Caderno inédito mostra como família de Euclides da Cunha soube de seu assassinato


Diário guardado por mais de 50 anos revela o profundo impacto que a notícia da morte prematura do escritor, aos 43 anos, teve na família Cunha

Por Maria Fernanda Rodrigues

O caderno foi guardado por mais de 50 anos, depois perdido dentro de casa e reencontrado agora em uma mala que estava guardada dentro de outra mala num apartamento do bairro da Aclimação, em São Paulo. Como nos antigos cadernos de receita, a dona o dividiu em duas partes. De um lado, ela escreveu uma breve biografia dos membros de sua família e alguns textos que expressavam toda a sua solidão. Virando, lemos apenas dois textos. O primeiro é intitulado Meu tio. O outro, traz uma data: 15 de agosto de 1909.

15 de agosto de 1909 foi o dia em que Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. “São passados 50 anos e minha memória de velha incapaz de reter uma leitura de 50 dias atrás guarda viva a lembrança desse dia infeliz.” Assim começa o texto de Walinda da Cunha Vieira que, naquele longínquo ano da ‘tragédia de Piedade’, tinha 15 anos.

Caderno de Walinda da Cunha que conta como a família recebeu a notícia da morte de Euclides da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão
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Era um domingo cinzento e chuvoso em São Carlos. A menina ficou no quarto lendo e de lá ouvia as risadas gostosas do avô e do pai enquanto a mãe lia Lisboa em Camisa, do português Gervásio Lobato, para os dois. No fim da leitura, o avô fala: “Pois é, apesar desta chuva cacete passamos um dia alegre”. Walinda olha para o avô magro e abatido – ele estava se recuperando de um problema no coração – e sente uma tristeza. “Eu não sabia que lá longe na mesa fria de um necrotério jazia morto o filho que era todo o seu orgulho, o filho que ele estava esperando”, continua.

No dia seguinte, foram à sua escola dizer que sua mãe estava doente e precisava dela. “Corri aflita e que espetáculo doloroso fui encontrar na sala. Mamãe, amparada pelo papai carinhoso, ajoelhada no chão, gemia chorando: ‘Meu irmão, meu pobre irmão’.” Ao ver a menina, Adelia pede que ela vá distrair o avô, seu pai, que não sabe de nada – Walinda tampouco está entendendo alguma coisa. Só quando chega um amigo da família é que ela compreende, e assim narra meio século depois: “Tinham matado, no Rio, o bom titio Euclydes – aquele titio pequeno, magro, nervoso, sempre a atirar para trás o cabelo negro, liso mas rebelde, que ralhava conosco quando com as nossas algazarras perturbávamos-lhe a leitura, mas que sabia nos dizer palavras tão bonitas sobre a pátria quando nos via brincando com suas espadas.”

A notícia chega em partes a Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha. Primeiro Adelia conta ao pai que recebera um telegrama dizendo que o irmão tinha tido uma recaída de uma pneumonia e estava passando muito mal. Aflito, ele quer partir no dia seguinte. Depois forjaram um telegrama falando da morte. Chorando, ele pedia para lerem os jornais que tinham chegado. “Vovô que ouvia cabisbaixo, com lágrimas a escorrer-lhes pelas faces, levantou a cabeça e disse: ‘Meu filho morreu como um digno’." 

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A família estava preocupada com o coração do pai de Euclides da Cunha, mas ele se manteve firma na presença de todos e só chorava baixinho quando ficava só, relembra a neta. Um mês depois, ele quis voltar para sua fazenda, para fazer os pagamentos. Tentaram dissuadi-lo, mas ele foi, reuniu o pessoal, acertou tudo, retirou-se para o seu quarto, passou mal e morreu. “Na cabeceira da cama, sobre o criado mudo, com as páginas marcadas por um pince-nez e cinzas de charuto estava o volume d’Os Sertões, o seu neto glorioso.”

