Carpinejar: ‘Precisamos falar de nossos mortos, com os nossos mortos’, diz autor de ‘Manual do Luto’


Cronista gaúcho escreve sobre morte, culpa e saudade e sugere que a melhor forma de atravessar o luto é cumprindo algo que a pessoa que morreu deixou por fazer. Livro é está no topo dos mais vendidos da Amazon no Brasil

Por Maria Fernanda Rodrigues
Foto: DIV
Entrevista comFabrício CarpinejarEscritor

Manual do Luto, o novo livro de Fabricio Carpinejar, é, na definição do escritor, um ensaio sobre todas as dores do mundo - a perda dos pais, irmãos, filhos, amigos, companheiros. Autor de Depois é Nunca (2021), sua resposta à pandemia de covid-19, o cronista gaúcho volta ao tema da morte nesta nova obra que, em menos de um mês nas livrarias, vendeu quase 10 mil exemplares e está no topo da lista de mais vendidos da Amazon.

Carpinejar faz 51 anos nesta segunda-feira, 23. Nascido em Caxias do Sul, filho dos escritores Carlos Nejar, imortal da Academia Brasileira de Letras, e Maria Carpi, e colunista da Zero Hora, ele já publicou 51 livros, entre volumes de crônica e poesia e títulos para crianças que, somados, atingiram a marca de 850 mil exemplares vendidos.

Em Manual do Luto, lançado agora pela Bertrand, o autor reúne frases, conselhos e consolos para pessoas que estão vivendo uma perda ou procurando formas de conviver com ela. Sua ideia, ele conta, era combater o preconceito que cerca os enlutados e contestar algumas “inverdades” sobre o processo de elaboração do luto.

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Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri”

Carpinejar

“A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece”, diz Carpinejar, autor ainda de Cuide dos Seus Pais Antes Que Seja Tarde e de Me Ajude a Chorar, nesta entrevista por e-mail ao Estadão.

Trata-se de um livro que parte de suas inquietações sobre vida e morte, e sobre relações, mas que dialoga com outro projeto dele. Carpinejar é parceiro de uma empresa que atua no segmento de cemitérios, crematórios e serviços funerários e escreve, semanalmente, uma carta que é enviada gratuitamente aos membros do Clube dos Corações Solidários.

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Carpinejar é autor de 51 livros, incluindo 'Manual do Luto, o mais recente, e 'Para Onde Vai o Amor', 'Família é Tudo' e 'Depois é Nunca' Foto: Annick Melo

Se ele pudesse dar um conselho aos leitores, seria: “Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado”. Confira a entrevista.

Qual foi o seu objetivo ao escrever livros como Manual do Luto e Depois é Nunca? Como se preparou para isso? E qual é a relação deles com o projeto Clube dos Corações Solidários?

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Ambos partem do princípio de que nenhum sofrimento é bobagem. Não menospreze o que é psicológico. O psicológico é muito mais potente do que o físico. Depois é nunca foi uma resposta imediata ao período de tantas perdas da covid. Nunca a ameaça de morte esteve tão onipresente. Foi quando eu me debrucei sobre a solidão da saudade. Você não tem como dividir a saudade com mais ninguém. Ela é particular, só você lembra de alguém daquele jeito. Seu repertório de evocação é construído de detalhes e cenas absolutamente individuais. O que é valioso para você talvez não seja importante para o outro.

Em seguida, eu me aprofundei nas implicações do luto com o Manual. Quis escrever um livro com a intimidade sussurrada de cartas, para combater o preconceito que ronda o enlutado, que não tem nem tempo nem espaço para sofrer, para sentir falta de alguém. É coibido a se recompor rapidamente, a seguir adiante, como se o passado não existisse. A amnésia de viver para frente (jamais para os lados ou para trás) nos esvazia de gratidão.

No Clube dos Corações Solidários, grupo gratuito de cartas, com 28 mil inscritos, encontrei a entonação adequada para as reflexões. A correspondência semanal determinou o espírito fluido do livro.

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O que quer mostrar aos leitores e o que aprendeu no processo de elaboração desses livros?

Enfrentar duas inverdades centrais, que vigoram para evitar o trabalho de consolo, de conforto, de apoio e amparo permanente aos enlutados. Por pressa e preguiça, fizemos vista grossa para o sofrimento recorrente de quem perdeu alguém, que necessita verbalizar a sua história, as experiências marcantes com o outro. A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece.

O luto muda os nossos olhos para sempre. Você poderia se recuperar do luto se permanecesse o mesmo antes da perda. Como você se transformou, impactado pela ausência do ente querido, não tem como voltar a ser quem era antes. O luto é para a vida inteira, não é passageiro, não é uma doença, não é curável. A diferença é que, no começo do processo, você é carregado pela dor, depois é você que a carrega.

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Parece que o luto passa simplesmente porque as pessoas são proibidas de externá-lo.

Quem você era no começo da sua carreira, e quem você é hoje? O que buscava e o que busca na literatura?

Sinceridade emocional. Você vai aprendendo a se essencializar com o tempo, a fazer uma bagagem cada vez menor. Até se conformar com a roupa do corpo. Tudo o que li ou estudei me serviu para não ostentar na linguagem, para uma comunicação feita da singeleza. Eruditos são afetados, sábios são simples.

