Aquela tarde de terça-feira deixou de ser corriqueira quando o cano do revólver encostou em sua cabeça. Primeiro, a surpresa. Em seguida, a canção de Daniela Mercury que vinha dos fones de ouvido foi abafada pela voz do homem que, com a mão disfarçada por uma luva, forçou Julia a deixar a pista de corrida para entrar na mata – em alguns minutos, a Floresta da Tijuca, um dos pontos mais exuberantes do Rio de Janeiro, tornou-se cenário de um estupro.
A cena, que impressiona e incomoda pela riqueza dos detalhes, marca o início de Vista Chinesa, novo romance de Tatiana Salem Levy, lançado pela Todavia. Com um estilo que equilibra a precisão e o poético, ela descreve a radical mudança sofrida na vida da arquiteta cujo escritório se prepara para grandes construções na Vila Olímpica para a Olimpíada dali a dois anos – a ação se passa em 2014, quando a euforia da Copa do Mundo logo se revelaria uma farsa.
Largada no meio da floresta, Julia se arrasta até sua casa, onde logo é socorrida por uma amiga. Apesar de acarinhada por parentes e conhecidos, Julia já tem a dor encravada nas entranhas, uma sensação de imundície e culpa que, ainda que injustificável, acompanha eternamente as vítimas de violência sexual.
Vista Chinesa (o título remete a um dos mais belos observatórios da Floresta da Tijuca) é engenhosamente construído no tempo de ação, pois avança e recua nos anos. Logo nas primeiras páginas, o leitor descobre que está lendo uma carta escrita por Julia para seus filhos ainda pequenos. Pela escrita, ela pretende traduzir a dor que ainda sente por ter sido estuprada e aquela carta traz seu testemunho mais sincero. Em seguida, a ação recua no tempo até o momento mais trágico da sua existência.
Engenhoso como literatura, o livro reserva, porém, uma surpresa: uma nota publicada depois de encerrada a ficção, em que Tatiana relata detalhes da construção da trama, escrita em 2018. Ali, ela afirma que se trata de uma história inspirada em um fato que realmente aconteceu com uma amiga, em 2014. E, ainda mais revelador, a amiga autorizou que seu nome se tornasse público: trata-se de Joana Jabace, diretora de programas como Diário de um Confinado e Segunda Chamada, da Globo, casada com o ator e também roteirista Bruno Mazzeo.
“Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade – e que aconteceu comigo”, diz Joana, em recado transcrito por Tatiana. O livro, portanto, é um relato ficcional a partir de um caso real, fruto da cumplicidade de duas amigas que se admiram e que travaram conversas francas sobre o ocorrido até Tatiana transformar o trágico em arte.
“Quando começamos as entrevistas, fiquei impressionada com a precisão dos detalhes que ela relatava”, conta a escritora ao Estadão. “Então, entendi que a dor estava presente, não de forma genérica, mas minuciosa. Cada detalhe doía. Dentro dela, mas também fora, na superfície, na pele, nos poros, todos os dias, a cada hora do dia. Mesmo quando ela estava feliz, a dor vinha junto. Então, me vi diante de um dilema: eu não queria correr o risco de afastar o leitor com tantos detalhes, mas eu não podia fugir deles.”
E é justamente na descrição da cena de violência sexual que o dilema se intensificou. “Percebi que não seria possível evitar a cena do estupro, como eu pretendia inicialmente. Seria necessário contá-la, e em detalhes”, explica Tatiana. “Ao mesmo tempo, eu precisava segurar na mão do leitor e levá-lo para o centro da cena sem que ele quisesse sair correndo. Precisava criar empatia, que ele desenvolvesse afeto por aquela personagem. Eu queria que a leitura despertasse no leitor o mesmo sentimento que a escrita despertou em mim: o de aproximá-lo da dor e, ao mesmo tempo, afastá-lo dela.”
Amigas há vários anos, Joana e Tatiana mantiveram conversas francas, sem fugir do assunto. “Gostamos muito de perguntar, o que favoreceu o trabalho”, conta Joana ao Estadão. “Eu já fazia psicanálise e, depois do ocorrido, intensifiquei as sessões, mas mesmo ali não falei dos detalhes. Acredito na cura pela fala e, nas conversas com a Tatiana, percebi que falar me ajudou a tirar a abstração da dor. Era como se eu conseguisse dar uma concretude ao fato.”
Para Joana, mais que o horror do estupro, era o medo da morte. “É algo fantasmagórico e se transforma em um trauma”, explica. “Por isso que falar me fez bem. É um alívio que as pessoas saibam o que aconteceu pelo livro e não precisem imaginar o ocorrido.” A leitura do texto provocou um efeito catártico na roteirista, que se sentiu devidamente representada. “É uma ficção, mas baseada em um fato da minha vida, do qual me sinto salva por meio do livro. Preferi que minha mãe soubesse dos detalhes pelo romance. Ela ficou aos prantos, mas agora sabe o que se passou comigo.”
“Certamente, Joana adoraria poder esquecer”, pondera Tatiana, que deverá trabalhar com a amiga no roteiro de uma versão do livro para o cinema. “Mas como? A memória, além de ser seletiva, é bastante teimosa. Nisso está o seu encanto. Mas também nisso está o seu terror, quando queremos esquecer uma dor traumática, que não vai embora. Pensemos naqueles que foram torturados durante a ditadura militar: Quem conseguiu esquecer?”
História será adaptada para o cinema
A roteirista Joana Jabace pretende transformar o romance Vista Chinesa, da amiga Tatiana Salem Levy, em um roteiro de cinema. O projeto ainda está em uma fase embrionária, na pesquisa de uma produtora que tenha sensibilidade para tratar do tema. O roteiro ainda vem sendo rascunhado e conta com a participação de Tatiana – sua escrita cinematográfica é inspiradora. “O texto dela é sensorial, sensível e muito imagético. Será um processo difícil, muito autoral, mas confirma minha convicção de que a arte salva”, comenta Joana. “Em nossa sociedade, o estupro é uma vergonha, mas ser ameaçada de morte, não.”