No outro texto do caderno, que antecede este sobre a morte do escritor e não tem data, Walinda relembra o feriado de Páscoa na fazenda Trindade em 1908. Seu pai chegou com o cunhado, Euclides, e porque não o via há algum tempo, ficou tímida. Estava vermelha do sol, com tranças negras despencando nas costas. “Ele com um sorriso bom no seu rosto magro perguntou caçoísta: ‘Então, Adelia, onde foste arranjar esta saloia?' Não gostei do gracejo e, desapontada, apertei em silêncio a mão que ele me estendia. ‘Então que costume é esse? Já não toma mais a bênção do tio, sua cigana?’ Pronto, acabei de enfezar”, escreve, já mais velha. Não quis mais conversa com o tio nos três dias que passaram juntos e nem perguntou dos primos Solon e Quidinho.

Quem faz a ponte entre essas lembranças escritas em páginas hoje amareladas e frágeis e o presente é Regina Coeli Vieira Barini, de 72 anos, sobrinha-neta de Walinda, ou de Zica, como ela a chama. Ela descobriu esse caderno na garagem do pai quando uma terceira pessoa, Geralda, que vivia com sua família desde pequena, morreu (poucos anos depois de Walinda). 

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Regina Coeli, descendente do escritor Euclides da Cunha, comcadernos de sua tia-avóWalinda da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Regina podia saber mais sobre a história de sua família, mas não guarda nenhum arrependimento por não ter feito perguntas quando teve a chance, por não ter fixado tudo que ouviu. Era só uma adolescente que sabia, sim, que havia uma pessoa famosa na sua árvore genealógica, mas não tinha a dimensão disso e não considerava que o único elo entre os dois não seria eterno. Não se arrepende, mas acha uma pena que tenha sido assim.

Recentemente Regina ficou muito doente e quando conseguiu se reerguer decidiu revelar essas memórias. “Minha tia gostava tanto dessa história, e a gente gostava tanto dela, que pensei que ainda dava tempo de contar”, diz. Na verdade, esse acerto de contas com um passado de lacunas começou há cerca de 15 anos, quando sua primeira neta foi morar nos Estados Unidos. Regina pensou que podia morrer quando ela estivesse fora, e que a menina, então com dois anos, não teria nenhuma lembrança dela. Contou sua trajetória num livro que fez pela internet. Anos depois, decidiu fazer outro, sobre a família. Como ela não ligava muito quando tia Zica falava do passado, seus filhos também não estavam muito interessados, ela conta. “Eu queria deixar esse registro para eles saberem da nossa história. Quem ia contar? Não tem mais ninguém”, diz.

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Árvore genealógica

Walinda da Cunha Viera (1894–1965) foi filha de Adelia Pimenta da Cunha (1868–1922). Adelia, única irmã de Euclides da Cunha, teve outros dois filhos: Oleno e Carlos. Carlos morreu solteiro. Oleno se casou com Beatriz e o casal teve dois filhos: Oleno e Marilia. Oleno não teve filhos. Marilia se casou com Orestes, e nasceram Beatriz e Regina Coeli Vieira Barini, quem nos conta essa história.

O caderno foi guardado por mais de 50 anos, depois perdido dentro de casa e reencontrado agora em uma mala que estava guardada dentro de outra mala num apartamento do bairro da Aclimação, em São Paulo. Como nos antigos cadernos de receita, a dona o dividiu em duas partes. De um lado, ela escreveu uma breve biografia dos membros de sua família e alguns textos que expressavam toda a sua solidão. Virando, lemos apenas dois textos. O primeiro é intitulado Meu tio. O outro, traz uma data: 15 de agosto de 1909.

15 de agosto de 1909 foi o dia em que Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. “São passados 50 anos e minha memória de velha incapaz de reter uma leitura de 50 dias atrás guarda viva a lembrança desse dia infeliz.” Assim começa o texto de Walinda da Cunha Vieira que, naquele longínquo ano da ‘tragédia de Piedade’, tinha 15 anos.

Caderno de Walinda da Cunha que conta como a família recebeu a notícia da morte de Euclides da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Era um domingo cinzento e chuvoso em São Carlos. A menina ficou no quarto lendo e de lá ouvia as risadas gostosas do avô e do pai enquanto a mãe lia Lisboa em Camisa, do português Gervásio Lobato, para os dois. No fim da leitura, o avô fala: “Pois é, apesar desta chuva cacete passamos um dia alegre”. Walinda olha para o avô magro e abatido – ele estava se recuperando de um problema no coração – e sente uma tristeza. “Eu não sabia que lá longe na mesa fria de um necrotério jazia morto o filho que era todo o seu orgulho, o filho que ele estava esperando”, continua.

