Por um lado, a dúvida mantinha a esperança viva. Por outro, a falta de transparência e de diálogo minava o pouco da energia que restava para enfrentar a situação. Quando a Livraria Cultura anuncia, na quarta, 24, o pedido de recuperação judicial, o mercado editorial tem a certeza de que aquele dinheiro todo que a rede devia não vai mais entrar. Pelo menos não tão cedo. E de que a conta de 2018 não vai fechar.
R$ 600 mil para um, mais ou menos para outro. Estima-se que a rede da família Herz deva a editores, bancos e demais credores cerca de R$ 150 milhões.
No comunicado enviado ao mercado, ela diz que “as incertezas do cenário econômico brasileiro” e “a crise do mercado editorial brasileiro” fizeram com que “a Livraria Cultura passasse a enfrentar as dificuldades inerentes aos setores onde atua”. Não falam em decisões arriscadas num momento de uma estabilidade que podia ser provisória, como a abertura de lojas enormes quando categorias como CD e DVD perdiam mercado. Nem da manutenção de unidades deficitárias, da aquisição da Fnac, mesmo que recebendo por isso, ou da compra da Estante Virtual, quando seus problemas internos eram complicados o suficiente e refletiam no dia a dia das editoras.
Algumas deixaram de fornecer para a rede – e para a Saraiva, que também passa por dificuldades. Outras suspenderam a venda por um período. Houve demissões, enxugamento na produção. Para algumas editoras, Cultura e Saraiva representavam algo como 40% do faturamento.
“O processo de recuperação judicial da Livraria Cultura representa a cereja de um bolo que azedou chamado ecossistema do livro”, diz Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL). Em 2012, havia no País 3.481 livrarias. Em 2014, 3.095. Hoje, a entidade estima 2.500 lojas – o Brasil tem 5.570 cidades. O número preocupa, e a hiperconcentração também.
Cultura, com 15 lojas, em recuperação judicial. Saraiva, hoje, 10 anos depois da compra da Siciliano, quando saltou de 36 para 99 lojas, mais ou menos o número atual, passando por reestruturação, contratando consultorias, fechando unidades, diminuindo espaços, abrindo centro de distribuição em Minas, renegociando prazos de pagamentos com editores e não cumprindo alguns acordos.
Apesar do cenário, fontes do mercado ouvidas pelo Estado não acreditam em falência, como foi o caso da Laselva – ela pediu recuperação judicial em 2013 e faliu em 2018, deixando credores no prejuízo. Mas num enxugamento ainda maior. O desafio dos Herz no momento será o de convencer as editoras a continuar vendendo seus livros para as lojas não ficarem desfalcadas e, assim, ela poder colocar em prática seu plano de recuperação – ele ainda será detalhado, aprovado pelos órgãos e credores e divulgado – nesse momento, a dívida real será revelada.
“Estamos, inquestionavelmente e infelizmente, vivendo a maior crise da história do mercado livreiro e editorial nacional”, diz Alexandre Martins Fontes. Uma crise que começou a ser sentida mais fortemente pelas editoras em 2014 e que tem alguns fatores, como a diminuição das compras governamentais e a queda do consumo de uma forma geral. Alexandre sente seus efeitos mais como editor do que como livreiro.
“Na WMF, reduzimos drasticamente os investimentos e lançamentos. Desde 2015, fomos obrigados a demitir um número importante de funcionários. Como todos os editores, estamos muito preocupados. Temos uma luz no fim do túnel? Dias melhores virão? Muito difícil responder. As editoras que não se adaptarem a essa nova ordem econômica e que não souberem cortar custos enfrentarão muitas dificuldades”, diz.
Apesar das oscilações do mercado, Ismael Borges, coordenador do Bookscan, ferramenta da Nielsen que monitora o varejo de livro, diz que não existe uma crise do consumo de livro. “Os números positivos observados em 2017 e confirmados no acumulado de 2018 não se comunicam de forma linear com a realidade dos operadores do mercado. Não é difícil perceber que o problema não se concentra na demanda pelo produto livro. A reorganização dos operadores do mercado tradicional gera muita ansiedade e pessimismo, mesmo diante dos números positivos da boca do caixa”, diz.
Na livraria de Alexandre, esse cenário se confirma. Desde 2005, quando ele assumiu a administração da loja da Avenida Paulista, ela só cresce. Durante todo esse ano, ele diz, o faturamento vem aumentando em média 28%. Comparando outubro com o mesmo período do ano passado, o índice salta para 40%. Gestão, uma livraria bonita, um bom café, eventos, livreiros experientes, lançamentos e fundo de catálogo, foco no livro. Tudo isso, diz Alexandre Martins Fontes, ajuda no negócio. “E o vácuo deixado pelas livrarias em crise também explica, em parte, esse crescimento.”
Com modelos de negócios diferentes e planos de crescimento mais conservadores, outras livrarias têm conquistado espaço. Para além da Amazon, que só vende pela internet e, estima-se, responde por 10% do mercado, editores destacam o trabalho da própria Martins Fontes, da Vila (que anunciou recentemente a diminuição de sua loja do Shopping Pátio Higienópolis), da Travessa (há quem diga que a rede carioca deve abrir uma loja maior do que a do IMS em São Paulo, mas o proprietário Rui Campos não confirma), Blooks, Curitiba e Leitura.
Maior rede da região Sul, a Livrarias Curitiba acaba de inaugurar um centro de distribuição na Capital para ampliar seu braço de atacado, responsável por 35% do grupo. “São Paulo é o mercado em que vamos apostar agora. Aí tem mais universidades, mais cultura e mais oportunidade. E também porque a concorrência tende a reduzir um pouquinho”, diz o diretor Marcos Pedri. A rede, que investe em outros produtos e deve crescer 5% este ano, tem 29 lojas – 5 delas no Estado (Diadema, Taboão da Serra, São José dos Campos e duas em São Paulo). “Entramos pelas beiradas, sem pagar aluguel caro e queremos ter outras lojas.”
Quem também chega com mais força no próximo ano é a mineira Leitura, de Marcus Teles, que não tem medo de fechar lojas deficitárias. “No segundo ano sem lucro, eu fecho”, diz. Fechou até seu e-commerce há dois anos. “Ele funcionou por 16 anos e não dava tanto lucro. Resolvemos ir por outro caminho, abrir lojas onde não havia livraria. Hoje, somos líderes em 10 estados”, diz. A Leitura começou o ano com 66 livrarias, abriu seis e fechou duas – e vai reativar o e-commerce (mas não para concorrer com empresas de tecnologia que vendem livro, outro grande problema). Aqui, está abrindo unidades nas rodoviárias do Tietê e Barra Funda e no aeroporto de Congonhas, e deve crescer 7% em 2018.
As grandes e as pequenas livrarias sofrem. As médias vão encontrando um jeito de sobreviver. “Mas precisamos construir um futuro mais saudável”, diz Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros e diretor da Sextante. Por isso, o empenho do setor em conseguir, ainda neste mandato presidencial, a aprovação de uma mudança na Lei do Livro, de 2003. O projeto de uma lei do preço fixo do livro, que deve ganhar outro nome, está na Casa Civil. Se der certo, os descontos vão ficar limitados a 10% no período de um ano após o lançamento – para Amazon, Mercado Livre e para a livraria da esquina, por exemplo. Depois, cada um vende pelo preço que quiser. “Nunca foi tão urgente a aprovação dessa lei. É a garantia de um futuro saudável para todos”, diz Pereira.