E, nesse caso, nenhum cuidado é excessivo – Vista Chinesa conta a história fictícia de Julia, publicitária que é estuprada na Floresta da Tijuca, no Rio. A trama se inspira em uma violência sexual real, sofrida por Joana, em 2014. Além da agressão, está ali relatado o tortuoso processo de investigação a fim de se encontrar o criminoso, cansativo processo de identificação a partir de retratos falados que se revelavam incompletos pelo fato da vítima não se lembrar com precisão do perfil do molestador. Em um determinado momento, Joana encerrou a investigação antes da conclusão, temendo culpar algum inocente.
“Eu tive a ideia de escrever o livro em março de 2015, quando, por ocasião do salão do livro de Paris, vi a exposição Os Inocentes, de Taryn Simon, em que ela mostra retratos de pessoas presas injustamente a partir de reconhecimentos fotográficos. Esse trabalho me remeteu à investigação policial que se seguiu ao estupro da Joana e, daí, surgiu o romance”, conta Tatiana, que interrompeu o processo quando descobriu que estava grávida de seu filho. “Fiquei com medo de passar sentimentos ruins para ele e suspendi a escrita. Tomei apenas algumas notas e adiei o projeto.”
Curiosamente, foi uma nova gravidez, três anos depois, agora de uma menina, que provocou uma reação contrária. “Senti uma necessidade de escrever. Escrevi junto com a minha filha. Com ela na barriga, depois com ela no meu peito. Sinto como se, esse livro, eu tivesse escrito com a companhia de muitas mulheres, das que vieram antes de nós e das que estão chegando. Talvez a confiança tenha vindo disso: eu estava sozinha, mas muito bem acompanhada.”
Foi quando as amigas iniciaram uma série de conversas francas, em que nenhum detalhe ficou de fora. “Por mais que doesse em mim, eu não tinha passado pelo que a Joana passou. Eu só podia imaginar a sua dor, sabendo que, no fundo, a sua dor é inimaginável. Tentei ser o mais verdadeira possível com o que ela me disse – não, não omiti nada por julgar cruel demais, evitei qualquer julgamento desse tipo”, explica a escritora.
Joana também se sentia revigorada, por mais que a ferida ainda estivesse aberta. “Ao longo do processo, eu ficava impressionada como o texto tocava em minhas verdades. Eu sabia que se tratava de uma ficção, com fatos inventados, mas Tatiana foi cirúrgica ao reproduzir meus pensamentos.”
Um detalhe revelado pela escritora contribuiu para a cumplicidade entre elas: quando Tatiana tinha quatro anos de idade, sua mãe foi estuprada durante um assalto. Ela só soube do fato quando estava com 18 anos, em uma conversa com a mãe, que costumava escrever cartas para os familiares. Foi nesse momento que Tatiana compreendeu um sentimento até então inexplicável e que dominava sua existência: o temor do estupro.
Assim, em Vista Chinesa, o leitor logo descobre que a trama é uma longa carta escrita por Julia para seus filhos pequenos, na esperança de que, quando adultos, recebam a notícia da tragédia pela própria mãe.
“Depois da maternidade, passei a me preocupar muito com o legado que os meus filhos vão receber, daí a ideia da carta. Estou há 5 anos dizendo que vou escrever uma carta para o meu filho, contando coisas que eu gostaria que ele soubesse caso eu morra de repente. Até hoje, não escrevi nem uma linha. Então pensei: vou escrever uma carta para os filhos da Júlia”, explica. “Acredito muito que haja traumas geracionais. Tem uma pintora incrível, chamada Charlotte Salomon, em cuja família o suicídio era uma repetição. Muitos de seus parentes desconheciam isso e acabavam cometendo suicídio também. Os traumas são passados mesmo que no silêncio. Eu diria que de forma mais terrível quando não são nomeados. A carta é uma forma de dar nome às coisas, uma tentativa de interromper o mal.”
Com o lançamento do livro e a consequente revelação do estupro que sofreu em 2014, Joana confessa que os dias têm sido difíceis. “A história agora ultrapassou meu ciclo de amigos e familiares, tornou-se algo externo ao meu convívio”, conta ela, feliz por reações de carinho e cumplicidade. “Diversas mulheres confessam, emocionadas, que também foram estupradas. Percebo, então, como foi transmutar a dor em arte.”
Joana mantém sua rotina de trabalho, além da vivência com o marido e os filhos. No íntimo, porém, algo mudou definitivamente. “Vou sempre carregar essa dor.”
Trecho do livro
“Sem mexer a cabeça, olhei para o lado e vi que ele usava luvas. Nos segundos seguintes, ou nos minutos, já não sei, eu só conseguia olhar as luvas. Os galhos arranhando o meu corpo, a voz dele, o sol desaparecendo entre as árvores, as ameaças, o barulho dos passos na mata, tudo se diluindo e perdendo a forma original, eu só via as luvas. (...) O resto, apenas imagens borradas. Depois eu vejo outras coisas. Vejo pedaços, fragmentos daquele momento: uma clareira um cinto um tapa minha garganta folhas no céu uma boca se mexendo uma língua sapatos um peito nu um tapa um passarinho um soco um cinto folhas caindo do céu outro soco ânsia de vômito gosto ruim uma nuvem dor vai quebrar mosquitos um cheiro ruim dentro outro tapa fora dor dor dor uma jaca duas jacas várias jacas um rosto os detalhes de um rosto um rosto se desfigurando um rosto.