No dia seguinte, foram à sua escola dizer que sua mãe estava doente e precisava dela. “Corri aflita e que espetáculo doloroso fui encontrar na sala. Mamãe, amparada pelo papai carinhoso, ajoelhada no chão, gemia chorando: ‘Meu irmão, meu pobre irmão’.” Ao ver a menina, Adelia pede que ela vá distrair o avô, seu pai, que não sabe de nada – Walinda tampouco está entendendo alguma coisa. Só quando chega um amigo da família é que ela compreende, e assim narra meio século depois: “Tinham matado, no Rio, o bom titio Euclydes – aquele titio pequeno, magro, nervoso, sempre a atirar para trás o cabelo negro, liso mas rebelde, que ralhava conosco quando com as nossas algazarras perturbávamos-lhe a leitura, mas que sabia nos dizer palavras tão bonitas sobre a pátria quando nos via brincando com suas espadas.”

A notícia chega em partes a Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha. Primeiro Adelia conta ao pai que recebera um telegrama dizendo que o irmão tinha tido uma recaída de uma pneumonia e estava passando muito mal. Aflito, ele quer partir no dia seguinte. Depois forjaram um telegrama falando da morte. Chorando, ele pedia para lerem os jornais que tinham chegado. “Vovô que ouvia cabisbaixo, com lágrimas a escorrer-lhes pelas faces, levantou a cabeça e disse: ‘Meu filho morreu como um digno’." 

A família estava preocupada com o coração do pai de Euclides da Cunha, mas ele se manteve firma na presença de todos e só chorava baixinho quando ficava só, relembra a neta. Um mês depois, ele quis voltar para sua fazenda, para fazer os pagamentos. Tentaram dissuadi-lo, mas ele foi, reuniu o pessoal, acertou tudo, retirou-se para o seu quarto, passou mal e morreu. “Na cabeceira da cama, sobre o criado mudo, com as páginas marcadas por um pince-nez e cinzas de charuto estava o volume d’Os Sertões, o seu neto glorioso.”

No outro texto do caderno, que antecede este sobre a morte do escritor e não tem data, Walinda relembra o feriado de Páscoa na fazenda Trindade em 1908. Seu pai chegou com o cunhado, Euclides, e porque não o via há algum tempo, ficou tímida. Estava vermelha do sol, com tranças negras despencando nas costas. “Ele com um sorriso bom no seu rosto magro perguntou caçoísta: ‘Então, Adelia, onde foste arranjar esta saloia?' Não gostei do gracejo e, desapontada, apertei em silêncio a mão que ele me estendia. ‘Então que costume é esse? Já não toma mais a bênção do tio, sua cigana?’ Pronto, acabei de enfezar”, escreve, já mais velha. Não quis mais conversa com o tio nos três dias que passaram juntos e nem perguntou dos primos Solon e Quidinho.

Quem faz a ponte entre essas lembranças escritas em páginas hoje amareladas e frágeis e o presente é Regina Coeli Vieira Barini, de 72 anos, sobrinha-neta de Walinda, ou de Zica, como ela a chama. Ela descobriu esse caderno na garagem do pai quando uma terceira pessoa, Geralda, que vivia com sua família desde pequena, morreu (poucos anos depois de Walinda). 

Regina Coeli, descendente do escritor Euclides da Cunha, comcadernos de sua tia-avóWalinda da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Regina podia saber mais sobre a história de sua família, mas não guarda nenhum arrependimento por não ter feito perguntas quando teve a chance, por não ter fixado tudo que ouviu. Era só uma adolescente que sabia, sim, que havia uma pessoa famosa na sua árvore genealógica, mas não tinha a dimensão disso e não considerava que o único elo entre os dois não seria eterno. Não se arrepende, mas acha uma pena que tenha sido assim.

