Pagu, Mara Lobo, Pa ou Patsy, ou Solange - os pseudônimos de Patrícia Galvão (1910-1962) são muitos e cada um deles revela traços de uma vida dedicada inteiramente às causas que a moviam: a justiça social, a democracia, a mulher, a cultura, o teatro. Desde sua morte, aos 52 anos, Pagu é lembrada e esquecida. Mas este tem sido um ano gentil à memória da escritora e militante que foi de musa do Modernismo, uma definição limitante, a inimiga número 1 de Getúlio Vargas, uma relação que deixou marcas profundas no seu corpo e na sua obra.
Há alguns livros a caminho das livrarias, e eles são o resultado do trabalho de pesquisadores que têm se debruçado sobre seus escritos e sobre sua vida. A homenagem da Festa Literária Internacional de Paraty, entre 22 e 26 de novembro, arremata este ano de redescobertas.
E de revelações.
Um desses lançamentos, que o leitor poderá conhecer a partir de sábado, 11, é o livro Os Cadernos Pagu: Manuscritos Inéditos de Patrícia Galvão (Nocelli/Unisanta). Nele, a professora e pesquisadora Lúcia Teixeira apresenta cartas até então inéditas, roteiros de peças e anotações corriqueiras, entre outros textos. O Estadão antecipa trechos de quatro dessas cartas e reproduz, também com exclusividade, duas delas na íntegra (leia abaixo).
Em uma delas, de 1936, Pagu chama Oswald de Andrade, com quem foi casada, de “paizão mole” - no bom sentido. Ela estava feliz porque ele levou Rudá, então com seis anos, para visitá-la no Presídio Político. Uma briga entre os dois, anos antes, fez com que Oswald afastasse o filho da mãe. No papel, é possível ver o carimbo da prisão.
O trecho a seguir, de 1934, deixa claro o tom belicoso da relação: “Ainda e mais uma última vez confirmas a minha impressão acerca do teu caráter. Não esperava, no entanto, que sucedesse tão cedo e de tão lamentável maneira! (...) A tua falta de caráter é imperdoável. Que adianta o teu coração atrofiado, se apenas serviu para satisfazer teus instintos sempre mal orientados? Tudo em você é cabotinismo, até o caráter. Apenas o teu sexo inútil é que predominou!”, ela escreveu depois de descobrir que Oswald tinha pedido dinheiro ao pai dela, que também estava quebrado.
Há, ainda, duas cartas a Rudá. Em uma, sem data ou procedência, as lágrimas de Pagu borram o papel. Começa assim: “Meu querido menino grandão – eu te amo. Você é o nosso pacotinho. Que loucura é o nosso pacotinho. Que saudades – Que saudadesss – Nunca mais me separo do meu pacotinho. Só se precisar”. E segue: “É a carta mais sincera que já escrevi na minha vida. Tou chorando, meu Rudazinho. Agora mesmo caiu uma lagriminha no papel. Dê ela de presente pro papai”.
A outra foi enviada no dia de Natal, em 1933, do Japão. “Hoje é dia de Natal. A mamãe não está perto de você. Mas é melhor porque a gente, você sabe, precisa acabar com estas besteiras de tradições. Uma alegria para o meu filho a gente dá quando pode e quando não pode. Sem sentimentalismo.” Mais adiante, ela escreve: “Seja moleque sempre para ser alegre. Quero que você seja feliz e sem vergonha de puro. Querido, perdoa o meu abraço de longe te arrebentando de amor. Grande de mais para uma materialista (...)”
Cadernos manuscritos e inéditos de Pagu
Esse conteúdo foi garimpado entre os mais de três mil documentos do acervo pessoal de Lúcia Teixeira sobre Pagu, uma coleção iniciada no final dos anos 80 e reunida no Centro Pagu Unisanta, que ela fundou na universidade que preside, em Santos - onde Pagu viveu seus últimos e morreu, em 1962. O local é aberto a pesquisadores mediante agendamento.
No livro, estarão essas correspondências - há uma ainda em que Pagu conta a Oswald, também do Japão, que incentivou uma jovem e repetir o que o casal fez alguns anos antes (o casamento dela forjado, o encontro na Serra do Mar, a fuga para Santos) -, e ainda escritos sobre literatura, leitura e autores e 5 cadernos.