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Como você classifica a sua literatura? E como classifica Manual do Luto, em termos de gênero e conteúdo?

Conficções. Confissões como se fossem ficções. A memória é invadida pela imaginação. Não existe memória pura. Você vai fantasiando como forma de suportar os fatos, como forma gradual de aceitar a realidade. Manual do Luto é ensaio sobre todas as dores do mundo: perda dos pais, do irmão, do filho, dos amigos, do marido ou esposa. Tem um tanto de cotidiano. Tem um outro tanto de intuição.

Manual do Luto está neste momento em primeiro lugar entre os mais vendidos da Amazon. O que acha que isso significa?

Que as pessoas estão com coragem de amar, sem se reduzir aos condicionamentos e censuras do tabu. É um equívoco o veto silencioso da homenagem. Como se a morte atrapalhasse nossa rotina. O que você mais quer da vida? Ser lembrado, não ser esquecido. Então, se não valorizarmos o luto, qualquer existência não terá sentido nenhum. Você será apagado logo ao morrer. Há aquela máxima “a pessoa só morre definitivamente quando ninguém mais menciona o nome dela”. Precisamos falar de nossos mortos, com os nossos mortos. Virar a página? Só se for para marcar a página, dobrar o canto dela para infindáveis releituras.

O que a morte significa para você?

Que ela está viva dentro de mim. Um dia ela morre em mim, e eu nasço do outro lado. Acredito que o corpo vira alma, e a alma vira corpo.

Já viveu esse processo de luto?

Experimento desde cedo, desde a infância, com a morte dos avós. Quando sonho com eles, tenho convicção de que me visitaram. Os conselhos continuam com os sonhos. Ao despertar, chego a sentir o cheiro de hortelã no quarto.

Você pensa na morte - na sua, na de pessoas próximas e amadas? E de que forma você se prepara para isso?

O medo de morrer nasce com o filho. Antes deles, eu era inconsequente. Passei a cuidar de mim para estar mais com eles, para não perder nenhum capítulo importante de suas formações. De que modo eu me preparo? Pela paz dos momentos imperfeitos. Esbarrões já são abraços para mim. Aproveito cada olhar, cada pequena pausa.

Não há rascunho. Uma vez escrito pode ser lido, pode ser vivido. Eu me importo em ser possível, em ser real, em estar ali sem nenhuma compensação ou adiamento. Só espera recompensas quem ainda não viveu. Nosso erro é somente querer o tempo idealizado, o tempo inteiro, as cédulas da existência, e assim desprezamos as moedas da existência, os 15 e 20 minutos. Se você não tem uma hora para encontrar um amigo ou familiar, acaba não indo. Perde de estar junto. Não se dá conta que o essencial é a intensidade, o tempo emocional, o quanto que consegue ficar atento e entregue por alguns minutos. Por exemplo, o recreio de uma escola tem 15, 20 minutos, e você lembrará que fazia tudo com ele: lanchava, jogava bola, usava o banheiro, estudava para prova, conversava com os amigos, recuperava um dever pendente. Quantos recreios estão inativos em nossa vida? Todo mundo tem 15 ou 20 minutos para dar, então não deixe de aparecer.

Existe vida após a morte para quem fica?

Sei que há várias vidas por aqui. Existem várias vidas antes de morrer. Você vai se interpretando diferente de acordo com o que procura. Ciclos são existências paralelas, vão nos ensinando a despedida.

Você fala sobre colocar o luto a favor de um propósito. Qual propósito?

Colocar a dor para trabalhar, por um propósito. Você pode realizar projetos inacabados daquele que partiu. Ou uma viagem, ou uma promessa feita durante a relação. Os projetos não morrem. A melhor forma de atravessar o luto é cumprindo algo que a pessoa deixou de fazer. Há a herança, o patrimônio material, e há o legado, o quanto os bons exemplos do falecido determinam as suas ações.

Estamos falando de morte, de como encarar a morte, mas tudo começa de uma certa forma com como vivemos a vida. Um luto pode ser recheado de saudade ou ser recheado de culpa, de arrependimento. Você concorda? Alguma receita para viver melhor a vida e encarar melhor as despedidas?

Culpa é se arrepender de tudo o que não aconteceu, de tudo o que deixou de fazer por medo, ou por comodismo, ou por uma miragem que teria todo o tempo pela frente. Saudade é feliz porque significa que esteve presente, tem o que lembrar. Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri.

Você escreve sobre relações - com a família, os pais, os amores, os amigos. E sua obra faz bastante sucesso. O que isso também quer dizer? As pessoas estão precisando mais de apoio, de orientação, de um caminho?

Eu tenho trabalhado para derrubar estigmas na família, a favor do cuidado dos pais na velhice, ou de um amor independente, alicerçado na gentileza. O romantismo cria uma ideia equivocada de dependência: fazer tudo junto a tal ponto que sacrifica o contato individual com os amigos e a família. No fim, você não tem mais nada seu, tampouco sabe quem se tornou na relação. O romantismo catequiza para a renúncia e sacrifício, você prova amor deixando de ser, abdicando de seus prazeres pessoais. Nele, erros constantes são pagos com a fiança das juras, presentes e surpresas. É conspirar contra a honestidade diária.

