Carla Madeira, autora de ‘Tudo é rio’: ‘Quero viver em um mundo onde o perdão exista’


Dona do livro de ficção nacional mais vendido do Brasil em 2023, que superou os 130 mil exemplares, ela fala sobre seu romance que causa enorme comoção nos leitores - e desperta algumas críticas, que ela rebate

Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:
Foto: PEDRO KIRILOS
Entrevista comCarla MadeiraEscritora

Carla Madeira escreveu Tudo é Rio como um exercício de experimentação de linguagem. Ao finalizar a cena mais forte da história, um ato de violência que mudaria para sempre o destino do casal Dalva e Venâncio e que interferiria também na vida da prostituta Lucy, Carla travou. Ela tinha 33 anos e só foi retomar a escrita 15 anos depois, ainda sem pensar em publicar. Os amigos que leram a incentivaram. Em 2014, o romance foi lançado pela editora independente Quixote, de Belo Horizonte, onde Carla é uma renomada publicitária. Nos anos que se seguiram, o livro teve uma trajetória local respeitada - com 10 mil exemplares vendidos, segundo a autora.

Isso é muito, para os padrões, naquela época, de um autor nacional de ficção (algo que começou a mudar com Itamar Vieira Júnior). E não é nada perto do que viria depois. Em 2021, a editora Record relançou o livro e, com uma melhor distribuição e o boca a boca em torno do romance, Tudo é Rio estourou, teve os direitos vendidos para o cinema e não sai das vitrines das livrarias.

Em 2023, Carla Madeira confirma essa trajetória de sucesso ao se tornar não só a escritora brasileira mais vendida no ano, mas também a única ficcionista, entre homens ou mulheres, do País, a aparecer no ranking de 10 livros mais vendidos no Brasil, feita pela Nielsen BookScan - Tudo é Rio é o 9º colocado de uma lista dominada por Colleen Hoover. Segundo sua editora, só neste ano ela vendeu nada menos do que 131 mil exemplares. Desde o relançamento, já são mais de 350 mil cópias impressas e digitais.

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Nascida em Belo Horizonte em 1964, estudante de Matemática que optou pela Comunicação e dona de uma agência de publicidade, Carla Madeira é autora de outras duas obras. A Natureza da Mordida, escrito depois de Tudo é Rio e também publicado pela primeira vez pela Quixote, com 4 mil exemplares vendidos no começo de sua trajetória, acompanha uma psicanalista aposentada apaixonada por literatura e uma jovem jornalista. E Véspera, posterior ao sucesso de seu romance de estreia, o primeiro revelado pela Record, parte da história de uma mulher destroçada por um casamento que em um momento de descontrole abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra vestígios de sua presença.

Somados, os três livros ultrapassam, nas edições da Record, segundo a editora, os 500 mil exemplares vendidos desde o lançamento. Só em 2023, foram 240 mil.

Carla Madeira, durante passagem pelo Rio em dezembro; escritora mineira é autora do best-seller 'Tudo é Rio' Foto: Pedro Kirilos/Estadão
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Na entrevista a seguir, Carla Madeira, de 58 anos, fala sobre literatura e psicanálise (ela se interessa pelo tema), conta o que a leva a escrever, diz que se tornou uma leitora melhor depois que passou a se dedicar à escrita e comenta as críticas ao desfecho de Tudo é Rio (confira também a resenha).

Quando começou a escrever, quando publicou seu livro por uma editora independente e local, imaginou chegar aonde chegou, ser a autora mais vendida do Brasil?

Quando comecei a escrever Tudo é Rio, não tinha ideia de que faria um livro. Começou muito mais como um exercício de linguagem, um gosto de explorar aquele narrador e a sua prosódia. Quando fui pega pela história, escrevi sem pensar muito na possibilidade de publicar. Só quando terminei, depois que alguns amigos leram e me disseram o que sentiram, comecei a pensar na possibilidade de publicar. Não imaginava que se tornaria um livro com uma ressonância tão grande dentro das pessoas.

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Por que acha que Tudo é Rio afetou tanto os leitores?

