Carolina Maria de Jesus e a briga dos herdeiros pelos bens e direitos autorais; entenda


Netas e filha de Carolina Maria de Jesus e editora Ática falam sobre disputa iniciada em 2016 após a morte do filho da autora de 'Quarto de Despejo'

Por Maria Fernanda Rodrigues

A escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) teve três filhos: Vera Eunice de Jesus Lima, a caçula, João José de Jesus, que morreu em 1977 sem deixar herdeiros, e José Carlos de Jesus, que morreu atropelado em 2016 e deixou oficialmente quatro filhas. É Vera Eunice quem tem cuidado da obra da mãe - uma promessa que, ela contou em entrevista recente ao Estadão, foi feita à autora de Quarto de Despejo. Após a morte de José Carlos, a administração dos direitos autorais e a burocracia para que pudessem receber sua parte passaram a incomodar as netas de Carolina Maria de Jesus.

Carolina Maria de Jesus ficou conhecida com a ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu na favela do Canindé Foto: Acervo Audálio Dantas

Adriana Jesus, sobrinha de Vera Eunice, conta ao Estadão que existe um processo judicial em andamento contra a editora Ática, do Grupo Somos Educação, que publica Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada. Esse é o livro mais famoso e mais vendido de Carolina, obra que revelou a catadora-escritora descoberta pelo jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, que foi publicado em 1960, ganhou tradução em 16 países e entrou em listas de leitura obrigatória de vestibular.

continua após a publicidade

“Estamos movendo o processo contra editora Ática, que hoje é Somos. É ela que detém os direitos do livro, de filme, teatro. Depois de 2016, a Vera assinou muitos contratos e não recebemos nada. Então, eles vão ter que ressarcir tudo”, diz Adriana.

Segundo Luana Romani, advogada das herdeiras, a questão é mais complexa e diz respeito ao tratamento desigual dado aos herdeiros. Segundo ela, José Carlos participou de alguma forma das coisas da mãe quando estava vivo. O contrato mais recente com a editora, assinado em 2006, tinha inclusive a assinatura dele e valia por 10 anos, renováveis por outros 10 caso não houvesse manifestação. Assim, até pelo menos 2026 o livro fica com a editora.

As netas de Carolina Maria de Jesus, da esquerda:Adriana,Lilian,Elisa eEliane Foto: Acervo Adriana Jesus
continua após a publicidade

Com a morte dele, suas herdeiras não tiveram acesso a esses direitos que ele dividia com a irmã Vera Eunice. “A Somos tem um contrato que estamos discutindo na justiça. José Carlos morreu em 2016 e a editora criou muitas situações e não quis pagar para a Adriana nem para as irmãs. Depois que protocolamos uma ação para rescindir o contrato da Somos, aí sim eles foram no inventário do José Carlos e fizeram um depósito”, conta a advogada.

Ela continua: “A questão é: por que as meninas precisam pagar impostos de inventáriopara ter acesso à parte delas e Vera Eunice desde sempre recebe os direitos autorais pela Somos Educação e nunca pagou um tostão em relação ao imposto causa mortis dos bens deixados pela mãe dela? A empresa trata de modo desigual os herdeiros. Para elas receberem o valor de 2016 para cá, primeiro elas vão ter que pagar imposto.”

Pagando o imposto, elas poderão ter acesso ao valor de R$ 240.493,39 depositado em juízo pela Somos no dia 11 de abril.

continua após a publicidade

“O tratamento tem que ser igualitário. Se a Somos paga para a Vera, deveria estar pagando, sem necessidade de processo, para as netas que têm toda a documentação que comprova a familiaridade”, diz. 

Pagamento de direitos autorais em juízo

Procurada pelo Estadão, a editora respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que “não trata de maneira desigual nenhuma das partes herdeiras da autora Carolina Maria de Jesus”. A nota segue: “Os valores referentes aos direitos autorais da obra Quarto de Despejo são depositados de forma igualitária às partes. Com o falecimento do Sr. José Carlos, e a ausência de documentação comprobatória dos seus herdeiros, a editora não teve alternativa senão proceder com o pagamento dos direitos aos herdeiros em juízo, como pede a legislação. A Editora Ática segue à disposição e aguarda regularização judicial para transferência a quem de direito o mais rápido possível”.

continua após a publicidade

“Elas não têm 20 mil para o imposto? Uma delas mora em sobrado aqui perto. Nenhuma mora em comunidade, favela. Elas ganharam R$ 200 mil limpos do Instituto Moreira Salles. Não estão nesse miserê todo. Miserê vivi eu com a minha mãe. Nossa vida foi de fome, fome, fome”, diz Vera Eunice, professora aposentada que ainda dá aulas. Segundo ela, a família viveu apenas três anos com tranquilidade financeira. Antes e um pouco depois da publicação de Quarto de Despejo, viveram precariamente.