Se pudesse dizer uma coisa aos seus leitores, sobre vida e morte, o que seria?

Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado.

Manual do Luto, o novo livro de Fabricio Carpinejar, é, na definição do escritor, um ensaio sobre todas as dores do mundo - a perda dos pais, irmãos, filhos, amigos, companheiros. Autor de Depois é Nunca (2021), sua resposta à pandemia de covid-19, o cronista gaúcho volta ao tema da morte nesta nova obra que, em menos de um mês nas livrarias, vendeu quase 10 mil exemplares e está no topo da lista de mais vendidos da Amazon.

Carpinejar faz 51 anos nesta segunda-feira, 23. Nascido em Caxias do Sul, filho dos escritores Carlos Nejar, imortal da Academia Brasileira de Letras, e Maria Carpi, e colunista da Zero Hora, ele já publicou 51 livros, entre volumes de crônica e poesia e títulos para crianças que, somados, atingiram a marca de 850 mil exemplares vendidos.

Em Manual do Luto, lançado agora pela Bertrand, o autor reúne frases, conselhos e consolos para pessoas que estão vivendo uma perda ou procurando formas de conviver com ela. Sua ideia, ele conta, era combater o preconceito que cerca os enlutados e contestar algumas “inverdades” sobre o processo de elaboração do luto.

Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri”

Carpinejar

“A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece”, diz Carpinejar, autor ainda de Cuide dos Seus Pais Antes Que Seja Tarde e de Me Ajude a Chorar, nesta entrevista por e-mail ao Estadão.

Trata-se de um livro que parte de suas inquietações sobre vida e morte, e sobre relações, mas que dialoga com outro projeto dele. Carpinejar é parceiro de uma empresa que atua no segmento de cemitérios, crematórios e serviços funerários e escreve, semanalmente, uma carta que é enviada gratuitamente aos membros do Clube dos Corações Solidários.

Carpinejar é autor de 51 livros, incluindo 'Manual do Luto, o mais recente, e 'Para Onde Vai o Amor', 'Família é Tudo' e 'Depois é Nunca' Foto: Annick Melo

Se ele pudesse dar um conselho aos leitores, seria: “Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado”. Confira a entrevista.

Qual foi o seu objetivo ao escrever livros como Manual do Luto e Depois é Nunca? Como se preparou para isso? E qual é a relação deles com o projeto Clube dos Corações Solidários?

Ambos partem do princípio de que nenhum sofrimento é bobagem. Não menospreze o que é psicológico. O psicológico é muito mais potente do que o físico. Depois é nunca foi uma resposta imediata ao período de tantas perdas da covid. Nunca a ameaça de morte esteve tão onipresente. Foi quando eu me debrucei sobre a solidão da saudade. Você não tem como dividir a saudade com mais ninguém. Ela é particular, só você lembra de alguém daquele jeito. Seu repertório de evocação é construído de detalhes e cenas absolutamente individuais. O que é valioso para você talvez não seja importante para o outro.

Em seguida, eu me aprofundei nas implicações do luto com o Manual. Quis escrever um livro com a intimidade sussurrada de cartas, para combater o preconceito que ronda o enlutado, que não tem nem tempo nem espaço para sofrer, para sentir falta de alguém. É coibido a se recompor rapidamente, a seguir adiante, como se o passado não existisse. A amnésia de viver para frente (jamais para os lados ou para trás) nos esvazia de gratidão.

No Clube dos Corações Solidários, grupo gratuito de cartas, com 28 mil inscritos, encontrei a entonação adequada para as reflexões. A correspondência semanal determinou o espírito fluido do livro.

O que quer mostrar aos leitores e o que aprendeu no processo de elaboração desses livros?

Enfrentar duas inverdades centrais, que vigoram para evitar o trabalho de consolo, de conforto, de apoio e amparo permanente aos enlutados. Por pressa e preguiça, fizemos vista grossa para o sofrimento recorrente de quem perdeu alguém, que necessita verbalizar a sua história, as experiências marcantes com o outro. A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece.

O luto muda os nossos olhos para sempre. Você poderia se recuperar do luto se permanecesse o mesmo antes da perda. Como você se transformou, impactado pela ausência do ente querido, não tem como voltar a ser quem era antes. O luto é para a vida inteira, não é passageiro, não é uma doença, não é curável. A diferença é que, no começo do processo, você é carregado pela dor, depois é você que a carrega.

Parece que o luto passa simplesmente porque as pessoas são proibidas de externá-lo.

Quem você era no começo da sua carreira, e quem você é hoje? O que buscava e o que busca na literatura?

Sinceridade emocional. Você vai aprendendo a se essencializar com o tempo, a fazer uma bagagem cada vez menor. Até se conformar com a roupa do corpo. Tudo o que li ou estudei me serviu para não ostentar na linguagem, para uma comunicação feita da singeleza. Eruditos são afetados, sábios são simples.