Primeiro, me ocorre que Tudo é Rio é um livro que afeta o corpo do leitor. Eles me contam que sentiram um soco no estômago, ou que derramaram lágrimas, ou que morreram de tesão. E um corpo que aguenta um tranco quer produzir sentido. Além disso, acho que Tudo é Rio parece não se enquadrar em uma definição maniqueísta do tipo uma coisa ou outra: poético ou brutal? Sagrado ou profano? Anacrônico ou contemporâneo? Clichê ou surpreendente? Bem ou mal? Tudo parece estar lá. Tudo está em todos. E é nesse espaço indefinido que se abre espaço para a subjetividade do leitor. O leitor passa a se ouvir e a juntar alguma coisa esparramada dentro dele. Não porque concorda ou discorda, mas porque é perturbado em um lugar já em perturbação. Olha para o próprio tumulto com a sensação de poder iluminá-lo.

Esse livro já foi publicado há bastante tempo. E este é o terceiro ano dele como best-seller nacional. Mudou sua relação com o livro? Como você o vê hoje?

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Não mudou minha relação. Tudo é Rio é o livro que quis fazer, não mudaria nada.

O que a fama te proporcionou, e tirou?

A literatura me proporcionou muito encontros, conheci muitas pessoas, tenho tido trocas maravilhosas, muitas reflexões, muita diversão e arte, afeto, poesia e horinhas de saúde. E me tornei uma leitora melhor, isso talvez tenha sido o maior acontecimento de todos. Por outro lado, tenho sido muito demandada e o excesso de atividades tem tirado meu tempo de escrita e de leitura. Já entendi que vou precisar pôr um limite e estou me organizando para isso. Estou com uma história querendo acontecer e quero me colocar disponível para ela.

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O que a escrita significa para você?

Quando estou escrevendo sinto que não gostaria de estar fazendo outra coisa, entro em profundo envolvimento, salivo. Mesmo nas horas de angústia, quando não encontro o caminho, a palavra, o sentido, quero estar ali. Vivo com muita intensidade o processo criativo, e nos dias bons, quando bateio um diamante, experimento aquele breve e inesquecível instante em que a vida está completa, sobre a qual Cecília Meireles fala em seu poema Motivo. Acho que sou poeta embora faça prosa.

O que mobiliza sua escrita? De onde vêm as histórias?

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Minhas histórias nascem de um acontecimento que me afeta, me assombra, me provoca. Olho para esse acontecimento com a necessidade de imaginar o que veio antes, o que virá depois e assim vou encontrando uma história. A condição humana, nossas potências de bem e de mal, e como isso vai se encaminhando a partir das nossas circunstâncias (a família que pertencemos, os pequenos acontecimentos que se tornam imensos), têm sido objeto de inquietação e curiosidade. Talvez eu escreva para dar conta da deriva da condição humana que me comove e angustia.

O que importa na literatura?

O que importa na literatura, em minha perspectiva de autora, é o processo criativo, o mergulho. É a adesão com o que estou fazendo, o instante de alinhamento.

O que você leva da publicidade para a sua literatura?

A publicidade me deu um grande treino com a síntese, a precisão das palavras. O ritmo, a frase capaz de dizer muito com pouco.

E da psicanálise?

A psicanálise tem me dado muitas perguntas. Pensar o gesto, o ato, o ser, com a possibilidade de não reduzir a complexidade de existir, em nome da tentação de um mundo que explica tudo, compreende tudo, controla tudo.

E como leitora, o que procura em um livro, na experiência da leitura?

Procuro na leitura ser fisgada. E depois de me tornar uma escritora, procuro a liberdade do autor, alguma coisa que me faça envolvida, não só pela história, mas pelo jeito que ela é contada.

Uma das questões de Tudo é Rio é o perdão. Há quem veja o livro como machista. Numa sociedade que luta tanto contra o feminicídio, o que você quis mostrar com sua história?

Em um país onde a violência de gênero é imensa e a impunidade também, Tudo é Rio atrita ao colocar a questão do perdão. As pessoas que não aceitam o perdão narrado no desfecho do livro, talvez pensem que perdoar é uma espécie de “deixa pra lá”, vamos fingir que não aconteceu. Estas pessoas acham imperdoável o perdão que acontece na história, e leem um “viveram felizes para sempre” ao final do livro. Muitas outras pessoas, e eu me incluo neste grupo, entendem que o perdão é a única possibilidade de cessar a agressão e tirar a vítima das mãos de um agressor. Este grupo, diferente do primeiro, costuma perceber que o final do livro está em aberto, que o próximo passo traz a possibilidade dos abismos, como está dito no último parágrafo, ao mesmo tempo que a vida, o desejo de viver, está de volta com toda a sua umidade e possiblidades. Mas talvez o que realmente importe é que Tudo é rio tornou-se uma ocasião de conversar sobre a violência de gênero e é muito legal quando um livro passa a fazer parte das conversas que são relevantes para as pessoas.