A escritora Carolina Maria de Jesus com Vera Eunice, em abril de 1961 Foto: Acervo Estadão

Obra de Carolina Maria de Jesus é 'redescoberta'

continua após a publicidade

O dinheiro a que a filha de Carolina Maria de Jesus se refere diz respeito à exposição feita recentemente pelo IMS em homenagem à escritora. Foram pagos, segundo Adriana, R$ 46 mil para cada uma das netas. A mostra coincidiu com o início da reedição da obra de Carolina pela Companhia das Letras - que adquiriu os direitos dos livros exceto de Quarto de Despejo, da Ática, e de Diário de Bitita, da Editora Sesi-SP. Ainda segunda Adriana, a editora pagou R$ 8 mil para cada uma (metade em 2020 e a outra metade em 2021). 

Segundo ela, o dinheiro já acabou e algumas das netas de Carolina Maria de Jesus estão passando dificuldades - ela contou que uma das irmãs, que mora em Santa Catarina, se alimenta de restos que pega na feira e na semana passada só tinha fubá para dar para as filhas.

continua após a publicidade

São, no momento, três processos em andamento por iniciativa das irmãs, segundo a advogada: o inventário de Carolina Maria de Jesus, o inventário de José Carlos e essa ação contra a Somos Educação em que pedem “a rescisão de contrato dos direitos de uso do nome de Carolina”.

Direitos autorais e participação nas decisões

As netas querem os direitos autorais de Quarto de Despejo e também resolver a questão do sítio de Carolina em Parelheiros e do inventário. Mas pedem, também, que sejam incluídas nas decisões e projetos.

“Nosso pedido é para que a Vera passe os contratos, os filmes, tudo o que for relacionado à nossa avó para a gente. Ela não aceita que a gente, filhas do meio-irmão, como ela chama, assine nada da mãe dela. A Vera fez sozinha uma estátua e só ficamos sabendo pelas redes sociais. Ela assinou contrato sozinha para regravação de músicas, sem passar para a gente. Estamos ficando de fora de tudo da vó. Ela alega que a gente não se interessa, mas isso não é verdade. Todo mundo vai atrás de Vera Eunice, ninguém sabe da gente. Só queremos o que é nosso. Depois da pandemia, todo mundo ficou sem emprego. Só queremos o que é nosso por direito, nada mais.”

Ela finaliza: “Tudo seria diferente se a Vera entrasse em contato com a gente e dissesse: olha, meninas, tem o lançamento tal, estão querendo pagar tanto, eu aceito e vocês? Aí todo mundo assina e fica bem.”

Inventário e herdeiros de Carolina Maria de Jesus

Sobre o inventário de Carolina Maria de Jesus, Vera Eunice disse ao Estadão que sua advogada está trabalhando nisso. “Vieram com essa história de inventário. Eu tinha 21 anos quando minha mãe morreu e nenhum tostão para enterrá-la. Precisei pedir emprestado e só paguei um ano depois. Um dos meus irmãos estava muito doente e morreu logo depois. O José Carlos só estava preocupado com a família. Eu questiono: por que ele não fez o inventário se ele era quatro anos mais velho do que eu? Eu nem sabia que tinha que fazer inventário. A gente não tinha dinheiro, nunca tinha perdido ninguém. A gente só corria atrás de comida”, diz Vera Eunice, mãe de cinco filhos.

Até a morte do irmão, em 2016, ela conta que tudo era feito em comum acordo.

A escritora Carolina Maria de Jesus, autora do sucesso 'Quarto de Despejo'. Foto: Arquivo/Estadão

Quanto ao sítio, Vera garante que seu marido comprou a parte do irmão e que ela tem os recibos dos pagamentos. Sua ideia é fazer de lá um lugar em homenagem à mãe, um lugar para as pessoas visitarem. Ela também recebeu o pagamento feito pelo IMS e pela Companhia das Letras, e conta que usou parte para consertar o telhado da casa do sítio.

