Como a poesia ajudou espiões de Berlim Oriental na Guerra Fria


Grupo da Stasi, serviço secreto da Alemanha comunista, fazia reuniões para debater sonetos

Por André Caramuru Aubert

A cidade é Berlim Oriental, o ano é 1982, num outono frio, em tempos de Guerra Fria. Estamos em Adlershof, uma antiga base área da Segunda Guerra que abriga a sede da Stasi, a temida polícia secreta da Alemanha Comunista, a KGB alemã. Agentes de um grupo de elite chegam, um a um, para uma reunião. Alguns usam trajes civis, outros vestem uniformes militares. Numa antessala, cada um deles entrega seus documentos de identidade a um recepcionista, que interfona para os organizadores dentro da sala no andar de cima. Um portador é enviado até a antessala, recolhe os documentos e os leva para cima. Lá, as identidades são mais uma vez verificadas e, estando tudo certo, depois de alguns longos minutos de espera, uma porta com fechadura elétrica é aberta e uma voz é ouvida no sistema de comunicação interno: “Sala de Reuniões número 3.º, primeiro andar.” O visitante, enfim, estava autorizado a subir. Uma vez no andar de cima, ele bate na porta e espera que seja aberta.

A sala, ampla, tem candelabros de cristais falsos iluminando o ambiente. Numa das paredes, o retrato do secretário-geral do Partido e líder alemão Erich Honecker. Na parede oposta, Vladimir Ilyich Lenin. O clima é solene. Quando os quinze convidados, todos do sexo masculino, estão devidamente sentados nos seus lugares, em volta da grande mesa, Uwe Berger, o anfitrião, na cabeceira, um sujeito miúdo e magro, ali pelos seus cinquenta anos de idade, nariz proeminente e óculos escuros, abre sua pasta de documentos e a reunião tem início.

Antiga prisão da Stasi, em Berlim, em foto tirada em 27 de março de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters
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Sonetos

“Liebe Mitstreiter” (“Caros camaradas em armas”), ele diz. “Hoje nós vamos aprender a respeito de... sonetos.” A cena, que à primeira vista parece o mais puro nonsense, de fato aconteceu. Quando a li pela primeira vez, nas páginas iniciais do livro The Stasi Poetry Circle – The Creative Writing Class That Tried to Win the Cold War (O Círculo de Poesia da Stasi – o curso de escrita criativa que tentou vencer a Guerra Fria), do jornalista alemão Philip Oltermann, eu achei que tinha lido errado, e voltei algumas linhas. Não, eu havia lido certo: a agência de espionagem alemã-oriental realmente mantinha um grupo de escrita criativa de poesia, realmente acreditando que isso poderia ajudar nos embates ideológicos e culturais da Guerra Fria. E, por mais estranho que possa parecer, havia razões para isso.

A Stasi foi criada em 1950, com a devida bênção de Moscou, inspirada na hoje lendária Cheka, antecessora da KGB. Assim como os agentes da KGB (como Vladimir Putin que, aliás, atuou junto à Stasi), os alemães se autointitulavam “chekistas.” A agência ficou conhecida por sua onipresença e eficiência, especialmente nas operações internas.

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Em 1989, quando caiu o Muro de Berlim, a Stasi contava com mais de 90 mil funcionários contratados e 173 mil informantes. Nenhuma agência, no mundo, teve tantos colaboradores, per capita, quanto a Stasi. Ela era mais eficiente e infiltrada do que, por exemplo, a antiga Gestapo nazista. Havia um agente para cada 166 habitantes. E, se forem computados os informantes eventuais, a agência teria chegado ao inacreditável número de um colaborador para cada 6,5 habitantes.

Não eram raros os casos em que um agente espionava outro, sem que nenhum dos dois soubesse que o espionado era colega, ou de cônjuges bisbilhotando cônjuges, como aconteceu com a ativista pró-paz Vera Langsfeld, espionada pelo próprio marido. Entre as profissões preferidas para serem recrutadas como informantes estavam, por exemplo, condutores de bondes, clérigos, zeladores e professores; ou seja, as pessoas que, em função de suas atividades, estavam em posição privilegiada para ouvir a conversa alheia.