Como você classifica a sua literatura? E como classifica Manual do Luto, em termos de gênero e conteúdo?

Conficções. Confissões como se fossem ficções. A memória é invadida pela imaginação. Não existe memória pura. Você vai fantasiando como forma de suportar os fatos, como forma gradual de aceitar a realidade. Manual do Luto é ensaio sobre todas as dores do mundo: perda dos pais, do irmão, do filho, dos amigos, do marido ou esposa. Tem um tanto de cotidiano. Tem um outro tanto de intuição.

Manual do Luto está neste momento em primeiro lugar entre os mais vendidos da Amazon. O que acha que isso significa?

Que as pessoas estão com coragem de amar, sem se reduzir aos condicionamentos e censuras do tabu. É um equívoco o veto silencioso da homenagem. Como se a morte atrapalhasse nossa rotina. O que você mais quer da vida? Ser lembrado, não ser esquecido. Então, se não valorizarmos o luto, qualquer existência não terá sentido nenhum. Você será apagado logo ao morrer. Há aquela máxima “a pessoa só morre definitivamente quando ninguém mais menciona o nome dela”. Precisamos falar de nossos mortos, com os nossos mortos. Virar a página? Só se for para marcar a página, dobrar o canto dela para infindáveis releituras.

O que a morte significa para você?

Que ela está viva dentro de mim. Um dia ela morre em mim, e eu nasço do outro lado. Acredito que o corpo vira alma, e a alma vira corpo.

Já viveu esse processo de luto?

Experimento desde cedo, desde a infância, com a morte dos avós. Quando sonho com eles, tenho convicção de que me visitaram. Os conselhos continuam com os sonhos. Ao despertar, chego a sentir o cheiro de hortelã no quarto.

Você pensa na morte - na sua, na de pessoas próximas e amadas? E de que forma você se prepara para isso?

O medo de morrer nasce com o filho. Antes deles, eu era inconsequente. Passei a cuidar de mim para estar mais com eles, para não perder nenhum capítulo importante de suas formações. De que modo eu me preparo? Pela paz dos momentos imperfeitos. Esbarrões já são abraços para mim. Aproveito cada olhar, cada pequena pausa.

Não há rascunho. Uma vez escrito pode ser lido, pode ser vivido. Eu me importo em ser possível, em ser real, em estar ali sem nenhuma compensação ou adiamento. Só espera recompensas quem ainda não viveu. Nosso erro é somente querer o tempo idealizado, o tempo inteiro, as cédulas da existência, e assim desprezamos as moedas da existência, os 15 e 20 minutos. Se você não tem uma hora para encontrar um amigo ou familiar, acaba não indo. Perde de estar junto. Não se dá conta que o essencial é a intensidade, o tempo emocional, o quanto que consegue ficar atento e entregue por alguns minutos. Por exemplo, o recreio de uma escola tem 15, 20 minutos, e você lembrará que fazia tudo com ele: lanchava, jogava bola, usava o banheiro, estudava para prova, conversava com os amigos, recuperava um dever pendente. Quantos recreios estão inativos em nossa vida? Todo mundo tem 15 ou 20 minutos para dar, então não deixe de aparecer.

Existe vida após a morte para quem fica?

Sei que há várias vidas por aqui. Existem várias vidas antes de morrer. Você vai se interpretando diferente de acordo com o que procura. Ciclos são existências paralelas, vão nos ensinando a despedida.

Você fala sobre colocar o luto a favor de um propósito. Qual propósito?

Colocar a dor para trabalhar, por um propósito. Você pode realizar projetos inacabados daquele que partiu. Ou uma viagem, ou uma promessa feita durante a relação. Os projetos não morrem. A melhor forma de atravessar o luto é cumprindo algo que a pessoa deixou de fazer. Há a herança, o patrimônio material, e há o legado, o quanto os bons exemplos do falecido determinam as suas ações.

Estamos falando de morte, de como encarar a morte, mas tudo começa de uma certa forma com como vivemos a vida. Um luto pode ser recheado de saudade ou ser recheado de culpa, de arrependimento. Você concorda? Alguma receita para viver melhor a vida e encarar melhor as despedidas?

Culpa é se arrepender de tudo o que não aconteceu, de tudo o que deixou de fazer por medo, ou por comodismo, ou por uma miragem que teria todo o tempo pela frente. Saudade é feliz porque significa que esteve presente, tem o que lembrar. Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri.

Você escreve sobre relações - com a família, os pais, os amores, os amigos. E sua obra faz bastante sucesso. O que isso também quer dizer? As pessoas estão precisando mais de apoio, de orientação, de um caminho?

Eu tenho trabalhado para derrubar estigmas na família, a favor do cuidado dos pais na velhice, ou de um amor independente, alicerçado na gentileza. O romantismo cria uma ideia equivocada de dependência: fazer tudo junto a tal ponto que sacrifica o contato individual com os amigos e a família. No fim, você não tem mais nada seu, tampouco sabe quem se tornou na relação. O romantismo catequiza para a renúncia e sacrifício, você prova amor deixando de ser, abdicando de seus prazeres pessoais. Nele, erros constantes são pagos com a fiança das juras, presentes e surpresas. É conspirar contra a honestidade diária.