São eles:
- Caderno manuscrito do Álbum de Pagu (1929)
- Caderno manuscrito do livro Parque Industrial (1931 a 1933)
- Caderno manuscrito da peça teatral Parque Industrial (1931 a 1933)
- Caderno manuscrito Microcosmo. Pagu – 1939 e o homem subterrâneo. Correspondência (1939)
- Caderno manuscrito da peça teatral Fuga e Variações
Uma cronologia para entender Pagu encerra a obra, que traz todos esses textos transcritos e em reprodução fac-similar - e sempre contextualizados.
“Para este livro, pensei no leitor dialogando e interagindo com Pagu, conduzindo a história, ao ler seus cadernos. Eles são mostrados com a explicação de cada momento, contextualizados, e com toda a força e fragilidade que a mão, a ação e o pensamento de Pagu nos revelam, com novos desafios, abertos a novas propostas”, explica Lúcia, autora de outras obras sobre a intelectual, entre as quais Viva Pagu: Fotobiografia, assinada com o segundo filho de Patrícia Galvão, o jornalista Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013).
Ali, destaca a organizadora, Pagu divide momentos vividos, convicções, dúvidas, sonhos, erros, autocrítica, momentos felizes e terríveis desde que escreveu o primeiro manuscrito, em 1929. “E mostra, com sua própria caligrafia, como produções, aparentemente contraditórias, se completam e se contrapõem, em várias épocas de sua vida e de mudanças históricas, culturais e políticas do Brasil.”
Lúcia conta que já tinha mencionado a existência dos cadernos em livros anteriores, mas que nunca tinha tido espaço para mostrá-los por inteiro. Ela detalha, a seguir, o projeto.
O que há entre esses escritos e o que eles representam dentro do acervo dela?
Um pouco de cada aspecto de sua produção intelectual, pessoal e política. Manuscritos do Álbum de Pagu, de 1929, e, nele, trechos que não apareceram na versão final e conhecida. Os do livro Parque Industrial, de 1931. Em outro caderno, temos os rascunhos da inédita peça Parque Industrial, também em 1931, ano em que é presa em Santos. O interesse pela arte teatral e dramaturgia fica registrado, portanto, na jovem Pagu, aos 21 anos, muito antes de sua conhecida atuação no incentivo ao teatro amador, que aconteceria no final da década de 1950, e início dos anos 60. O amor pelo teatro era seu gesto de vida. Os cadernos de outra inédita peça em um ato, Fuga e Variações, de 1954, então aluna da Escola de Arte Dramática, se somam a esse movimento de recomeçar e aprender sempre.
No caderno dessa peça inédita, Fuga e Variações, fala “dos que acreditaram sem crítica” e da “fanática gente da literatura social”, criticando e revendo a si mesma.
O caderno Microcosmo- Pagu e o homem subterrâneo- 1939, que escreve na prisão, é dramático depoimento e forma de manter sua dignidade e inconformismo. Foi escrito com letras de forma e pequenas, para aproveitar o pouco papel disponível e ser entendida. No subterrâneo, habitat do narrador de Dostoievski, se misturam paradoxos e sofrimentos humanos e a tragédia verdadeira em que Pagu registra suas memórias, nesse caderno inédito. Tenta se soltar das amarras da prisão e da razão, não estar presa a nenhuma lei, a não ser a do amor, para aquele que seria seu segundo companheiro, após ser libertada, o jornalista Geraldo Ferraz, a quem dedica o Microcosmo.
Quem é a Pagu que aparece nesses cadernos?
A sempre surpreendente, desvelando segredos e mistérios, lágrimas derramadas, sonhos alimentados e desfeitos. Emociona pela singularidade das mensagens, pela fragilidade e força do papel, que conserva sentimentos e extrema beleza. Mostra os originais de sua produção intelectual, assim como recados e lembretes do cotidiano (contas e compras da intimidade de sua vida), com o espanto para não se deixar arrastar por esse cotidiano, assim como a esperança e o não se conformar.
Você é pesquisadora da obra de Pagu há muito tempo. Como vê essa homenagem agora?