Recentemente Regina ficou muito doente e quando conseguiu se reerguer decidiu revelar essas memórias. “Minha tia gostava tanto dessa história, e a gente gostava tanto dela, que pensei que ainda dava tempo de contar”, diz. Na verdade, esse acerto de contas com um passado de lacunas começou há cerca de 15 anos, quando sua primeira neta foi morar nos Estados Unidos. Regina pensou que podia morrer quando ela estivesse fora, e que a menina, então com dois anos, não teria nenhuma lembrança dela. Contou sua trajetória num livro que fez pela internet. Anos depois, decidiu fazer outro, sobre a família. Como ela não ligava muito quando tia Zica falava do passado, seus filhos também não estavam muito interessados, ela conta. “Eu queria deixar esse registro para eles saberem da nossa história. Quem ia contar? Não tem mais ninguém”, diz.

Árvore genealógica

Walinda da Cunha Viera (1894–1965) foi filha de Adelia Pimenta da Cunha (1868–1922). Adelia, única irmã de Euclides da Cunha, teve outros dois filhos: Oleno e Carlos. Carlos morreu solteiro. Oleno se casou com Beatriz e o casal teve dois filhos: Oleno e Marilia. Oleno não teve filhos. Marilia se casou com Orestes, e nasceram Beatriz e Regina Coeli Vieira Barini, quem nos conta essa história.

O caderno foi guardado por mais de 50 anos, depois perdido dentro de casa e reencontrado agora em uma mala que estava guardada dentro de outra mala num apartamento do bairro da Aclimação, em São Paulo. Como nos antigos cadernos de receita, a dona o dividiu em duas partes. De um lado, ela escreveu uma breve biografia dos membros de sua família e alguns textos que expressavam toda a sua solidão. Virando, lemos apenas dois textos. O primeiro é intitulado Meu tio. O outro, traz uma data: 15 de agosto de 1909.

15 de agosto de 1909 foi o dia em que Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. “São passados 50 anos e minha memória de velha incapaz de reter uma leitura de 50 dias atrás guarda viva a lembrança desse dia infeliz.” Assim começa o texto de Walinda da Cunha Vieira que, naquele longínquo ano da ‘tragédia de Piedade’, tinha 15 anos.

Caderno de Walinda da Cunha que conta como a família recebeu a notícia da morte de Euclides da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Era um domingo cinzento e chuvoso em São Carlos. A menina ficou no quarto lendo e de lá ouvia as risadas gostosas do avô e do pai enquanto a mãe lia Lisboa em Camisa, do português Gervásio Lobato, para os dois. No fim da leitura, o avô fala: “Pois é, apesar desta chuva cacete passamos um dia alegre”. Walinda olha para o avô magro e abatido – ele estava se recuperando de um problema no coração – e sente uma tristeza. “Eu não sabia que lá longe na mesa fria de um necrotério jazia morto o filho que era todo o seu orgulho, o filho que ele estava esperando”, continua.

No dia seguinte, foram à sua escola dizer que sua mãe estava doente e precisava dela. “Corri aflita e que espetáculo doloroso fui encontrar na sala. Mamãe, amparada pelo papai carinhoso, ajoelhada no chão, gemia chorando: ‘Meu irmão, meu pobre irmão’.” Ao ver a menina, Adelia pede que ela vá distrair o avô, seu pai, que não sabe de nada – Walinda tampouco está entendendo alguma coisa. Só quando chega um amigo da família é que ela compreende, e assim narra meio século depois: “Tinham matado, no Rio, o bom titio Euclydes – aquele titio pequeno, magro, nervoso, sempre a atirar para trás o cabelo negro, liso mas rebelde, que ralhava conosco quando com as nossas algazarras perturbávamos-lhe a leitura, mas que sabia nos dizer palavras tão bonitas sobre a pátria quando nos via brincando com suas espadas.”

A notícia chega em partes a Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha. Primeiro Adelia conta ao pai que recebera um telegrama dizendo que o irmão tinha tido uma recaída de uma pneumonia e estava passando muito mal. Aflito, ele quer partir no dia seguinte. Depois forjaram um telegrama falando da morte. Chorando, ele pedia para lerem os jornais que tinham chegado. “Vovô que ouvia cabisbaixo, com lágrimas a escorrer-lhes pelas faces, levantou a cabeça e disse: ‘Meu filho morreu como um digno’." 