A Stasi também tinha forte atuação externa, com muito mais agentes no exterior do que, por exemplo, o MI6 britânico. A grande diferença é que, do ponto de vista da Stasi, praticamente só a Alemanha Ocidental interessava: no país vizinho, a agência conseguiu se infiltrar em praticamente todas as esferas que considerava importantes, incluindo órgãos do governo e do serviço secreto, com um longo histórico de informações obtidas e de sabotagens praticadas.

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Pessoas em frente a uma projeção no ex-quartel general da Stasi em Berlim, na Alemanha, em foto de 4 de novembro de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Espionagem era, naturalmente, apenas uma parte do trabalho. A Stasi também prendia, interrogava, matava e, nos casos mais leves, dedicava-se a chantagear e destruir a estrutura psicológica, a reputação ou a vida familiar de quem quisesse. A agência também dava treinamentos em nações amigas: o serviço secreto cubano, por exemplo, foi construído com apoio e orientação da Stasi, assim como muitos agentes sírios, do regime de Hafez al-Assad (pai do atual líder, Bashar al-Assad) foram formados pela agência.

Tudo isso já se sabia. A novidade aqui é o grupo de escrita criativa de poemas. A questão é tentar entender de que maneira isso se encaixava nesse intrincado e pesado jogo de arapongagem e atividades clandestinas. Que utilidades teriam visto nisso os dirigentes da Stasi?

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A resposta começa na própria origem da Alemanha Oriental. Os primeiros dirigentes do país eram comunistas veteranos que haviam se exilado na União Soviética depois da ascensão dos nazistas ao poder, e lá permaneceram durante a II Guerra. E muitos deles, como todo bom socialista da primeira metade do século 20, acreditavam no poder transformador social das artes. Ou seja, parecia haver uma genuína crença de que formar poeticamente os agentes faria bem a eles.

Guerra cultural

Mas a principal razão para o clube de escrita criativa era bem mais pragmática: como a Guerra Fria era também cultural, a Stasi – assim como a CIA do lado ocidental – patrocinava revistas e eventos culturais supostamente independentes. E era importante contar com agentes capazes de se integrar naquele universo, agindo como poetas de verdade e, também, podendo ler nas entrelinhas o que escreviam os poetas dos quais se desconfiava.

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Segurança caminha entre prateleiras contendo documentos da do antigo Ministério de Segurança do Estado da Alemanha Oriental, conhecido como Stasi, em foto de 12 de março de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Se o clube de escrita conseguiu ter alguma efetividade, é outra questão. Uwe Berger, a pessoa que coordenou a reunião citada no início deste texto e principal “professor” do grupo, era um poeta e romancista medíocre que só conseguiu publicar seus pouco mais de 40 livros, recebendo alguns dos prêmios literários mais importantes do país, por conta de suas relações com a Stasi.

Fidelidade

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Ele produzia relatórios sobre a fidelidade ideológica de cada aluno, e sobre quaisquer pessoas com quem convivesse. Como seria esperado num país em que quase todo mundo era espião, Berger, quando ocupava o cargo de conselheiro da União de Escritores da Alemanha Oriental, denunciou seu então presidente – o seu rival Hermann Kant – sem saber que ele também era um agente.

Pelos exemplos mostrados por Oltermann, a conclusão – que não chega a surpreender – é que, se nem todos os poemas eram claramente engajados, do ponto de vista literário nenhum era grande coisa. Por exemplo: “Venha / Vamos conversar / e fazer seu mundo melhor / Venha / Vamos bater um papo / Sobre meus recentes esforços / Venha / Se você estiver por baixo / Venha..., mas não para se lamentar / porque então / será melhor não ter vindo.” (Jürgen Polinske, Venha; ou as linhas finais de um outro, este de Alexander Ruika, aluno inicialmente elogiado, que acabou despertando suspeitas e amargou um tempo na prisão: “Nós seguimos seus passos / Nós julgamos, proferimos sentenças / e nós perdoamos / Nós somos / uma Instituição.”

