O escritor Chico Buarque de Holanda foi escolhido, nesta terça-feira, 21, como vencedor do Prêmio Camões de 2019 pelo conjunto de sua obra. Trata-se da maior distinção em literatura da escrita portuguesa. A eleição aconteceu na Biblioteca Nacional, no Rio, onde, após uma reunião de duas horas, um júri especialmente escolhido anunciou seu nome.
Chico, que se tornou o primeiro músico a ganhar a distinção além de ser o 13.º autor brasileiro a figurar entre os vencedores, vai receber 100 mil euros. Ele está em Paris, para onde normalmente viaja a fim de passar seu aniversário, em junho. Lá, foi surpreendido por uma enxurrada de telefonemas (da ex-mulher, Marieta Severo, de seu editor, Luiz Schwarcz, de seu assessor, Mario Canivello). Sobre a premiação, comentou: “Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar”, referindo-se ao mais recente brasileiro a ganhar o prêmio.
O que é o Prêmio Camões, entregue a Chico Buarque?
Criado em 1988 pelos governos do Brasil e de Portugal, o Camões elege a cada ano um escritor de países onde o português é a língua oficial. A eleição de Chico, segundo o júri, foi definida a partir da qualidade de seu trabalho e também pela “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”. Também pelo “caráter multifacetado”, uma vez que Chico escreve para teatro, além de romances e da poesia de suas canções. “Seu trabalho atravessou fronteiras e mantém-se como uma referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo”, afirmaram os jurados, em nota.
Em uma entrevista a um jornal argentino em 1999, Chico confessou que acreditava ser mais inovador em sua literatura que nas letras das canções. E, se assim pensava, era para reforçar também a influência literária que sempre marcou suas histórias em livros. Foi assim, por exemplo, com a história infantil Chapeuzinho Amarelo (lançada em 1979 e hoje editada pela Autêntica), surgida a partir das fábulas que contava para a filha Luisa. Ou ainda em Fazenda Modelo (1974), que imediatamente remete a Revolução dos Bichos, de George Orwell, mote escolhido para revelar e criticar a difícil situação vivida então pela sociedade brasileira, tolhida por uma ditadura militar.
Embora a carreira musical seja a mais extensa e proeminente de suas facetas, com mais de cinco décadas dedicadas à música e 17 álbuns de estúdio gravados, sem contar os trabalhos em outros idiomas, trilhas sonoras e registros ao vivo, Chico tem uma prolífica carreira literária. Se parecia flertar com a literatura com Fazenda Modelo e Chapeuzinho Amarelo, ele assumiu de fato o ofício da escrita com Estorvo, publicado em 1991 e que considera a virada para sua maturidade literária. Trata-se de uma nova fase de sua escrita, em que ele busca alternativas para expressar seu pensamento. Conta, basicamente, a trajetória de um homem que não se sente bem em nenhum ambiente onde está.
“Estorvo é um livro brilhante, escrito com engenho e mão leve”, observou o ensaísta e professor Roberto Schwarz, autor do artigo Um Romance de Chico Buarque, que figura no livro de ensaios Sequências Brasileiras, da Companhia das Letras, que edita a obra de Chico no Brasil. “Em poucas linhas, o leitor sabe que está diante da lógica de uma forma.”
Ainda segundo Schwarz, o grande mérito do autor é construir uma narrativa que corre no ritmo acelerado (na primeira pessoa e no presente), ao mesmo tempo que busca ser despretensiosa. “A expressão simples faz parte de situações mais sutis e complexas do que ela”, afirma ele, que considera o livro uma forte metáfora que Chico escreveu para o Brasil contemporâneo.
Chico deu continuidade à sua literatura com Benjamim, em 1995, no qual retoma o tema do homem que não se sente bem em seu meio. Com mais ousadia estilística, ele fez da própria escrita o seu material, criando uma intrincada estrutura da narrativa, em que uma história é contada simultaneamente no presente e no passado.
O habilidoso jogo de palavras voltou em 2003, com Budapeste. É a história de um ghost-writer, ou seja, alguém que escreve o que outras pessoas assinam, artigos para jornal, autobiografias e até poesia. Novamente, Chico volta a brincar com as palavras e, ao utilizar um personagem que vive da escrita, faz com que Budapeste se transforme em seu texto mais autoral.
Em seguida, com Leite Derramado (2009), Chico segue a tradição do pai, o sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda, cujo clássico Raízes do Brasil descreve o processo de formação da sociedade brasileira como singular e distinto da dos outros países da América Latina. Nessa obra, ele desejou trabalhar com a ideia de plasticidade temporal e de presença espectral ao narrar a história de um homem velho que, em um leito do hospital, revisita o próprio passado e, por extensão, a transformação da sociedade brasileira.
Finalmente, com O Irmão Alemão (2014), Chico partiu de uma história real (a descoberta de um rapaz, fruto de um relacionamento amoroso de seu pai no período em morou em Berlim, entre 1929 e 1930) para misturar as fronteiras que separam a ficção da realidade. É por meio de caminhos vertiginosos em sua busca pela verdade e também pelo afeto que Chico Buarque transita por momentos históricos delicados como o Holocausto, na 2.ª Guerra, e a ditadura militar brasileira. E novamente explora, com habilidade, os recursos da prosa.
Como Chico Buarque foi eleito para o Camões?
Chico Buarque foi escolhido por uma equipe de seis jurados indicados pela Biblioteca Nacional do Brasil, pelo Ministério da Cultura de Portugal e pela comunidade africana. São eles os portugueses Clara Rowland e Manuel Frias Martins, os brasileiros Antonio Cicero Correia Lima e Antônio Carlos Hohlfeldt, a angolana Ana Paula Tavares e o moçambicano Nataniel Ngomane.
O primeiro vencedor do Prêmio Camões foi o escritor português Miguel Torga (1907-1995), em 1989. O primeiro autor brasileiro a ser eleito foi João Cabral de Melo Neto (1920–1999), no ano seguinte. Em 1991, o moçambicano José Craveirinha (1922–2003) se tornou o primeiro escritor africano a receber a premiação. Já a primeira mulher a ser galardoada foi a brasileira Rachel de Queiroz (1910-2003), em 1993.
Ao todo, um angolano, dois cabo-verdenses, dois moçambicanos, 12 portugueses e 12 brasileiros receberam a honraria. Em 2006, o luso-angolano José Luandino Vieira se tornaria o segundo representante de Angola, depois de Pepetela, a ganhar o Camões, mas recusou o prêmio por, na época, estar há 30 anos sem escrever.
O último brasileiro a vencer o Prêmio Camões foi Raduan Nassar, autor de clássicos como Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, eleito em 2016. Além dele, os brasileiros ganhadores do Camões são: João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Candido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) e Alberto da Costa e Silva (2014).
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