Se pudesse dizer uma coisa aos seus leitores, sobre vida e morte, o que seria?

Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado.

Manual do Luto, o novo livro de Fabricio Carpinejar, é, na definição do escritor, um ensaio sobre todas as dores do mundo - a perda dos pais, irmãos, filhos, amigos, companheiros. Autor de Depois é Nunca (2021), sua resposta à pandemia de covid-19, o cronista gaúcho volta ao tema da morte nesta nova obra que, em menos de um mês nas livrarias, vendeu quase 10 mil exemplares e está no topo da lista de mais vendidos da Amazon.

Carpinejar faz 51 anos nesta segunda-feira, 23. Nascido em Caxias do Sul, filho dos escritores Carlos Nejar, imortal da Academia Brasileira de Letras, e Maria Carpi, e colunista da Zero Hora, ele já publicou 51 livros, entre volumes de crônica e poesia e títulos para crianças que, somados, atingiram a marca de 850 mil exemplares vendidos.

Em Manual do Luto, lançado agora pela Bertrand, o autor reúne frases, conselhos e consolos para pessoas que estão vivendo uma perda ou procurando formas de conviver com ela. Sua ideia, ele conta, era combater o preconceito que cerca os enlutados e contestar algumas “inverdades” sobre o processo de elaboração do luto.

Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri”

Carpinejar

“A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece”, diz Carpinejar, autor ainda de Cuide dos Seus Pais Antes Que Seja Tarde e de Me Ajude a Chorar, nesta entrevista por e-mail ao Estadão.

Trata-se de um livro que parte de suas inquietações sobre vida e morte, e sobre relações, mas que dialoga com outro projeto dele. Carpinejar é parceiro de uma empresa que atua no segmento de cemitérios, crematórios e serviços funerários e escreve, semanalmente, uma carta que é enviada gratuitamente aos membros do Clube dos Corações Solidários.

Carpinejar é autor de 51 livros, incluindo 'Manual do Luto, o mais recente, e 'Para Onde Vai o Amor', 'Família é Tudo' e 'Depois é Nunca' Foto: Annick Melo

Se ele pudesse dar um conselho aos leitores, seria: “Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado”. Confira a entrevista.

Qual foi o seu objetivo ao escrever livros como Manual do Luto e Depois é Nunca? Como se preparou para isso? E qual é a relação deles com o projeto Clube dos Corações Solidários?

Ambos partem do princípio de que nenhum sofrimento é bobagem. Não menospreze o que é psicológico. O psicológico é muito mais potente do que o físico. Depois é nunca foi uma resposta imediata ao período de tantas perdas da covid. Nunca a ameaça de morte esteve tão onipresente. Foi quando eu me debrucei sobre a solidão da saudade. Você não tem como dividir a saudade com mais ninguém. Ela é particular, só você lembra de alguém daquele jeito. Seu repertório de evocação é construído de detalhes e cenas absolutamente individuais. O que é valioso para você talvez não seja importante para o outro.

Em seguida, eu me aprofundei nas implicações do luto com o Manual. Quis escrever um livro com a intimidade sussurrada de cartas, para combater o preconceito que ronda o enlutado, que não tem nem tempo nem espaço para sofrer, para sentir falta de alguém. É coibido a se recompor rapidamente, a seguir adiante, como se o passado não existisse. A amnésia de viver para frente (jamais para os lados ou para trás) nos esvazia de gratidão.

No Clube dos Corações Solidários, grupo gratuito de cartas, com 28 mil inscritos, encontrei a entonação adequada para as reflexões. A correspondência semanal determinou o espírito fluido do livro.

O que quer mostrar aos leitores e o que aprendeu no processo de elaboração desses livros?

Enfrentar duas inverdades centrais, que vigoram para evitar o trabalho de consolo, de conforto, de apoio e amparo permanente aos enlutados. Por pressa e preguiça, fizemos vista grossa para o sofrimento recorrente de quem perdeu alguém, que necessita verbalizar a sua história, as experiências marcantes com o outro. A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece.

O luto muda os nossos olhos para sempre. Você poderia se recuperar do luto se permanecesse o mesmo antes da perda. Como você se transformou, impactado pela ausência do ente querido, não tem como voltar a ser quem era antes. O luto é para a vida inteira, não é passageiro, não é uma doença, não é curável. A diferença é que, no começo do processo, você é carregado pela dor, depois é você que a carrega.

Parece que o luto passa simplesmente porque as pessoas são proibidas de externá-lo.

Quem você era no começo da sua carreira, e quem você é hoje? O que buscava e o que busca na literatura?

Sinceridade emocional. Você vai aprendendo a se essencializar com o tempo, a fazer uma bagagem cada vez menor. Até se conformar com a roupa do corpo. Tudo o que li ou estudei me serviu para não ostentar na linguagem, para uma comunicação feita da singeleza. Eruditos são afetados, sábios são simples.

Como você classifica a sua literatura? E como classifica Manual do Luto, em termos de gênero e conteúdo?