Se você não tivesse travado depois de criar a cena de violência de Venâncio e tivesse escrito o desfecho quando começou a história, aos 33 anos, ele poderia ter sido outro? O que aprendeu sobre perdão de lá para cá?

O que tenho aprendido sobre o perdão é que quero viver em um mundo onde ele exista.

Carla Madeira escreveu Tudo é Rio como um exercício de experimentação de linguagem. Ao finalizar a cena mais forte da história, um ato de violência que mudaria para sempre o destino do casal Dalva e Venâncio e que interferiria também na vida da prostituta Lucy, Carla travou. Ela tinha 33 anos e só foi retomar a escrita 15 anos depois, ainda sem pensar em publicar. Os amigos que leram a incentivaram. Em 2014, o romance foi lançado pela editora independente Quixote, de Belo Horizonte, onde Carla é uma renomada publicitária. Nos anos que se seguiram, o livro teve uma trajetória local respeitada - com 10 mil exemplares vendidos, segundo a autora.

Isso é muito, para os padrões, naquela época, de um autor nacional de ficção (algo que começou a mudar com Itamar Vieira Júnior). E não é nada perto do que viria depois. Em 2021, a editora Record relançou o livro e, com uma melhor distribuição e o boca a boca em torno do romance, Tudo é Rio estourou, teve os direitos vendidos para o cinema e não sai das vitrines das livrarias.

Em 2023, Carla Madeira confirma essa trajetória de sucesso ao se tornar não só a escritora brasileira mais vendida no ano, mas também a única ficcionista, entre homens ou mulheres, do País, a aparecer no ranking de 10 livros mais vendidos no Brasil, feita pela Nielsen BookScan - Tudo é Rio é o 9º colocado de uma lista dominada por Colleen Hoover. Segundo sua editora, só neste ano ela vendeu nada menos do que 131 mil exemplares. Desde o relançamento, já são mais de 350 mil cópias impressas e digitais.

Nascida em Belo Horizonte em 1964, estudante de Matemática que optou pela Comunicação e dona de uma agência de publicidade, Carla Madeira é autora de outras duas obras. A Natureza da Mordida, escrito depois de Tudo é Rio e também publicado pela primeira vez pela Quixote, com 4 mil exemplares vendidos no começo de sua trajetória, acompanha uma psicanalista aposentada apaixonada por literatura e uma jovem jornalista. E Véspera, posterior ao sucesso de seu romance de estreia, o primeiro revelado pela Record, parte da história de uma mulher destroçada por um casamento que em um momento de descontrole abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra vestígios de sua presença.

Somados, os três livros ultrapassam, nas edições da Record, segundo a editora, os 500 mil exemplares vendidos desde o lançamento. Só em 2023, foram 240 mil.

Carla Madeira, durante passagem pelo Rio em dezembro; escritora mineira é autora do best-seller 'Tudo é Rio' Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na entrevista a seguir, Carla Madeira, de 58 anos, fala sobre literatura e psicanálise (ela se interessa pelo tema), conta o que a leva a escrever, diz que se tornou uma leitora melhor depois que passou a se dedicar à escrita e comenta as críticas ao desfecho de Tudo é Rio (confira também a resenha).

Quando começou a escrever, quando publicou seu livro por uma editora independente e local, imaginou chegar aonde chegou, ser a autora mais vendida do Brasil?

Quando comecei a escrever Tudo é Rio, não tinha ideia de que faria um livro. Começou muito mais como um exercício de linguagem, um gosto de explorar aquele narrador e a sua prosódia. Quando fui pega pela história, escrevi sem pensar muito na possibilidade de publicar. Só quando terminei, depois que alguns amigos leram e me disseram o que sentiram, comecei a pensar na possibilidade de publicar. Não imaginava que se tornaria um livro com uma ressonância tão grande dentro das pessoas.

Por que acha que Tudo é Rio afetou tanto os leitores?

Primeiro, me ocorre que Tudo é Rio é um livro que afeta o corpo do leitor. Eles me contam que sentiram um soco no estômago, ou que derramaram lágrimas, ou que morreram de tesão. E um corpo que aguenta um tranco quer produzir sentido. Além disso, acho que Tudo é Rio parece não se enquadrar em uma definição maniqueísta do tipo uma coisa ou outra: poético ou brutal? Sagrado ou profano? Anacrônico ou contemporâneo? Clichê ou surpreendente? Bem ou mal? Tudo parece estar lá. Tudo está em todos. E é nesse espaço indefinido que se abre espaço para a subjetividade do leitor. O leitor passa a se ouvir e a juntar alguma coisa esparramada dentro dele. Não porque concorda ou discorda, mas porque é perturbado em um lugar já em perturbação. Olha para o próprio tumulto com a sensação de poder iluminá-lo.