Fiquei feliz e emocionada ao saber da homenagem pela Flip. Pesquisar e escrever sobre Pagu para mim sempre foi uma forma de fazer justiça. Eu quis revelar suas lutas pela liberdade, contra a violência, seu apoio à cultura e seu lado humano. Foi uma mulher que não teve medo de rever posições e mostrou a importância de se resistir. Essa disposição é fundamental para esses tempos atuais, em que muitas vezes precisamos buscar forças internas para não esmorecer. Ela foi uma jornalista documentando fatos e deixando pistas de seu trabalho, que agora têm o destaque merecido. O seu exemplo de solidariedade também é importante nesse momento, em que precisamos tanto de esperança.
Há muito ainda a ser revelado sobre ela?
Ao lado dela, por meio de seus bilhetes, cartas, artigos, crônicas e livros, vamos conhecendo outras faces de Pagu, além do mito que esse apelido carrega, que aliás ela passou a abominar, após ser libertada, em 1940. Mergulhando em documentos não publicados, e ainda não conhecidos do grande público, sei que ainda há muito por contar. Nas pesquisas de tantos anos pude falar de suas lutas pela liberdade, contra a violência e o preconceito, o apoio à cultura e seu lado humano. Ainda há mais? Talvez. Eu acho que Patrícia traz surpresas e urgências. Mostrar esses manuscritos agora é uma forma de compartilhar parte da nossa história cultural.
Leia a seguir duas cartas inéditas de Pagu
1.
Rio-6-9-34
Oswald
Ainda e mais uma última vez confirmas a minha impressão acerca do teu caráter. Não esperava, no entanto, que sucedesse tão cedo e de tão lamentável maneira!
Fiz tudo o que pude em matéria de sacrifícios para te salvar, expondo tudo o que de mais nobre possuía, enfim a minha própria vida! Fi-lo sensibilizada pelo teu falso amor, pois bem sabias que eu não te amava!
Aproveitaste a minha situação (moral) lamentável no momento, e com a tua habilíssima política e inteligência fizestes tudo para me conquistar como era teu hábito para com as outras mulheres. Conseguistes afinal!
Acreditei, sensibilizei-me, não enxergando tua idade nem teu físico, tal o meu estado provocado pela circunstância e ambiente criado por você. Não detalho, porque seria necessário escrever um romance e tal é a minha revolta diante do que acaba de suceder que só terminando de vez. E com grande satisfação íntima para você, pois com grande alívio é o que mais desejas.
Mas em compensação ficará um diário íntimo da minha vida com você, que não destruí e que será publicado a tempo.
A tua falta de caráter é imperdoável. Que adianta o teu coração atrofiado, se apenas serviu para satisfazer teus instintos sempre mal orientados?
Tudo em você é cabotinismo, até o caráter. Apenas o teu sexo inútil é que predominou!
Estás brincando comigo ou é um pretexto sórdido para fugires de um compromisso de honra criado por você e que à custa de sacrifícios me expus a tudo e agora, depois de eu ter criado essa grande responsabilidade, ousas fazer empréstimos sórdidos ao meu pai que se acha arruinado por circunstância de vida, e, que sempre me pedistes para não utilizar nenhum favor por uma simples questão de amor-próprio e caráter? Você alega o teu? Onde está? Tens apenas (...)
2.
(sem data)
Meu querido menino grandão – eu te amo. Você é o nosso pacotinho.
Que loucura é o nosso pacotinho. Que saudades – Que saudadesss –
Nunca mais me separo do meu pacotinho. Só se precisar.
Coraçãozinho querido, que a mamãe comprou um bruto gato verde pra ele e uma negrinha batuta.
É a coisa mais linda do mundo.
Valdinho comprou presentinhos de Natal pro nosso bebezinho –
Meu queridinho. Estou chorando, chorando.
Rudazinho, fale pô papai não dizer pa ninguém nem mostrar pa ninguém essa carta.
É a carta mais sincera que já escrevi na minha vida.
Tou chorando, meu Rudazinho.
Agora mesmo caiu uma lagriminha no papel.
Dê ela de pezente po papai.
Meu amor.
Os Cadernos de Pagu
Autora: Lúcia Teixeira
Editoras: Nocelli e Unisanta
328 págs.; preço a definir
Lançamento: 11/11, às 17h, na Pinacoteca Benedito Calixto, em Santos
Lançamento na Flip
23/11, às 11h, na Casa Pagã, com debate
Centro Pagu Unisanta
Unisanta / Biblioteca Central: Rua Oswaldo Cruz, 277 - 1º andar - Boqueirão - Santos/SP