Das quatro netas de Carolina, apenas Lilian conheceu a avó. Ela tem hoje 49 anos. As outras herdeiras são Eliane, de 48 anos, Elisa, de 47, e a Adriana, de 41. José Carlos teve ainda outros três filhos com outra mulher. Segundo Adriana, uma morreu, outro foi adotado por outra família e um terceiro entrou com processo para reconhecimento de paternidade. Dependendo do resultado, essa história ganha um novo personagem.

A escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) teve três filhos: Vera Eunice de Jesus Lima, a caçula, João José de Jesus, que morreu em 1977 sem deixar herdeiros, e José Carlos de Jesus, que morreu atropelado em 2016 e deixou oficialmente quatro filhas. É Vera Eunice quem tem cuidado da obra da mãe - uma promessa que, ela contou em entrevista recente ao Estadão, foi feita à autora de Quarto de Despejo. Após a morte de José Carlos, a administração dos direitos autorais e a burocracia para que pudessem receber sua parte passaram a incomodar as netas de Carolina Maria de Jesus.

Carolina Maria de Jesus ficou conhecida com a ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu na favela do Canindé Foto: Acervo Audálio Dantas

Adriana Jesus, sobrinha de Vera Eunice, conta ao Estadão que existe um processo judicial em andamento contra a editora Ática, do Grupo Somos Educação, que publica Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada. Esse é o livro mais famoso e mais vendido de Carolina, obra que revelou a catadora-escritora descoberta pelo jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, que foi publicado em 1960, ganhou tradução em 16 países e entrou em listas de leitura obrigatória de vestibular.

“Estamos movendo o processo contra editora Ática, que hoje é Somos. É ela que detém os direitos do livro, de filme, teatro. Depois de 2016, a Vera assinou muitos contratos e não recebemos nada. Então, eles vão ter que ressarcir tudo”, diz Adriana.

Segundo Luana Romani, advogada das herdeiras, a questão é mais complexa e diz respeito ao tratamento desigual dado aos herdeiros. Segundo ela, José Carlos participou de alguma forma das coisas da mãe quando estava vivo. O contrato mais recente com a editora, assinado em 2006, tinha inclusive a assinatura dele e valia por 10 anos, renováveis por outros 10 caso não houvesse manifestação. Assim, até pelo menos 2026 o livro fica com a editora.

As netas de Carolina Maria de Jesus, da esquerda:Adriana,Lilian,Elisa eEliane Foto: Acervo Adriana Jesus

Com a morte dele, suas herdeiras não tiveram acesso a esses direitos que ele dividia com a irmã Vera Eunice. “A Somos tem um contrato que estamos discutindo na justiça. José Carlos morreu em 2016 e a editora criou muitas situações e não quis pagar para a Adriana nem para as irmãs. Depois que protocolamos uma ação para rescindir o contrato da Somos, aí sim eles foram no inventário do José Carlos e fizeram um depósito”, conta a advogada.

Ela continua: “A questão é: por que as meninas precisam pagar impostos de inventáriopara ter acesso à parte delas e Vera Eunice desde sempre recebe os direitos autorais pela Somos Educação e nunca pagou um tostão em relação ao imposto causa mortis dos bens deixados pela mãe dela? A empresa trata de modo desigual os herdeiros. Para elas receberem o valor de 2016 para cá, primeiro elas vão ter que pagar imposto.”

Pagando o imposto, elas poderão ter acesso ao valor de R$ 240.493,39 depositado em juízo pela Somos no dia 11 de abril.

“O tratamento tem que ser igualitário. Se a Somos paga para a Vera, deveria estar pagando, sem necessidade de processo, para as netas que têm toda a documentação que comprova a familiaridade”, diz. 

Pagamento de direitos autorais em juízo

Procurada pelo Estadão, a editora respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que “não trata de maneira desigual nenhuma das partes herdeiras da autora Carolina Maria de Jesus”. A nota segue: “Os valores referentes aos direitos autorais da obra Quarto de Despejo são depositados de forma igualitária às partes. Com o falecimento do Sr. José Carlos, e a ausência de documentação comprobatória dos seus herdeiros, a editora não teve alternativa senão proceder com o pagamento dos direitos aos herdeiros em juízo, como pede a legislação. A Editora Ática segue à disposição e aguarda regularização judicial para transferência a quem de direito o mais rápido possível”.

“Elas não têm 20 mil para o imposto? Uma delas mora em sobrado aqui perto. Nenhuma mora em comunidade, favela. Elas ganharam R$ 200 mil limpos do Instituto Moreira Salles. Não estão nesse miserê todo. Miserê vivi eu com a minha mãe. Nossa vida foi de fome, fome, fome”, diz Vera Eunice, professora aposentada que ainda dá aulas. Segundo ela, a família viveu apenas três anos com tranquilidade financeira. Antes e um pouco depois da publicação de Quarto de Despejo, viveram precariamente.