Esse livro já foi publicado há bastante tempo. E este é o terceiro ano dele como best-seller nacional. Mudou sua relação com o livro? Como você o vê hoje?

Não mudou minha relação. Tudo é Rio é o livro que quis fazer, não mudaria nada.

O que a fama te proporcionou, e tirou?

A literatura me proporcionou muito encontros, conheci muitas pessoas, tenho tido trocas maravilhosas, muitas reflexões, muita diversão e arte, afeto, poesia e horinhas de saúde. E me tornei uma leitora melhor, isso talvez tenha sido o maior acontecimento de todos. Por outro lado, tenho sido muito demandada e o excesso de atividades tem tirado meu tempo de escrita e de leitura. Já entendi que vou precisar pôr um limite e estou me organizando para isso. Estou com uma história querendo acontecer e quero me colocar disponível para ela.

O que a escrita significa para você?

Quando estou escrevendo sinto que não gostaria de estar fazendo outra coisa, entro em profundo envolvimento, salivo. Mesmo nas horas de angústia, quando não encontro o caminho, a palavra, o sentido, quero estar ali. Vivo com muita intensidade o processo criativo, e nos dias bons, quando bateio um diamante, experimento aquele breve e inesquecível instante em que a vida está completa, sobre a qual Cecília Meireles fala em seu poema Motivo. Acho que sou poeta embora faça prosa.

O que mobiliza sua escrita? De onde vêm as histórias?

Minhas histórias nascem de um acontecimento que me afeta, me assombra, me provoca. Olho para esse acontecimento com a necessidade de imaginar o que veio antes, o que virá depois e assim vou encontrando uma história. A condição humana, nossas potências de bem e de mal, e como isso vai se encaminhando a partir das nossas circunstâncias (a família que pertencemos, os pequenos acontecimentos que se tornam imensos), têm sido objeto de inquietação e curiosidade. Talvez eu escreva para dar conta da deriva da condição humana que me comove e angustia.

O que importa na literatura?

O que importa na literatura, em minha perspectiva de autora, é o processo criativo, o mergulho. É a adesão com o que estou fazendo, o instante de alinhamento.

O que você leva da publicidade para a sua literatura?

A publicidade me deu um grande treino com a síntese, a precisão das palavras. O ritmo, a frase capaz de dizer muito com pouco.

E da psicanálise?

A psicanálise tem me dado muitas perguntas. Pensar o gesto, o ato, o ser, com a possibilidade de não reduzir a complexidade de existir, em nome da tentação de um mundo que explica tudo, compreende tudo, controla tudo.

E como leitora, o que procura em um livro, na experiência da leitura?

Procuro na leitura ser fisgada. E depois de me tornar uma escritora, procuro a liberdade do autor, alguma coisa que me faça envolvida, não só pela história, mas pelo jeito que ela é contada.

Uma das questões de Tudo é Rio é o perdão. Há quem veja o livro como machista. Numa sociedade que luta tanto contra o feminicídio, o que você quis mostrar com sua história?

Em um país onde a violência de gênero é imensa e a impunidade também, Tudo é Rio atrita ao colocar a questão do perdão. As pessoas que não aceitam o perdão narrado no desfecho do livro, talvez pensem que perdoar é uma espécie de “deixa pra lá”, vamos fingir que não aconteceu. Estas pessoas acham imperdoável o perdão que acontece na história, e leem um “viveram felizes para sempre” ao final do livro. Muitas outras pessoas, e eu me incluo neste grupo, entendem que o perdão é a única possibilidade de cessar a agressão e tirar a vítima das mãos de um agressor. Este grupo, diferente do primeiro, costuma perceber que o final do livro está em aberto, que o próximo passo traz a possibilidade dos abismos, como está dito no último parágrafo, ao mesmo tempo que a vida, o desejo de viver, está de volta com toda a sua umidade e possiblidades. Mas talvez o que realmente importe é que Tudo é rio tornou-se uma ocasião de conversar sobre a violência de gênero e é muito legal quando um livro passa a fazer parte das conversas que são relevantes para as pessoas.