A família estava preocupada com o coração do pai de Euclides da Cunha, mas ele se manteve firma na presença de todos e só chorava baixinho quando ficava só, relembra a neta. Um mês depois, ele quis voltar para sua fazenda, para fazer os pagamentos. Tentaram dissuadi-lo, mas ele foi, reuniu o pessoal, acertou tudo, retirou-se para o seu quarto, passou mal e morreu. “Na cabeceira da cama, sobre o criado mudo, com as páginas marcadas por um pince-nez e cinzas de charuto estava o volume d’Os Sertões, o seu neto glorioso.”

No outro texto do caderno, que antecede este sobre a morte do escritor e não tem data, Walinda relembra o feriado de Páscoa na fazenda Trindade em 1908. Seu pai chegou com o cunhado, Euclides, e porque não o via há algum tempo, ficou tímida. Estava vermelha do sol, com tranças negras despencando nas costas. “Ele com um sorriso bom no seu rosto magro perguntou caçoísta: ‘Então, Adelia, onde foste arranjar esta saloia?' Não gostei do gracejo e, desapontada, apertei em silêncio a mão que ele me estendia. ‘Então que costume é esse? Já não toma mais a bênção do tio, sua cigana?’ Pronto, acabei de enfezar”, escreve, já mais velha. Não quis mais conversa com o tio nos três dias que passaram juntos e nem perguntou dos primos Solon e Quidinho.

Quem faz a ponte entre essas lembranças escritas em páginas hoje amareladas e frágeis e o presente é Regina Coeli Vieira Barini, de 72 anos, sobrinha-neta de Walinda, ou de Zica, como ela a chama. Ela descobriu esse caderno na garagem do pai quando uma terceira pessoa, Geralda, que vivia com sua família desde pequena, morreu (poucos anos depois de Walinda). 

Regina Coeli, descendente do escritor Euclides da Cunha, comcadernos de sua tia-avóWalinda da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Regina podia saber mais sobre a história de sua família, mas não guarda nenhum arrependimento por não ter feito perguntas quando teve a chance, por não ter fixado tudo que ouviu. Era só uma adolescente que sabia, sim, que havia uma pessoa famosa na sua árvore genealógica, mas não tinha a dimensão disso e não considerava que o único elo entre os dois não seria eterno. Não se arrepende, mas acha uma pena que tenha sido assim.

Recentemente Regina ficou muito doente e quando conseguiu se reerguer decidiu revelar essas memórias. “Minha tia gostava tanto dessa história, e a gente gostava tanto dela, que pensei que ainda dava tempo de contar”, diz. Na verdade, esse acerto de contas com um passado de lacunas começou há cerca de 15 anos, quando sua primeira neta foi morar nos Estados Unidos. Regina pensou que podia morrer quando ela estivesse fora, e que a menina, então com dois anos, não teria nenhuma lembrança dela. Contou sua trajetória num livro que fez pela internet. Anos depois, decidiu fazer outro, sobre a família. Como ela não ligava muito quando tia Zica falava do passado, seus filhos também não estavam muito interessados, ela conta. “Eu queria deixar esse registro para eles saberem da nossa história. Quem ia contar? Não tem mais ninguém”, diz.

Árvore genealógica

Walinda da Cunha Viera (1894–1965) foi filha de Adelia Pimenta da Cunha (1868–1922). Adelia, única irmã de Euclides da Cunha, teve outros dois filhos: Oleno e Carlos. Carlos morreu solteiro. Oleno se casou com Beatriz e o casal teve dois filhos: Oleno e Marilia. Oleno não teve filhos. Marilia se casou com Orestes, e nasceram Beatriz e Regina Coeli Vieira Barini, quem nos conta essa história.

O caderno foi guardado por mais de 50 anos, depois perdido dentro de casa e reencontrado agora em uma mala que estava guardada dentro de outra mala num apartamento do bairro da Aclimação, em São Paulo. Como nos antigos cadernos de receita, a dona o dividiu em duas partes. De um lado, ela escreveu uma breve biografia dos membros de sua família e alguns textos que expressavam toda a sua solidão. Virando, lemos apenas dois textos. O primeiro é intitulado Meu tio. O outro, traz uma data: 15 de agosto de 1909.

15 de agosto de 1909 foi o dia em que Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. “São passados 50 anos e minha memória de velha incapaz de reter uma leitura de 50 dias atrás guarda viva a lembrança desse dia infeliz.” Assim começa o texto de Walinda da Cunha Vieira que, naquele longínquo ano da ‘tragédia de Piedade’, tinha 15 anos.