Conficções. Confissões como se fossem ficções. A memória é invadida pela imaginação. Não existe memória pura. Você vai fantasiando como forma de suportar os fatos, como forma gradual de aceitar a realidade. Manual do Luto é ensaio sobre todas as dores do mundo: perda dos pais, do irmão, do filho, dos amigos, do marido ou esposa. Tem um tanto de cotidiano. Tem um outro tanto de intuição.

Manual do Luto está neste momento em primeiro lugar entre os mais vendidos da Amazon. O que acha que isso significa?

Que as pessoas estão com coragem de amar, sem se reduzir aos condicionamentos e censuras do tabu. É um equívoco o veto silencioso da homenagem. Como se a morte atrapalhasse nossa rotina. O que você mais quer da vida? Ser lembrado, não ser esquecido. Então, se não valorizarmos o luto, qualquer existência não terá sentido nenhum. Você será apagado logo ao morrer. Há aquela máxima “a pessoa só morre definitivamente quando ninguém mais menciona o nome dela”. Precisamos falar de nossos mortos, com os nossos mortos. Virar a página? Só se for para marcar a página, dobrar o canto dela para infindáveis releituras.

O que a morte significa para você?

Que ela está viva dentro de mim. Um dia ela morre em mim, e eu nasço do outro lado. Acredito que o corpo vira alma, e a alma vira corpo.

Já viveu esse processo de luto?

Experimento desde cedo, desde a infância, com a morte dos avós. Quando sonho com eles, tenho convicção de que me visitaram. Os conselhos continuam com os sonhos. Ao despertar, chego a sentir o cheiro de hortelã no quarto.

Você pensa na morte - na sua, na de pessoas próximas e amadas? E de que forma você se prepara para isso?

O medo de morrer nasce com o filho. Antes deles, eu era inconsequente. Passei a cuidar de mim para estar mais com eles, para não perder nenhum capítulo importante de suas formações. De que modo eu me preparo? Pela paz dos momentos imperfeitos. Esbarrões já são abraços para mim. Aproveito cada olhar, cada pequena pausa.

Não há rascunho. Uma vez escrito pode ser lido, pode ser vivido. Eu me importo em ser possível, em ser real, em estar ali sem nenhuma compensação ou adiamento. Só espera recompensas quem ainda não viveu. Nosso erro é somente querer o tempo idealizado, o tempo inteiro, as cédulas da existência, e assim desprezamos as moedas da existência, os 15 e 20 minutos. Se você não tem uma hora para encontrar um amigo ou familiar, acaba não indo. Perde de estar junto. Não se dá conta que o essencial é a intensidade, o tempo emocional, o quanto que consegue ficar atento e entregue por alguns minutos. Por exemplo, o recreio de uma escola tem 15, 20 minutos, e você lembrará que fazia tudo com ele: lanchava, jogava bola, usava o banheiro, estudava para prova, conversava com os amigos, recuperava um dever pendente. Quantos recreios estão inativos em nossa vida? Todo mundo tem 15 ou 20 minutos para dar, então não deixe de aparecer.

Existe vida após a morte para quem fica?

Sei que há várias vidas por aqui. Existem várias vidas antes de morrer. Você vai se interpretando diferente de acordo com o que procura. Ciclos são existências paralelas, vão nos ensinando a despedida.

Você fala sobre colocar o luto a favor de um propósito. Qual propósito?

Colocar a dor para trabalhar, por um propósito. Você pode realizar projetos inacabados daquele que partiu. Ou uma viagem, ou uma promessa feita durante a relação. Os projetos não morrem. A melhor forma de atravessar o luto é cumprindo algo que a pessoa deixou de fazer. Há a herança, o patrimônio material, e há o legado, o quanto os bons exemplos do falecido determinam as suas ações.

Estamos falando de morte, de como encarar a morte, mas tudo começa de uma certa forma com como vivemos a vida. Um luto pode ser recheado de saudade ou ser recheado de culpa, de arrependimento. Você concorda? Alguma receita para viver melhor a vida e encarar melhor as despedidas?

Culpa é se arrepender de tudo o que não aconteceu, de tudo o que deixou de fazer por medo, ou por comodismo, ou por uma miragem que teria todo o tempo pela frente. Saudade é feliz porque significa que esteve presente, tem o que lembrar. Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri.

Você escreve sobre relações - com a família, os pais, os amores, os amigos. E sua obra faz bastante sucesso. O que isso também quer dizer? As pessoas estão precisando mais de apoio, de orientação, de um caminho?

Eu tenho trabalhado para derrubar estigmas na família, a favor do cuidado dos pais na velhice, ou de um amor independente, alicerçado na gentileza. O romantismo cria uma ideia equivocada de dependência: fazer tudo junto a tal ponto que sacrifica o contato individual com os amigos e a família. No fim, você não tem mais nada seu, tampouco sabe quem se tornou na relação. O romantismo catequiza para a renúncia e sacrifício, você prova amor deixando de ser, abdicando de seus prazeres pessoais. Nele, erros constantes são pagos com a fiança das juras, presentes e surpresas. É conspirar contra a honestidade diária.

Se pudesse dizer uma coisa aos seus leitores, sobre vida e morte, o que seria?

Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado.