Se você não tivesse travado depois de criar a cena de violência de Venâncio e tivesse escrito o desfecho quando começou a história, aos 33 anos, ele poderia ter sido outro? O que aprendeu sobre perdão de lá para cá?

O que tenho aprendido sobre o perdão é que quero viver em um mundo onde ele exista.

Carla Madeira escreveu Tudo é Rio como um exercício de experimentação de linguagem. Ao finalizar a cena mais forte da história, um ato de violência que mudaria para sempre o destino do casal Dalva e Venâncio e que interferiria também na vida da prostituta Lucy, Carla travou. Ela tinha 33 anos e só foi retomar a escrita 15 anos depois, ainda sem pensar em publicar. Os amigos que leram a incentivaram. Em 2014, o romance foi lançado pela editora independente Quixote, de Belo Horizonte, onde Carla é uma renomada publicitária. Nos anos que se seguiram, o livro teve uma trajetória local respeitada - com 10 mil exemplares vendidos, segundo a autora.

Isso é muito, para os padrões, naquela época, de um autor nacional de ficção (algo que começou a mudar com Itamar Vieira Júnior). E não é nada perto do que viria depois. Em 2021, a editora Record relançou o livro e, com uma melhor distribuição e o boca a boca em torno do romance, Tudo é Rio estourou, teve os direitos vendidos para o cinema e não sai das vitrines das livrarias.

Em 2023, Carla Madeira confirma essa trajetória de sucesso ao se tornar não só a escritora brasileira mais vendida no ano, mas também a única ficcionista, entre homens ou mulheres, do País, a aparecer no ranking de 10 livros mais vendidos no Brasil, feita pela Nielsen BookScan - Tudo é Rio é o 9º colocado de uma lista dominada por Colleen Hoover. Segundo sua editora, só neste ano ela vendeu nada menos do que 131 mil exemplares. Desde o relançamento, já são mais de 350 mil cópias impressas e digitais.

Nascida em Belo Horizonte em 1964, estudante de Matemática que optou pela Comunicação e dona de uma agência de publicidade, Carla Madeira é autora de outras duas obras. A Natureza da Mordida, escrito depois de Tudo é Rio e também publicado pela primeira vez pela Quixote, com 4 mil exemplares vendidos no começo de sua trajetória, acompanha uma psicanalista aposentada apaixonada por literatura e uma jovem jornalista. E Véspera, posterior ao sucesso de seu romance de estreia, o primeiro revelado pela Record, parte da história de uma mulher destroçada por um casamento que em um momento de descontrole abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra vestígios de sua presença.

Somados, os três livros ultrapassam, nas edições da Record, segundo a editora, os 500 mil exemplares vendidos desde o lançamento. Só em 2023, foram 240 mil.

Carla Madeira, durante passagem pelo Rio em dezembro; escritora mineira é autora do best-seller 'Tudo é Rio' Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na entrevista a seguir, Carla Madeira, de 58 anos, fala sobre literatura e psicanálise (ela se interessa pelo tema), conta o que a leva a escrever, diz que se tornou uma leitora melhor depois que passou a se dedicar à escrita e comenta as críticas ao desfecho de Tudo é Rio (confira também a resenha).

Quando começou a escrever, quando publicou seu livro por uma editora independente e local, imaginou chegar aonde chegou, ser a autora mais vendida do Brasil?

Quando comecei a escrever Tudo é Rio, não tinha ideia de que faria um livro. Começou muito mais como um exercício de linguagem, um gosto de explorar aquele narrador e a sua prosódia. Quando fui pega pela história, escrevi sem pensar muito na possibilidade de publicar. Só quando terminei, depois que alguns amigos leram e me disseram o que sentiram, comecei a pensar na possibilidade de publicar. Não imaginava que se tornaria um livro com uma ressonância tão grande dentro das pessoas.

Por que acha que Tudo é Rio afetou tanto os leitores?

Primeiro, me ocorre que Tudo é Rio é um livro que afeta o corpo do leitor. Eles me contam que sentiram um soco no estômago, ou que derramaram lágrimas, ou que morreram de tesão. E um corpo que aguenta um tranco quer produzir sentido. Além disso, acho que Tudo é Rio parece não se enquadrar em uma definição maniqueísta do tipo uma coisa ou outra: poético ou brutal? Sagrado ou profano? Anacrônico ou contemporâneo? Clichê ou surpreendente? Bem ou mal? Tudo parece estar lá. Tudo está em todos. E é nesse espaço indefinido que se abre espaço para a subjetividade do leitor. O leitor passa a se ouvir e a juntar alguma coisa esparramada dentro dele. Não porque concorda ou discorda, mas porque é perturbado em um lugar já em perturbação. Olha para o próprio tumulto com a sensação de poder iluminá-lo.