A escritora Carolina Maria de Jesus com Vera Eunice, em abril de 1961 Foto: Acervo Estadão

Obra de Carolina Maria de Jesus é 'redescoberta'

O dinheiro a que a filha de Carolina Maria de Jesus se refere diz respeito à exposição feita recentemente pelo IMS em homenagem à escritora. Foram pagos, segundo Adriana, R$ 46 mil para cada uma das netas. A mostra coincidiu com o início da reedição da obra de Carolina pela Companhia das Letras - que adquiriu os direitos dos livros exceto de Quarto de Despejo, da Ática, e de Diário de Bitita, da Editora Sesi-SP. Ainda segunda Adriana, a editora pagou R$ 8 mil para cada uma (metade em 2020 e a outra metade em 2021). 

Segundo ela, o dinheiro já acabou e algumas das netas de Carolina Maria de Jesus estão passando dificuldades - ela contou que uma das irmãs, que mora em Santa Catarina, se alimenta de restos que pega na feira e na semana passada só tinha fubá para dar para as filhas.

São, no momento, três processos em andamento por iniciativa das irmãs, segundo a advogada: o inventário de Carolina Maria de Jesus, o inventário de José Carlos e essa ação contra a Somos Educação em que pedem “a rescisão de contrato dos direitos de uso do nome de Carolina”.

Direitos autorais e participação nas decisões

As netas querem os direitos autorais de Quarto de Despejo e também resolver a questão do sítio de Carolina em Parelheiros e do inventário. Mas pedem, também, que sejam incluídas nas decisões e projetos.

“Nosso pedido é para que a Vera passe os contratos, os filmes, tudo o que for relacionado à nossa avó para a gente. Ela não aceita que a gente, filhas do meio-irmão, como ela chama, assine nada da mãe dela. A Vera fez sozinha uma estátua e só ficamos sabendo pelas redes sociais. Ela assinou contrato sozinha para regravação de músicas, sem passar para a gente. Estamos ficando de fora de tudo da vó. Ela alega que a gente não se interessa, mas isso não é verdade. Todo mundo vai atrás de Vera Eunice, ninguém sabe da gente. Só queremos o que é nosso. Depois da pandemia, todo mundo ficou sem emprego. Só queremos o que é nosso por direito, nada mais.”

Ela finaliza: “Tudo seria diferente se a Vera entrasse em contato com a gente e dissesse: olha, meninas, tem o lançamento tal, estão querendo pagar tanto, eu aceito e vocês? Aí todo mundo assina e fica bem.”

Inventário e herdeiros de Carolina Maria de Jesus

Sobre o inventário de Carolina Maria de Jesus, Vera Eunice disse ao Estadão que sua advogada está trabalhando nisso. “Vieram com essa história de inventário. Eu tinha 21 anos quando minha mãe morreu e nenhum tostão para enterrá-la. Precisei pedir emprestado e só paguei um ano depois. Um dos meus irmãos estava muito doente e morreu logo depois. O José Carlos só estava preocupado com a família. Eu questiono: por que ele não fez o inventário se ele era quatro anos mais velho do que eu? Eu nem sabia que tinha que fazer inventário. A gente não tinha dinheiro, nunca tinha perdido ninguém. A gente só corria atrás de comida”, diz Vera Eunice, mãe de cinco filhos.

Até a morte do irmão, em 2016, ela conta que tudo era feito em comum acordo.

A escritora Carolina Maria de Jesus, autora do sucesso 'Quarto de Despejo'. Foto: Arquivo/Estadão

Quanto ao sítio, Vera garante que seu marido comprou a parte do irmão e que ela tem os recibos dos pagamentos. Sua ideia é fazer de lá um lugar em homenagem à mãe, um lugar para as pessoas visitarem. Ela também recebeu o pagamento feito pelo IMS e pela Companhia das Letras, e conta que usou parte para consertar o telhado da casa do sítio.

Das quatro netas de Carolina, apenas Lilian conheceu a avó. Ela tem hoje 49 anos. As outras herdeiras são Eliane, de 48 anos, Elisa, de 47, e a Adriana, de 41. José Carlos teve ainda outros três filhos com outra mulher. Segundo Adriana, uma morreu, outro foi adotado por outra família e um terceiro entrou com processo para reconhecimento de paternidade. Dependendo do resultado, essa história ganha um novo personagem.

A escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) teve três filhos: Vera Eunice de Jesus Lima, a caçula, João José de Jesus, que morreu em 1977 sem deixar herdeiros, e José Carlos de Jesus, que morreu atropelado em 2016 e deixou oficialmente quatro filhas. É Vera Eunice quem tem cuidado da obra da mãe - uma promessa que, ela contou em entrevista recente ao Estadão, foi feita à autora de Quarto de Despejo. Após a morte de José Carlos, a administração dos direitos autorais e a burocracia para que pudessem receber sua parte passaram a incomodar as netas de Carolina Maria de Jesus.

Carolina Maria de Jesus ficou conhecida com a ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu na favela do Canindé Foto: Acervo Audálio Dantas

Adriana Jesus, sobrinha de Vera Eunice, conta ao Estadão que existe um processo judicial em andamento contra a editora Ática, do Grupo Somos Educação, que publica Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada. Esse é o livro mais famoso e mais vendido de Carolina, obra que revelou a catadora-escritora descoberta pelo jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, que foi publicado em 1960, ganhou tradução em 16 países e entrou em listas de leitura obrigatória de vestibular.

“Estamos movendo o processo contra editora Ática, que hoje é Somos. É ela que detém os direitos do livro, de filme, teatro. Depois de 2016, a Vera assinou muitos contratos e não recebemos nada. Então, eles vão ter que ressarcir tudo”, diz Adriana.

Segundo Luana Romani, advogada das herdeiras, a questão é mais complexa e diz respeito ao tratamento desigual dado aos herdeiros. Segundo ela, José Carlos participou de alguma forma das coisas da mãe quando estava vivo. O contrato mais recente com a editora, assinado em 2006, tinha inclusive a assinatura dele e valia por 10 anos, renováveis por outros 10 caso não houvesse manifestação. Assim, até pelo menos 2026 o livro fica com a editora.

As netas de Carolina Maria de Jesus, da esquerda:Adriana,Lilian,Elisa eEliane Foto: Acervo Adriana Jesus

Com a morte dele, suas herdeiras não tiveram acesso a esses direitos que ele dividia com a irmã Vera Eunice. “A Somos tem um contrato que estamos discutindo na justiça. José Carlos morreu em 2016 e a editora criou muitas situações e não quis pagar para a Adriana nem para as irmãs. Depois que protocolamos uma ação para rescindir o contrato da Somos, aí sim eles foram no inventário do José Carlos e fizeram um depósito”, conta a advogada.

Ela continua: “A questão é: por que as meninas precisam pagar impostos de inventáriopara ter acesso à parte delas e Vera Eunice desde sempre recebe os direitos autorais pela Somos Educação e nunca pagou um tostão em relação ao imposto causa mortis dos bens deixados pela mãe dela? A empresa trata de modo desigual os herdeiros. Para elas receberem o valor de 2016 para cá, primeiro elas vão ter que pagar imposto.”

Pagando o imposto, elas poderão ter acesso ao valor de R$ 240.493,39 depositado em juízo pela Somos no dia 11 de abril.

“O tratamento tem que ser igualitário. Se a Somos paga para a Vera, deveria estar pagando, sem necessidade de processo, para as netas que têm toda a documentação que comprova a familiaridade”, diz. 

Pagamento de direitos autorais em juízo

Procurada pelo Estadão, a editora respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que “não trata de maneira desigual nenhuma das partes herdeiras da autora Carolina Maria de Jesus”. A nota segue: “Os valores referentes aos direitos autorais da obra Quarto de Despejo são depositados de forma igualitária às partes. Com o falecimento do Sr. José Carlos, e a ausência de documentação comprobatória dos seus herdeiros, a editora não teve alternativa senão proceder com o pagamento dos direitos aos herdeiros em juízo, como pede a legislação. A Editora Ática segue à disposição e aguarda regularização judicial para transferência a quem de direito o mais rápido possível”.

“Elas não têm 20 mil para o imposto? Uma delas mora em sobrado aqui perto. Nenhuma mora em comunidade, favela. Elas ganharam R$ 200 mil limpos do Instituto Moreira Salles. Não estão nesse miserê todo. Miserê vivi eu com a minha mãe. Nossa vida foi de fome, fome, fome”, diz Vera Eunice, professora aposentada que ainda dá aulas. Segundo ela, a família viveu apenas três anos com tranquilidade financeira. Antes e um pouco depois da publicação de Quarto de Despejo, viveram precariamente.