Caderno de Walinda da Cunha que conta como a família recebeu a notícia da morte de Euclides da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Era um domingo cinzento e chuvoso em São Carlos. A menina ficou no quarto lendo e de lá ouvia as risadas gostosas do avô e do pai enquanto a mãe lia Lisboa em Camisa, do português Gervásio Lobato, para os dois. No fim da leitura, o avô fala: “Pois é, apesar desta chuva cacete passamos um dia alegre”. Walinda olha para o avô magro e abatido – ele estava se recuperando de um problema no coração – e sente uma tristeza. “Eu não sabia que lá longe na mesa fria de um necrotério jazia morto o filho que era todo o seu orgulho, o filho que ele estava esperando”, continua.

No dia seguinte, foram à sua escola dizer que sua mãe estava doente e precisava dela. “Corri aflita e que espetáculo doloroso fui encontrar na sala. Mamãe, amparada pelo papai carinhoso, ajoelhada no chão, gemia chorando: ‘Meu irmão, meu pobre irmão’.” Ao ver a menina, Adelia pede que ela vá distrair o avô, seu pai, que não sabe de nada – Walinda tampouco está entendendo alguma coisa. Só quando chega um amigo da família é que ela compreende, e assim narra meio século depois: “Tinham matado, no Rio, o bom titio Euclydes – aquele titio pequeno, magro, nervoso, sempre a atirar para trás o cabelo negro, liso mas rebelde, que ralhava conosco quando com as nossas algazarras perturbávamos-lhe a leitura, mas que sabia nos dizer palavras tão bonitas sobre a pátria quando nos via brincando com suas espadas.”

A notícia chega em partes a Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha. Primeiro Adelia conta ao pai que recebera um telegrama dizendo que o irmão tinha tido uma recaída de uma pneumonia e estava passando muito mal. Aflito, ele quer partir no dia seguinte. Depois forjaram um telegrama falando da morte. Chorando, ele pedia para lerem os jornais que tinham chegado. “Vovô que ouvia cabisbaixo, com lágrimas a escorrer-lhes pelas faces, levantou a cabeça e disse: ‘Meu filho morreu como um digno’." 

A família estava preocupada com o coração do pai de Euclides da Cunha, mas ele se manteve firma na presença de todos e só chorava baixinho quando ficava só, relembra a neta. Um mês depois, ele quis voltar para sua fazenda, para fazer os pagamentos. Tentaram dissuadi-lo, mas ele foi, reuniu o pessoal, acertou tudo, retirou-se para o seu quarto, passou mal e morreu. “Na cabeceira da cama, sobre o criado mudo, com as páginas marcadas por um pince-nez e cinzas de charuto estava o volume d’Os Sertões, o seu neto glorioso.”

No outro texto do caderno, que antecede este sobre a morte do escritor e não tem data, Walinda relembra o feriado de Páscoa na fazenda Trindade em 1908. Seu pai chegou com o cunhado, Euclides, e porque não o via há algum tempo, ficou tímida. Estava vermelha do sol, com tranças negras despencando nas costas. “Ele com um sorriso bom no seu rosto magro perguntou caçoísta: ‘Então, Adelia, onde foste arranjar esta saloia?' Não gostei do gracejo e, desapontada, apertei em silêncio a mão que ele me estendia. ‘Então que costume é esse? Já não toma mais a bênção do tio, sua cigana?’ Pronto, acabei de enfezar”, escreve, já mais velha. Não quis mais conversa com o tio nos três dias que passaram juntos e nem perguntou dos primos Solon e Quidinho.

Quem faz a ponte entre essas lembranças escritas em páginas hoje amareladas e frágeis e o presente é Regina Coeli Vieira Barini, de 72 anos, sobrinha-neta de Walinda, ou de Zica, como ela a chama. Ela descobriu esse caderno na garagem do pai quando uma terceira pessoa, Geralda, que vivia com sua família desde pequena, morreu (poucos anos depois de Walinda). 