Esse livro já foi publicado há bastante tempo. E este é o terceiro ano dele como best-seller nacional. Mudou sua relação com o livro? Como você o vê hoje?

Não mudou minha relação. Tudo é Rio é o livro que quis fazer, não mudaria nada.

O que a fama te proporcionou, e tirou?

A literatura me proporcionou muito encontros, conheci muitas pessoas, tenho tido trocas maravilhosas, muitas reflexões, muita diversão e arte, afeto, poesia e horinhas de saúde. E me tornei uma leitora melhor, isso talvez tenha sido o maior acontecimento de todos. Por outro lado, tenho sido muito demandada e o excesso de atividades tem tirado meu tempo de escrita e de leitura. Já entendi que vou precisar pôr um limite e estou me organizando para isso. Estou com uma história querendo acontecer e quero me colocar disponível para ela.

O que a escrita significa para você?

Quando estou escrevendo sinto que não gostaria de estar fazendo outra coisa, entro em profundo envolvimento, salivo. Mesmo nas horas de angústia, quando não encontro o caminho, a palavra, o sentido, quero estar ali. Vivo com muita intensidade o processo criativo, e nos dias bons, quando bateio um diamante, experimento aquele breve e inesquecível instante em que a vida está completa, sobre a qual Cecília Meireles fala em seu poema Motivo. Acho que sou poeta embora faça prosa.

O que mobiliza sua escrita? De onde vêm as histórias?

Minhas histórias nascem de um acontecimento que me afeta, me assombra, me provoca. Olho para esse acontecimento com a necessidade de imaginar o que veio antes, o que virá depois e assim vou encontrando uma história. A condição humana, nossas potências de bem e de mal, e como isso vai se encaminhando a partir das nossas circunstâncias (a família que pertencemos, os pequenos acontecimentos que se tornam imensos), têm sido objeto de inquietação e curiosidade. Talvez eu escreva para dar conta da deriva da condição humana que me comove e angustia.

O que importa na literatura?

O que importa na literatura, em minha perspectiva de autora, é o processo criativo, o mergulho. É a adesão com o que estou fazendo, o instante de alinhamento.

O que você leva da publicidade para a sua literatura?

A publicidade me deu um grande treino com a síntese, a precisão das palavras. O ritmo, a frase capaz de dizer muito com pouco.

E da psicanálise?

A psicanálise tem me dado muitas perguntas. Pensar o gesto, o ato, o ser, com a possibilidade de não reduzir a complexidade de existir, em nome da tentação de um mundo que explica tudo, compreende tudo, controla tudo.

E como leitora, o que procura em um livro, na experiência da leitura?

Procuro na leitura ser fisgada. E depois de me tornar uma escritora, procuro a liberdade do autor, alguma coisa que me faça envolvida, não só pela história, mas pelo jeito que ela é contada.

Uma das questões de Tudo é Rio é o perdão. Há quem veja o livro como machista. Numa sociedade que luta tanto contra o feminicídio, o que você quis mostrar com sua história?

Em um país onde a violência de gênero é imensa e a impunidade também, Tudo é Rio atrita ao colocar a questão do perdão. As pessoas que não aceitam o perdão narrado no desfecho do livro, talvez pensem que perdoar é uma espécie de “deixa pra lá”, vamos fingir que não aconteceu. Estas pessoas acham imperdoável o perdão que acontece na história, e leem um “viveram felizes para sempre” ao final do livro. Muitas outras pessoas, e eu me incluo neste grupo, entendem que o perdão é a única possibilidade de cessar a agressão e tirar a vítima das mãos de um agressor. Este grupo, diferente do primeiro, costuma perceber que o final do livro está em aberto, que o próximo passo traz a possibilidade dos abismos, como está dito no último parágrafo, ao mesmo tempo que a vida, o desejo de viver, está de volta com toda a sua umidade e possiblidades. Mas talvez o que realmente importe é que Tudo é rio tornou-se uma ocasião de conversar sobre a violência de gênero e é muito legal quando um livro passa a fazer parte das conversas que são relevantes para as pessoas.

Se você não tivesse travado depois de criar a cena de violência de Venâncio e tivesse escrito o desfecho quando começou a história, aos 33 anos, ele poderia ter sido outro? O que aprendeu sobre perdão de lá para cá?