Manual do Luto, o novo livro de Fabricio Carpinejar, é, na definição do escritor, um ensaio sobre todas as dores do mundo - a perda dos pais, irmãos, filhos, amigos, companheiros. Autor de Depois é Nunca (2021), sua resposta à pandemia de covid-19, o cronista gaúcho volta ao tema da morte nesta nova obra que, em menos de um mês nas livrarias, vendeu quase 10 mil exemplares e está no topo da lista de mais vendidos da Amazon.

Carpinejar faz 51 anos nesta segunda-feira, 23. Nascido em Caxias do Sul, filho dos escritores Carlos Nejar, imortal da Academia Brasileira de Letras, e Maria Carpi, e colunista da Zero Hora, ele já publicou 51 livros, entre volumes de crônica e poesia e títulos para crianças que, somados, atingiram a marca de 850 mil exemplares vendidos.

Em Manual do Luto, lançado agora pela Bertrand, o autor reúne frases, conselhos e consolos para pessoas que estão vivendo uma perda ou procurando formas de conviver com ela. Sua ideia, ele conta, era combater o preconceito que cerca os enlutados e contestar algumas “inverdades” sobre o processo de elaboração do luto.

Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri”

Carpinejar

“A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece”, diz Carpinejar, autor ainda de Cuide dos Seus Pais Antes Que Seja Tarde e de Me Ajude a Chorar, nesta entrevista por e-mail ao Estadão.

Trata-se de um livro que parte de suas inquietações sobre vida e morte, e sobre relações, mas que dialoga com outro projeto dele. Carpinejar é parceiro de uma empresa que atua no segmento de cemitérios, crematórios e serviços funerários e escreve, semanalmente, uma carta que é enviada gratuitamente aos membros do Clube dos Corações Solidários.

Carpinejar é autor de 51 livros, incluindo 'Manual do Luto, o mais recente, e 'Para Onde Vai o Amor', 'Família é Tudo' e 'Depois é Nunca' Foto: Annick Melo

Se ele pudesse dar um conselho aos leitores, seria: “Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado”. Confira a entrevista.

Qual foi o seu objetivo ao escrever livros como Manual do Luto e Depois é Nunca? Como se preparou para isso? E qual é a relação deles com o projeto Clube dos Corações Solidários?

Ambos partem do princípio de que nenhum sofrimento é bobagem. Não menospreze o que é psicológico. O psicológico é muito mais potente do que o físico. Depois é nunca foi uma resposta imediata ao período de tantas perdas da covid. Nunca a ameaça de morte esteve tão onipresente. Foi quando eu me debrucei sobre a solidão da saudade. Você não tem como dividir a saudade com mais ninguém. Ela é particular, só você lembra de alguém daquele jeito. Seu repertório de evocação é construído de detalhes e cenas absolutamente individuais. O que é valioso para você talvez não seja importante para o outro.

Em seguida, eu me aprofundei nas implicações do luto com o Manual. Quis escrever um livro com a intimidade sussurrada de cartas, para combater o preconceito que ronda o enlutado, que não tem nem tempo nem espaço para sofrer, para sentir falta de alguém. É coibido a se recompor rapidamente, a seguir adiante, como se o passado não existisse. A amnésia de viver para frente (jamais para os lados ou para trás) nos esvazia de gratidão.

No Clube dos Corações Solidários, grupo gratuito de cartas, com 28 mil inscritos, encontrei a entonação adequada para as reflexões. A correspondência semanal determinou o espírito fluido do livro.

O que quer mostrar aos leitores e o que aprendeu no processo de elaboração desses livros?

Enfrentar duas inverdades centrais, que vigoram para evitar o trabalho de consolo, de conforto, de apoio e amparo permanente aos enlutados. Por pressa e preguiça, fizemos vista grossa para o sofrimento recorrente de quem perdeu alguém, que necessita verbalizar a sua história, as experiências marcantes com o outro. A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece.

O luto muda os nossos olhos para sempre. Você poderia se recuperar do luto se permanecesse o mesmo antes da perda. Como você se transformou, impactado pela ausência do ente querido, não tem como voltar a ser quem era antes. O luto é para a vida inteira, não é passageiro, não é uma doença, não é curável. A diferença é que, no começo do processo, você é carregado pela dor, depois é você que a carrega.

Parece que o luto passa simplesmente porque as pessoas são proibidas de externá-lo.

Quem você era no começo da sua carreira, e quem você é hoje? O que buscava e o que busca na literatura?

Sinceridade emocional. Você vai aprendendo a se essencializar com o tempo, a fazer uma bagagem cada vez menor. Até se conformar com a roupa do corpo. Tudo o que li ou estudei me serviu para não ostentar na linguagem, para uma comunicação feita da singeleza. Eruditos são afetados, sábios são simples.

Como você classifica a sua literatura? E como classifica Manual do Luto, em termos de gênero e conteúdo?

Conficções. Confissões como se fossem ficções. A memória é invadida pela imaginação. Não existe memória pura. Você vai fantasiando como forma de suportar os fatos, como forma gradual de aceitar a realidade. Manual do Luto é ensaio sobre todas as dores do mundo: perda dos pais, do irmão, do filho, dos amigos, do marido ou esposa. Tem um tanto de cotidiano. Tem um outro tanto de intuição.