A escritora Carolina Maria de Jesus com Vera Eunice, em abril de 1961 Foto: Acervo Estadão

Obra de Carolina Maria de Jesus é 'redescoberta'

O dinheiro a que a filha de Carolina Maria de Jesus se refere diz respeito à exposição feita recentemente pelo IMS em homenagem à escritora. Foram pagos, segundo Adriana, R$ 46 mil para cada uma das netas. A mostra coincidiu com o início da reedição da obra de Carolina pela Companhia das Letras - que adquiriu os direitos dos livros exceto de Quarto de Despejo, da Ática, e de Diário de Bitita, da Editora Sesi-SP. Ainda segunda Adriana, a editora pagou R$ 8 mil para cada uma (metade em 2020 e a outra metade em 2021). 

Segundo ela, o dinheiro já acabou e algumas das netas de Carolina Maria de Jesus estão passando dificuldades - ela contou que uma das irmãs, que mora em Santa Catarina, se alimenta de restos que pega na feira e na semana passada só tinha fubá para dar para as filhas.

São, no momento, três processos em andamento por iniciativa das irmãs, segundo a advogada: o inventário de Carolina Maria de Jesus, o inventário de José Carlos e essa ação contra a Somos Educação em que pedem “a rescisão de contrato dos direitos de uso do nome de Carolina”.

Direitos autorais e participação nas decisões

As netas querem os direitos autorais de Quarto de Despejo e também resolver a questão do sítio de Carolina em Parelheiros e do inventário. Mas pedem, também, que sejam incluídas nas decisões e projetos.

“Nosso pedido é para que a Vera passe os contratos, os filmes, tudo o que for relacionado à nossa avó para a gente. Ela não aceita que a gente, filhas do meio-irmão, como ela chama, assine nada da mãe dela. A Vera fez sozinha uma estátua e só ficamos sabendo pelas redes sociais. Ela assinou contrato sozinha para regravação de músicas, sem passar para a gente. Estamos ficando de fora de tudo da vó. Ela alega que a gente não se interessa, mas isso não é verdade. Todo mundo vai atrás de Vera Eunice, ninguém sabe da gente. Só queremos o que é nosso. Depois da pandemia, todo mundo ficou sem emprego. Só queremos o que é nosso por direito, nada mais.”

Ela finaliza: “Tudo seria diferente se a Vera entrasse em contato com a gente e dissesse: olha, meninas, tem o lançamento tal, estão querendo pagar tanto, eu aceito e vocês? Aí todo mundo assina e fica bem.”

Inventário e herdeiros de Carolina Maria de Jesus

Sobre o inventário de Carolina Maria de Jesus, Vera Eunice disse ao Estadão que sua advogada está trabalhando nisso. “Vieram com essa história de inventário. Eu tinha 21 anos quando minha mãe morreu e nenhum tostão para enterrá-la. Precisei pedir emprestado e só paguei um ano depois. Um dos meus irmãos estava muito doente e morreu logo depois. O José Carlos só estava preocupado com a família. Eu questiono: por que ele não fez o inventário se ele era quatro anos mais velho do que eu? Eu nem sabia que tinha que fazer inventário. A gente não tinha dinheiro, nunca tinha perdido ninguém. A gente só corria atrás de comida”, diz Vera Eunice, mãe de cinco filhos.

Até a morte do irmão, em 2016, ela conta que tudo era feito em comum acordo.

A escritora Carolina Maria de Jesus, autora do sucesso 'Quarto de Despejo'. Foto: Arquivo/Estadão

Quanto ao sítio, Vera garante que seu marido comprou a parte do irmão e que ela tem os recibos dos pagamentos. Sua ideia é fazer de lá um lugar em homenagem à mãe, um lugar para as pessoas visitarem. Ela também recebeu o pagamento feito pelo IMS e pela Companhia das Letras, e conta que usou parte para consertar o telhado da casa do sítio.

Das quatro netas de Carolina, apenas Lilian conheceu a avó. Ela tem hoje 49 anos. As outras herdeiras são Eliane, de 48 anos, Elisa, de 47, e a Adriana, de 41. José Carlos teve ainda outros três filhos com outra mulher. Segundo Adriana, uma morreu, outro foi adotado por outra família e um terceiro entrou com processo para reconhecimento de paternidade. Dependendo do resultado, essa história ganha um novo personagem.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.