O que tenho aprendido sobre o perdão é que quero viver em um mundo onde ele exista.

Carla Madeira escreveu Tudo é Rio como um exercício de experimentação de linguagem. Ao finalizar a cena mais forte da história, um ato de violência que mudaria para sempre o destino do casal Dalva e Venâncio e que interferiria também na vida da prostituta Lucy, Carla travou. Ela tinha 33 anos e só foi retomar a escrita 15 anos depois, ainda sem pensar em publicar. Os amigos que leram a incentivaram. Em 2014, o romance foi lançado pela editora independente Quixote, de Belo Horizonte, onde Carla é uma renomada publicitária. Nos anos que se seguiram, o livro teve uma trajetória local respeitada - com 10 mil exemplares vendidos, segundo a autora.

Isso é muito, para os padrões, naquela época, de um autor nacional de ficção (algo que começou a mudar com Itamar Vieira Júnior). E não é nada perto do que viria depois. Em 2021, a editora Record relançou o livro e, com uma melhor distribuição e o boca a boca em torno do romance, Tudo é Rio estourou, teve os direitos vendidos para o cinema e não sai das vitrines das livrarias.

Em 2023, Carla Madeira confirma essa trajetória de sucesso ao se tornar não só a escritora brasileira mais vendida no ano, mas também a única ficcionista, entre homens ou mulheres, do País, a aparecer no ranking de 10 livros mais vendidos no Brasil, feita pela Nielsen BookScan - Tudo é Rio é o 9º colocado de uma lista dominada por Colleen Hoover. Segundo sua editora, só neste ano ela vendeu nada menos do que 131 mil exemplares. Desde o relançamento, já são mais de 350 mil cópias impressas e digitais.

Nascida em Belo Horizonte em 1964, estudante de Matemática que optou pela Comunicação e dona de uma agência de publicidade, Carla Madeira é autora de outras duas obras. A Natureza da Mordida, escrito depois de Tudo é Rio e também publicado pela primeira vez pela Quixote, com 4 mil exemplares vendidos no começo de sua trajetória, acompanha uma psicanalista aposentada apaixonada por literatura e uma jovem jornalista. E Véspera, posterior ao sucesso de seu romance de estreia, o primeiro revelado pela Record, parte da história de uma mulher destroçada por um casamento que em um momento de descontrole abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra vestígios de sua presença.

Somados, os três livros ultrapassam, nas edições da Record, segundo a editora, os 500 mil exemplares vendidos desde o lançamento. Só em 2023, foram 240 mil.

Carla Madeira, durante passagem pelo Rio em dezembro; escritora mineira é autora do best-seller 'Tudo é Rio' Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na entrevista a seguir, Carla Madeira, de 58 anos, fala sobre literatura e psicanálise (ela se interessa pelo tema), conta o que a leva a escrever, diz que se tornou uma leitora melhor depois que passou a se dedicar à escrita e comenta as críticas ao desfecho de Tudo é Rio (confira também a resenha).

Quando começou a escrever, quando publicou seu livro por uma editora independente e local, imaginou chegar aonde chegou, ser a autora mais vendida do Brasil?

Quando comecei a escrever Tudo é Rio, não tinha ideia de que faria um livro. Começou muito mais como um exercício de linguagem, um gosto de explorar aquele narrador e a sua prosódia. Quando fui pega pela história, escrevi sem pensar muito na possibilidade de publicar. Só quando terminei, depois que alguns amigos leram e me disseram o que sentiram, comecei a pensar na possibilidade de publicar. Não imaginava que se tornaria um livro com uma ressonância tão grande dentro das pessoas.

Por que acha que Tudo é Rio afetou tanto os leitores?

Primeiro, me ocorre que Tudo é Rio é um livro que afeta o corpo do leitor. Eles me contam que sentiram um soco no estômago, ou que derramaram lágrimas, ou que morreram de tesão. E um corpo que aguenta um tranco quer produzir sentido. Além disso, acho que Tudo é Rio parece não se enquadrar em uma definição maniqueísta do tipo uma coisa ou outra: poético ou brutal? Sagrado ou profano? Anacrônico ou contemporâneo? Clichê ou surpreendente? Bem ou mal? Tudo parece estar lá. Tudo está em todos. E é nesse espaço indefinido que se abre espaço para a subjetividade do leitor. O leitor passa a se ouvir e a juntar alguma coisa esparramada dentro dele. Não porque concorda ou discorda, mas porque é perturbado em um lugar já em perturbação. Olha para o próprio tumulto com a sensação de poder iluminá-lo.

