Como em seu romance anterior, Estudo Sobre o Fim (Reformatório), São Paulo é um microcosmo do Brasil em Casa de Família, novo romance de Paula Fábrio (vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013 com o romance de estreia Desnorteio). Mas se naquele as tensões sociais do País se materializavam essencialmente em ambientes externos, neste elas se instalam da porta de casa para dentro.
A doença degenerativa que acomete a mãe de Soraia, a narradora protagonista, força a presença de um Brasil malquisto no núcleo da família. Entre 1983 e 2000, são incontáveis as empregadas que entram e saem pela porta do sobrado de classe média do bairro da Aclimação. São sotaques, trejeitos, vestimentas, gostos, corpos cujo cheiro, cuja silhueta e não raro cuja cor causam repúdio e por vezes asco em Soraia, mas com os quais é forçada a conviver em razão dos cuidados com a mãe e a casa.
É da meia idade – em meados de 2019 a 2023, também doente, mas da memória – que Soraia se esforça para revisitar sobretudo aqueles longos dezessete anos de enfermidade da mãe e da casa. Seu estado mental é relevante para entender a estrutura do romance, feito de capítulos breves em geral intitulados por datas, muitas com pontos de interrogação. Mas talvez não convenha levar essa condição a ferro e fogo como chave de leitura, como se lapsos e distorções fossem todos sintomas da doença. Ao comentar a relação entre a doença e a forma do relato, Soraia afirma: “Com isso, perdemos a coerência e nos tornamos pouco confiáveis. Com o tempo, também nos desligamos da realidade”. Atribuir à doença a perda de coerência, o desligamento paulatino da realidade e a falta de confiabilidade não poderia ser também um salvo-conduto para a livre fabulação, para uma versão interessada do passado?
O que sob a perspectiva de Soraia parece um conjunto de fragmentos descontínuos da memória que ela registra de pronto antes que se esvaeçam, para a romancista é forma engenhosa. Descosturados do tempo, os eventos se descortinam em geral a partir de seus desdobramentos para só então conhecermos suas motivações e origens, o que dá sabor e verossimilhança ao enredo. Ou acreditamos que a memória, esteja sã ou enferma, opera em linha reta?
É sintomático que o cenário por excelência desse reviramento do passado seja o quartinho dos fundos do sobrado, o cômodo de paredes chapiscadas, soalho riscado, mobília pouca e ruim onde, à época, para alívio de Soraia, aquele Brasil indesejado se confinava nas poucas horas de descanso. Mas era também o canto da casa que a atraía para bisbilhotar aquelas mulheres tão jovens quanto ela, conhecer suas origens, seus desejos e infortúnios, tarefa facilitada pela porta mal fechada com um fio de cobre. “Eu invadia a intimidade delas e com isso muitas vezes partilhava da mesma solidão que elas.”
A ambivalência dessa mistura de repúdio, interesse e empatia denota a complexidade da personagem, haja vista sua relação com Ângela, a princípio rejeitada por conta do corpo preto e roliço, mas por quem depois nutre afeição constrangida. “Para ser sincera, a esta altura eu já amo demais a Ângela e sempre guardo uns trocados para lhe comprar caixas de bombons nas datas festivas.” Mas se a afeição lhe causava vergonha, era porque eivada de culpa, e é essencialmente a culpa que traz Soraia de volta ao quartinho. “No passado, eu as via como inimigas ou simplesmente como um estorvo. Agora, pelo contrário, sinto uma tristeza infinita por ter sido ingrata”.
Os personagens secundários também são complexos, e isso é um ganho em relação ao romance anterior de Paula, em que alguns coadjuvantes são um tanto caricatos. Exemplo significativo em Casa de Família é Nalva, que, de doméstica explorada, passa a exploradora de domésticas. Para manter a excelência de seu negócio, ela cobra um salário adiantado do cliente que a procura e embolsa o primeiro salário da empregada escolhida para trabalhar em uma casa de família.
Mas o personagem mais intrigante do livro é Toninho, irmão mais velho e único de Soraia. Ao contrário a irmã, ele desconhece a culpa, disposto a ludibriar quem quer que seja para ascender rápido à riqueza, uma vez convicto de sua superioridade inata. Desde cedo se mostra perverso, mas nem por isso é repreendido em casa, talvez pela recusa dos pais em reconhecer a personalidade do filho, talvez pela ardileza inconteste de Toninho, capaz ganhar atenção da família com suas teorias estapafúrdias sobre tudo e todos.
Sentidas no cotidiano de uma família paulistana de classe média, questões relevantes da História do Brasil entre os anos 1980 e início dos anos 2000 tomam lastro, corpo. Para um bancário de ganhos modestos, como prover o sustento dos filhos e os cuidados para a esposa doente com a inflação acachapante dos anos Sarney? Se a poupança era o único porto seguro, o que fazer quando veio o Plano Collor? As migrações – especialmente a nordestina, ainda expressiva à época – entravam no sobrado e despertavam o ranço escravocrata dos patrões. Sem contar a atenção dada a uma figura como Toninho, algo que diz muito sobre os rumos que o País tomaria quase 20 anos depois da morte da mãe, justamente o Brasil do qual Soraia rememora aquele tempo enfermo.
Casa de Família
- Autora: Paula Fábrio
- Editora: Companhia das Letras (296 págs.; R$ 79,90; R$ 39,90 o e-book)