Em 1990, com a queda do Muro, o fim da Stasi e da própria Alemanha Oriental, encerram-se também as atividades do clube de escrita criativa. O “professor” Uwe Berger, desmascarado após a reunificação alemã, amargaria, até falecer em 2014, uma velhice de ostracismo e irrelevância, não conseguindo mais publicar. A eventual efetividade dos “alunos” como espiões de outros poetas é algo difícil de aferir num país que perseguia e prendia escritores por qualquer motivo; e, de qualquer modo, nos anos seguintes, nenhum deles teve algo parecido com uma carreira literária. Imaginar que de um grupo de agentes secretos da famigerada Stasi sairia alguma poesia decente talvez seja mesmo um pouco demais. E para além da história do clube, no qual o mal – antes de ser o banal de Hannah Arendt – era medíocre, o que brota do livro de Oltermann é um curioso retrato do que foi a vida intelectual na extinta Alemanha Oriental.

A cidade é Berlim Oriental, o ano é 1982, num outono frio, em tempos de Guerra Fria. Estamos em Adlershof, uma antiga base área da Segunda Guerra que abriga a sede da Stasi, a temida polícia secreta da Alemanha Comunista, a KGB alemã. Agentes de um grupo de elite chegam, um a um, para uma reunião. Alguns usam trajes civis, outros vestem uniformes militares. Numa antessala, cada um deles entrega seus documentos de identidade a um recepcionista, que interfona para os organizadores dentro da sala no andar de cima. Um portador é enviado até a antessala, recolhe os documentos e os leva para cima. Lá, as identidades são mais uma vez verificadas e, estando tudo certo, depois de alguns longos minutos de espera, uma porta com fechadura elétrica é aberta e uma voz é ouvida no sistema de comunicação interno: “Sala de Reuniões número 3.º, primeiro andar.” O visitante, enfim, estava autorizado a subir. Uma vez no andar de cima, ele bate na porta e espera que seja aberta.

A sala, ampla, tem candelabros de cristais falsos iluminando o ambiente. Numa das paredes, o retrato do secretário-geral do Partido e líder alemão Erich Honecker. Na parede oposta, Vladimir Ilyich Lenin. O clima é solene. Quando os quinze convidados, todos do sexo masculino, estão devidamente sentados nos seus lugares, em volta da grande mesa, Uwe Berger, o anfitrião, na cabeceira, um sujeito miúdo e magro, ali pelos seus cinquenta anos de idade, nariz proeminente e óculos escuros, abre sua pasta de documentos e a reunião tem início.

Antiga prisão da Stasi, em Berlim, em foto tirada em 27 de março de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Sonetos

“Liebe Mitstreiter” (“Caros camaradas em armas”), ele diz. “Hoje nós vamos aprender a respeito de... sonetos.” A cena, que à primeira vista parece o mais puro nonsense, de fato aconteceu. Quando a li pela primeira vez, nas páginas iniciais do livro The Stasi Poetry Circle – The Creative Writing Class That Tried to Win the Cold War (O Círculo de Poesia da Stasi – o curso de escrita criativa que tentou vencer a Guerra Fria), do jornalista alemão Philip Oltermann, eu achei que tinha lido errado, e voltei algumas linhas. Não, eu havia lido certo: a agência de espionagem alemã-oriental realmente mantinha um grupo de escrita criativa de poesia, realmente acreditando que isso poderia ajudar nos embates ideológicos e culturais da Guerra Fria. E, por mais estranho que possa parecer, havia razões para isso.

A Stasi foi criada em 1950, com a devida bênção de Moscou, inspirada na hoje lendária Cheka, antecessora da KGB. Assim como os agentes da KGB (como Vladimir Putin que, aliás, atuou junto à Stasi), os alemães se autointitulavam “chekistas.” A agência ficou conhecida por sua onipresença e eficiência, especialmente nas operações internas.

Em 1989, quando caiu o Muro de Berlim, a Stasi contava com mais de 90 mil funcionários contratados e 173 mil informantes. Nenhuma agência, no mundo, teve tantos colaboradores, per capita, quanto a Stasi. Ela era mais eficiente e infiltrada do que, por exemplo, a antiga Gestapo nazista. Havia um agente para cada 166 habitantes. E, se forem computados os informantes eventuais, a agência teria chegado ao inacreditável número de um colaborador para cada 6,5 habitantes.