Manual do Luto está neste momento em primeiro lugar entre os mais vendidos da Amazon. O que acha que isso significa?

Que as pessoas estão com coragem de amar, sem se reduzir aos condicionamentos e censuras do tabu. É um equívoco o veto silencioso da homenagem. Como se a morte atrapalhasse nossa rotina. O que você mais quer da vida? Ser lembrado, não ser esquecido. Então, se não valorizarmos o luto, qualquer existência não terá sentido nenhum. Você será apagado logo ao morrer. Há aquela máxima “a pessoa só morre definitivamente quando ninguém mais menciona o nome dela”. Precisamos falar de nossos mortos, com os nossos mortos. Virar a página? Só se for para marcar a página, dobrar o canto dela para infindáveis releituras.

O que a morte significa para você?

Que ela está viva dentro de mim. Um dia ela morre em mim, e eu nasço do outro lado. Acredito que o corpo vira alma, e a alma vira corpo.

Já viveu esse processo de luto?

Experimento desde cedo, desde a infância, com a morte dos avós. Quando sonho com eles, tenho convicção de que me visitaram. Os conselhos continuam com os sonhos. Ao despertar, chego a sentir o cheiro de hortelã no quarto.

Você pensa na morte - na sua, na de pessoas próximas e amadas? E de que forma você se prepara para isso?

O medo de morrer nasce com o filho. Antes deles, eu era inconsequente. Passei a cuidar de mim para estar mais com eles, para não perder nenhum capítulo importante de suas formações. De que modo eu me preparo? Pela paz dos momentos imperfeitos. Esbarrões já são abraços para mim. Aproveito cada olhar, cada pequena pausa.

Não há rascunho. Uma vez escrito pode ser lido, pode ser vivido. Eu me importo em ser possível, em ser real, em estar ali sem nenhuma compensação ou adiamento. Só espera recompensas quem ainda não viveu. Nosso erro é somente querer o tempo idealizado, o tempo inteiro, as cédulas da existência, e assim desprezamos as moedas da existência, os 15 e 20 minutos. Se você não tem uma hora para encontrar um amigo ou familiar, acaba não indo. Perde de estar junto. Não se dá conta que o essencial é a intensidade, o tempo emocional, o quanto que consegue ficar atento e entregue por alguns minutos. Por exemplo, o recreio de uma escola tem 15, 20 minutos, e você lembrará que fazia tudo com ele: lanchava, jogava bola, usava o banheiro, estudava para prova, conversava com os amigos, recuperava um dever pendente. Quantos recreios estão inativos em nossa vida? Todo mundo tem 15 ou 20 minutos para dar, então não deixe de aparecer.

Existe vida após a morte para quem fica?

Sei que há várias vidas por aqui. Existem várias vidas antes de morrer. Você vai se interpretando diferente de acordo com o que procura. Ciclos são existências paralelas, vão nos ensinando a despedida.

Você fala sobre colocar o luto a favor de um propósito. Qual propósito?

Colocar a dor para trabalhar, por um propósito. Você pode realizar projetos inacabados daquele que partiu. Ou uma viagem, ou uma promessa feita durante a relação. Os projetos não morrem. A melhor forma de atravessar o luto é cumprindo algo que a pessoa deixou de fazer. Há a herança, o patrimônio material, e há o legado, o quanto os bons exemplos do falecido determinam as suas ações.

Estamos falando de morte, de como encarar a morte, mas tudo começa de uma certa forma com como vivemos a vida. Um luto pode ser recheado de saudade ou ser recheado de culpa, de arrependimento. Você concorda? Alguma receita para viver melhor a vida e encarar melhor as despedidas?

Culpa é se arrepender de tudo o que não aconteceu, de tudo o que deixou de fazer por medo, ou por comodismo, ou por uma miragem que teria todo o tempo pela frente. Saudade é feliz porque significa que esteve presente, tem o que lembrar. Na saudade do luto, você não chora apenas pelo outro, você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de uma conversa, de uma situação engraçada, de uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega rindo sozinho. A saudade também ri.

Você escreve sobre relações - com a família, os pais, os amores, os amigos. E sua obra faz bastante sucesso. O que isso também quer dizer? As pessoas estão precisando mais de apoio, de orientação, de um caminho?

Eu tenho trabalhado para derrubar estigmas na família, a favor do cuidado dos pais na velhice, ou de um amor independente, alicerçado na gentileza. O romantismo cria uma ideia equivocada de dependência: fazer tudo junto a tal ponto que sacrifica o contato individual com os amigos e a família. No fim, você não tem mais nada seu, tampouco sabe quem se tornou na relação. O romantismo catequiza para a renúncia e sacrifício, você prova amor deixando de ser, abdicando de seus prazeres pessoais. Nele, erros constantes são pagos com a fiança das juras, presentes e surpresas. É conspirar contra a honestidade diária.

Se pudesse dizer uma coisa aos seus leitores, sobre vida e morte, o que seria?

Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado.

Entrevista por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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