Regina Coeli, descendente do escritor Euclides da Cunha, comcadernos de sua tia-avóWalinda da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Regina podia saber mais sobre a história de sua família, mas não guarda nenhum arrependimento por não ter feito perguntas quando teve a chance, por não ter fixado tudo que ouviu. Era só uma adolescente que sabia, sim, que havia uma pessoa famosa na sua árvore genealógica, mas não tinha a dimensão disso e não considerava que o único elo entre os dois não seria eterno. Não se arrepende, mas acha uma pena que tenha sido assim.

Recentemente Regina ficou muito doente e quando conseguiu se reerguer decidiu revelar essas memórias. “Minha tia gostava tanto dessa história, e a gente gostava tanto dela, que pensei que ainda dava tempo de contar”, diz. Na verdade, esse acerto de contas com um passado de lacunas começou há cerca de 15 anos, quando sua primeira neta foi morar nos Estados Unidos. Regina pensou que podia morrer quando ela estivesse fora, e que a menina, então com dois anos, não teria nenhuma lembrança dela. Contou sua trajetória num livro que fez pela internet. Anos depois, decidiu fazer outro, sobre a família. Como ela não ligava muito quando tia Zica falava do passado, seus filhos também não estavam muito interessados, ela conta. “Eu queria deixar esse registro para eles saberem da nossa história. Quem ia contar? Não tem mais ninguém”, diz.

Árvore genealógica

Walinda da Cunha Viera (1894–1965) foi filha de Adelia Pimenta da Cunha (1868–1922). Adelia, única irmã de Euclides da Cunha, teve outros dois filhos: Oleno e Carlos. Carlos morreu solteiro. Oleno se casou com Beatriz e o casal teve dois filhos: Oleno e Marilia. Oleno não teve filhos. Marilia se casou com Orestes, e nasceram Beatriz e Regina Coeli Vieira Barini, quem nos conta essa história.

O caderno foi guardado por mais de 50 anos, depois perdido dentro de casa e reencontrado agora em uma mala que estava guardada dentro de outra mala num apartamento do bairro da Aclimação, em São Paulo. Como nos antigos cadernos de receita, a dona o dividiu em duas partes. De um lado, ela escreveu uma breve biografia dos membros de sua família e alguns textos que expressavam toda a sua solidão. Virando, lemos apenas dois textos. O primeiro é intitulado Meu tio. O outro, traz uma data: 15 de agosto de 1909.

15 de agosto de 1909 foi o dia em que Euclides da Cunha tentou matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acabou morto por ele. “São passados 50 anos e minha memória de velha incapaz de reter uma leitura de 50 dias atrás guarda viva a lembrança desse dia infeliz.” Assim começa o texto de Walinda da Cunha Vieira que, naquele longínquo ano da ‘tragédia de Piedade’, tinha 15 anos.

Caderno de Walinda da Cunha que conta como a família recebeu a notícia da morte de Euclides da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Era um domingo cinzento e chuvoso em São Carlos. A menina ficou no quarto lendo e de lá ouvia as risadas gostosas do avô e do pai enquanto a mãe lia Lisboa em Camisa, do português Gervásio Lobato, para os dois. No fim da leitura, o avô fala: “Pois é, apesar desta chuva cacete passamos um dia alegre”. Walinda olha para o avô magro e abatido – ele estava se recuperando de um problema no coração – e sente uma tristeza. “Eu não sabia que lá longe na mesa fria de um necrotério jazia morto o filho que era todo o seu orgulho, o filho que ele estava esperando”, continua.

No dia seguinte, foram à sua escola dizer que sua mãe estava doente e precisava dela. “Corri aflita e que espetáculo doloroso fui encontrar na sala. Mamãe, amparada pelo papai carinhoso, ajoelhada no chão, gemia chorando: ‘Meu irmão, meu pobre irmão’.” Ao ver a menina, Adelia pede que ela vá distrair o avô, seu pai, que não sabe de nada – Walinda tampouco está entendendo alguma coisa. Só quando chega um amigo da família é que ela compreende, e assim narra meio século depois: “Tinham matado, no Rio, o bom titio Euclydes – aquele titio pequeno, magro, nervoso, sempre a atirar para trás o cabelo negro, liso mas rebelde, que ralhava conosco quando com as nossas algazarras perturbávamos-lhe a leitura, mas que sabia nos dizer palavras tão bonitas sobre a pátria quando nos via brincando com suas espadas.”