Não eram raros os casos em que um agente espionava outro, sem que nenhum dos dois soubesse que o espionado era colega, ou de cônjuges bisbilhotando cônjuges, como aconteceu com a ativista pró-paz Vera Langsfeld, espionada pelo próprio marido. Entre as profissões preferidas para serem recrutadas como informantes estavam, por exemplo, condutores de bondes, clérigos, zeladores e professores; ou seja, as pessoas que, em função de suas atividades, estavam em posição privilegiada para ouvir a conversa alheia.

A Stasi também tinha forte atuação externa, com muito mais agentes no exterior do que, por exemplo, o MI6 britânico. A grande diferença é que, do ponto de vista da Stasi, praticamente só a Alemanha Ocidental interessava: no país vizinho, a agência conseguiu se infiltrar em praticamente todas as esferas que considerava importantes, incluindo órgãos do governo e do serviço secreto, com um longo histórico de informações obtidas e de sabotagens praticadas.

Pessoas em frente a uma projeção no ex-quartel general da Stasi em Berlim, na Alemanha, em foto de 4 de novembro de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Espionagem era, naturalmente, apenas uma parte do trabalho. A Stasi também prendia, interrogava, matava e, nos casos mais leves, dedicava-se a chantagear e destruir a estrutura psicológica, a reputação ou a vida familiar de quem quisesse. A agência também dava treinamentos em nações amigas: o serviço secreto cubano, por exemplo, foi construído com apoio e orientação da Stasi, assim como muitos agentes sírios, do regime de Hafez al-Assad (pai do atual líder, Bashar al-Assad) foram formados pela agência.

Tudo isso já se sabia. A novidade aqui é o grupo de escrita criativa de poemas. A questão é tentar entender de que maneira isso se encaixava nesse intrincado e pesado jogo de arapongagem e atividades clandestinas. Que utilidades teriam visto nisso os dirigentes da Stasi?

A resposta começa na própria origem da Alemanha Oriental. Os primeiros dirigentes do país eram comunistas veteranos que haviam se exilado na União Soviética depois da ascensão dos nazistas ao poder, e lá permaneceram durante a II Guerra. E muitos deles, como todo bom socialista da primeira metade do século 20, acreditavam no poder transformador social das artes. Ou seja, parecia haver uma genuína crença de que formar poeticamente os agentes faria bem a eles.

Guerra cultural

Mas a principal razão para o clube de escrita criativa era bem mais pragmática: como a Guerra Fria era também cultural, a Stasi – assim como a CIA do lado ocidental – patrocinava revistas e eventos culturais supostamente independentes. E era importante contar com agentes capazes de se integrar naquele universo, agindo como poetas de verdade e, também, podendo ler nas entrelinhas o que escreviam os poetas dos quais se desconfiava.

Segurança caminha entre prateleiras contendo documentos da do antigo Ministério de Segurança do Estado da Alemanha Oriental, conhecido como Stasi, em foto de 12 de março de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Se o clube de escrita conseguiu ter alguma efetividade, é outra questão. Uwe Berger, a pessoa que coordenou a reunião citada no início deste texto e principal “professor” do grupo, era um poeta e romancista medíocre que só conseguiu publicar seus pouco mais de 40 livros, recebendo alguns dos prêmios literários mais importantes do país, por conta de suas relações com a Stasi.

Fidelidade

Ele produzia relatórios sobre a fidelidade ideológica de cada aluno, e sobre quaisquer pessoas com quem convivesse. Como seria esperado num país em que quase todo mundo era espião, Berger, quando ocupava o cargo de conselheiro da União de Escritores da Alemanha Oriental, denunciou seu então presidente – o seu rival Hermann Kant – sem saber que ele também era um agente.

Pelos exemplos mostrados por Oltermann, a conclusão – que não chega a surpreender – é que, se nem todos os poemas eram claramente engajados, do ponto de vista literário nenhum era grande coisa. Por exemplo: “Venha / Vamos conversar / e fazer seu mundo melhor / Venha / Vamos bater um papo / Sobre meus recentes esforços / Venha / Se você estiver por baixo / Venha..., mas não para se lamentar / porque então / será melhor não ter vindo.” (Jürgen Polinske, Venha; ou as linhas finais de um outro, este de Alexander Ruika, aluno inicialmente elogiado, que acabou despertando suspeitas e amargou um tempo na prisão: “Nós seguimos seus passos / Nós julgamos, proferimos sentenças / e nós perdoamos / Nós somos / uma Instituição.”