Esse livro já foi publicado há bastante tempo. E este é o terceiro ano dele como best-seller nacional. Mudou sua relação com o livro? Como você o vê hoje?

Não mudou minha relação. Tudo é Rio é o livro que quis fazer, não mudaria nada.

O que a fama te proporcionou, e tirou?

A literatura me proporcionou muito encontros, conheci muitas pessoas, tenho tido trocas maravilhosas, muitas reflexões, muita diversão e arte, afeto, poesia e horinhas de saúde. E me tornei uma leitora melhor, isso talvez tenha sido o maior acontecimento de todos. Por outro lado, tenho sido muito demandada e o excesso de atividades tem tirado meu tempo de escrita e de leitura. Já entendi que vou precisar pôr um limite e estou me organizando para isso. Estou com uma história querendo acontecer e quero me colocar disponível para ela.

O que a escrita significa para você?

Quando estou escrevendo sinto que não gostaria de estar fazendo outra coisa, entro em profundo envolvimento, salivo. Mesmo nas horas de angústia, quando não encontro o caminho, a palavra, o sentido, quero estar ali. Vivo com muita intensidade o processo criativo, e nos dias bons, quando bateio um diamante, experimento aquele breve e inesquecível instante em que a vida está completa, sobre a qual Cecília Meireles fala em seu poema Motivo. Acho que sou poeta embora faça prosa.

O que mobiliza sua escrita? De onde vêm as histórias?

Minhas histórias nascem de um acontecimento que me afeta, me assombra, me provoca. Olho para esse acontecimento com a necessidade de imaginar o que veio antes, o que virá depois e assim vou encontrando uma história. A condição humana, nossas potências de bem e de mal, e como isso vai se encaminhando a partir das nossas circunstâncias (a família que pertencemos, os pequenos acontecimentos que se tornam imensos), têm sido objeto de inquietação e curiosidade. Talvez eu escreva para dar conta da deriva da condição humana que me comove e angustia.

O que importa na literatura?

O que importa na literatura, em minha perspectiva de autora, é o processo criativo, o mergulho. É a adesão com o que estou fazendo, o instante de alinhamento.

O que você leva da publicidade para a sua literatura?

A publicidade me deu um grande treino com a síntese, a precisão das palavras. O ritmo, a frase capaz de dizer muito com pouco.

E da psicanálise?

A psicanálise tem me dado muitas perguntas. Pensar o gesto, o ato, o ser, com a possibilidade de não reduzir a complexidade de existir, em nome da tentação de um mundo que explica tudo, compreende tudo, controla tudo.

E como leitora, o que procura em um livro, na experiência da leitura?

Procuro na leitura ser fisgada. E depois de me tornar uma escritora, procuro a liberdade do autor, alguma coisa que me faça envolvida, não só pela história, mas pelo jeito que ela é contada.

Uma das questões de Tudo é Rio é o perdão. Há quem veja o livro como machista. Numa sociedade que luta tanto contra o feminicídio, o que você quis mostrar com sua história?

Em um país onde a violência de gênero é imensa e a impunidade também, Tudo é Rio atrita ao colocar a questão do perdão. As pessoas que não aceitam o perdão narrado no desfecho do livro, talvez pensem que perdoar é uma espécie de “deixa pra lá”, vamos fingir que não aconteceu. Estas pessoas acham imperdoável o perdão que acontece na história, e leem um “viveram felizes para sempre” ao final do livro. Muitas outras pessoas, e eu me incluo neste grupo, entendem que o perdão é a única possibilidade de cessar a agressão e tirar a vítima das mãos de um agressor. Este grupo, diferente do primeiro, costuma perceber que o final do livro está em aberto, que o próximo passo traz a possibilidade dos abismos, como está dito no último parágrafo, ao mesmo tempo que a vida, o desejo de viver, está de volta com toda a sua umidade e possiblidades. Mas talvez o que realmente importe é que Tudo é rio tornou-se uma ocasião de conversar sobre a violência de gênero e é muito legal quando um livro passa a fazer parte das conversas que são relevantes para as pessoas.

Se você não tivesse travado depois de criar a cena de violência de Venâncio e tivesse escrito o desfecho quando começou a história, aos 33 anos, ele poderia ter sido outro? O que aprendeu sobre perdão de lá para cá?

O que tenho aprendido sobre o perdão é que quero viver em um mundo onde ele exista.

Entrevista por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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