A notícia chega em partes a Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha. Primeiro Adelia conta ao pai que recebera um telegrama dizendo que o irmão tinha tido uma recaída de uma pneumonia e estava passando muito mal. Aflito, ele quer partir no dia seguinte. Depois forjaram um telegrama falando da morte. Chorando, ele pedia para lerem os jornais que tinham chegado. “Vovô que ouvia cabisbaixo, com lágrimas a escorrer-lhes pelas faces, levantou a cabeça e disse: ‘Meu filho morreu como um digno’." 

A família estava preocupada com o coração do pai de Euclides da Cunha, mas ele se manteve firma na presença de todos e só chorava baixinho quando ficava só, relembra a neta. Um mês depois, ele quis voltar para sua fazenda, para fazer os pagamentos. Tentaram dissuadi-lo, mas ele foi, reuniu o pessoal, acertou tudo, retirou-se para o seu quarto, passou mal e morreu. “Na cabeceira da cama, sobre o criado mudo, com as páginas marcadas por um pince-nez e cinzas de charuto estava o volume d’Os Sertões, o seu neto glorioso.”

No outro texto do caderno, que antecede este sobre a morte do escritor e não tem data, Walinda relembra o feriado de Páscoa na fazenda Trindade em 1908. Seu pai chegou com o cunhado, Euclides, e porque não o via há algum tempo, ficou tímida. Estava vermelha do sol, com tranças negras despencando nas costas. “Ele com um sorriso bom no seu rosto magro perguntou caçoísta: ‘Então, Adelia, onde foste arranjar esta saloia?' Não gostei do gracejo e, desapontada, apertei em silêncio a mão que ele me estendia. ‘Então que costume é esse? Já não toma mais a bênção do tio, sua cigana?’ Pronto, acabei de enfezar”, escreve, já mais velha. Não quis mais conversa com o tio nos três dias que passaram juntos e nem perguntou dos primos Solon e Quidinho.

Quem faz a ponte entre essas lembranças escritas em páginas hoje amareladas e frágeis e o presente é Regina Coeli Vieira Barini, de 72 anos, sobrinha-neta de Walinda, ou de Zica, como ela a chama. Ela descobriu esse caderno na garagem do pai quando uma terceira pessoa, Geralda, que vivia com sua família desde pequena, morreu (poucos anos depois de Walinda). 

Regina Coeli, descendente do escritor Euclides da Cunha, comcadernos de sua tia-avóWalinda da Cunha Foto: Taba Benedicto/Estadão

Regina podia saber mais sobre a história de sua família, mas não guarda nenhum arrependimento por não ter feito perguntas quando teve a chance, por não ter fixado tudo que ouviu. Era só uma adolescente que sabia, sim, que havia uma pessoa famosa na sua árvore genealógica, mas não tinha a dimensão disso e não considerava que o único elo entre os dois não seria eterno. Não se arrepende, mas acha uma pena que tenha sido assim.

Recentemente Regina ficou muito doente e quando conseguiu se reerguer decidiu revelar essas memórias. “Minha tia gostava tanto dessa história, e a gente gostava tanto dela, que pensei que ainda dava tempo de contar”, diz. Na verdade, esse acerto de contas com um passado de lacunas começou há cerca de 15 anos, quando sua primeira neta foi morar nos Estados Unidos. Regina pensou que podia morrer quando ela estivesse fora, e que a menina, então com dois anos, não teria nenhuma lembrança dela. Contou sua trajetória num livro que fez pela internet. Anos depois, decidiu fazer outro, sobre a família. Como ela não ligava muito quando tia Zica falava do passado, seus filhos também não estavam muito interessados, ela conta. “Eu queria deixar esse registro para eles saberem da nossa história. Quem ia contar? Não tem mais ninguém”, diz.

Árvore genealógica

Walinda da Cunha Viera (1894–1965) foi filha de Adelia Pimenta da Cunha (1868–1922). Adelia, única irmã de Euclides da Cunha, teve outros dois filhos: Oleno e Carlos. Carlos morreu solteiro. Oleno se casou com Beatriz e o casal teve dois filhos: Oleno e Marilia. Oleno não teve filhos. Marilia se casou com Orestes, e nasceram Beatriz e Regina Coeli Vieira Barini, quem nos conta essa história.

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