo talento de Wallace em “reproduzir o discurso mental interno de seus contemporâneos”. Mas a identificação com o americano também tem a ver com a tal da sinceridade.
“Um dos maiores legados de DFW foi o de levar ao paroxismo a experimentação formal e os malabarismos técnicos dos pós-modernistas, dando uma volta completa até chegar a uma literatura que bebia dessas fontes para retornar a um modo de discurso mais direto, emocional, que apelava a sentimentos comuns e mesmo a clichês sentimentais. Essa nova sinceridade contaminou os autores das gerações seguintes, para o bem e para o mal.”
Devoção. A mitologia ao redor de Wallace é tão forte que o autor e diretor teatral José Rubens Siqueira lembra de ter enfrentado resistência quando se pôs a traduzir a coleção de contos Breves Entrevistas Com Homens Hediondos, lançada em 2005. “Alguns ‘devotos’ de DFW protestaram porque eu não era da ‘seita’. Acharam que minha tradução não era adequada, que eles fariam melhor, como zeladores do espólio dele”, lembra.
O trabalho de tradução, apesar disso, foi prazeroso: “É bem mais interessante para o tradutor um texto que experimenta com a linguagem do que um texto banal, corriqueiro”, diz Siqueira, que compara o processo a “habitar” a pele de um autor. “No meu entender, a tradução não é um processo de escolhas conscientes. É quase um ‘estado alternativo de consciência’. Uma passividade ativa para você se submeter ao texto sem deixar de agir sobre ele.”
Na tradução premiada em 2015, pela APCA, de Graça Infinita, Caetano Galindo lembra que o mais doloroso não foi enfrentar 1.144 páginas de volteios verbais. “(Traduzir) implica um certo grau de convívio que é muito mais profundo do que o da maioria dos leitores. Todas as cenas de desespero, pré-suicídio e abjeção do livro são realmente bem mais complicadas do que lidar com probleminhas verbais de tradução. Você tem que lidar com aquelas coisas e às vezes dói, bastante.”