Em 1990, com a queda do Muro, o fim da Stasi e da própria Alemanha Oriental, encerram-se também as atividades do clube de escrita criativa. O “professor” Uwe Berger, desmascarado após a reunificação alemã, amargaria, até falecer em 2014, uma velhice de ostracismo e irrelevância, não conseguindo mais publicar. A eventual efetividade dos “alunos” como espiões de outros poetas é algo difícil de aferir num país que perseguia e prendia escritores por qualquer motivo; e, de qualquer modo, nos anos seguintes, nenhum deles teve algo parecido com uma carreira literária. Imaginar que de um grupo de agentes secretos da famigerada Stasi sairia alguma poesia decente talvez seja mesmo um pouco demais. E para além da história do clube, no qual o mal – antes de ser o banal de Hannah Arendt – era medíocre, o que brota do livro de Oltermann é um curioso retrato do que foi a vida intelectual na extinta Alemanha Oriental.

A cidade é Berlim Oriental, o ano é 1982, num outono frio, em tempos de Guerra Fria. Estamos em Adlershof, uma antiga base área da Segunda Guerra que abriga a sede da Stasi, a temida polícia secreta da Alemanha Comunista, a KGB alemã. Agentes de um grupo de elite chegam, um a um, para uma reunião. Alguns usam trajes civis, outros vestem uniformes militares. Numa antessala, cada um deles entrega seus documentos de identidade a um recepcionista, que interfona para os organizadores dentro da sala no andar de cima. Um portador é enviado até a antessala, recolhe os documentos e os leva para cima. Lá, as identidades são mais uma vez verificadas e, estando tudo certo, depois de alguns longos minutos de espera, uma porta com fechadura elétrica é aberta e uma voz é ouvida no sistema de comunicação interno: “Sala de Reuniões número 3.º, primeiro andar.” O visitante, enfim, estava autorizado a subir. Uma vez no andar de cima, ele bate na porta e espera que seja aberta.

A sala, ampla, tem candelabros de cristais falsos iluminando o ambiente. Numa das paredes, o retrato do secretário-geral do Partido e líder alemão Erich Honecker. Na parede oposta, Vladimir Ilyich Lenin. O clima é solene. Quando os quinze convidados, todos do sexo masculino, estão devidamente sentados nos seus lugares, em volta da grande mesa, Uwe Berger, o anfitrião, na cabeceira, um sujeito miúdo e magro, ali pelos seus cinquenta anos de idade, nariz proeminente e óculos escuros, abre sua pasta de documentos e a reunião tem início.

Antiga prisão da Stasi, em Berlim, em foto tirada em 27 de março de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Sonetos

“Liebe Mitstreiter” (“Caros camaradas em armas”), ele diz. “Hoje nós vamos aprender a respeito de... sonetos.” A cena, que à primeira vista parece o mais puro nonsense, de fato aconteceu. Quando a li pela primeira vez, nas páginas iniciais do livro The Stasi Poetry Circle – The Creative Writing Class That Tried to Win the Cold War (O Círculo de Poesia da Stasi – o curso de escrita criativa que tentou vencer a Guerra Fria), do jornalista alemão Philip Oltermann, eu achei que tinha lido errado, e voltei algumas linhas. Não, eu havia lido certo: a agência de espionagem alemã-oriental realmente mantinha um grupo de escrita criativa de poesia, realmente acreditando que isso poderia ajudar nos embates ideológicos e culturais da Guerra Fria. E, por mais estranho que possa parecer, havia razões para isso.

A Stasi foi criada em 1950, com a devida bênção de Moscou, inspirada na hoje lendária Cheka, antecessora da KGB. Assim como os agentes da KGB (como Vladimir Putin que, aliás, atuou junto à Stasi), os alemães se autointitulavam “chekistas.” A agência ficou conhecida por sua onipresença e eficiência, especialmente nas operações internas.

Em 1989, quando caiu o Muro de Berlim, a Stasi contava com mais de 90 mil funcionários contratados e 173 mil informantes. Nenhuma agência, no mundo, teve tantos colaboradores, per capita, quanto a Stasi. Ela era mais eficiente e infiltrada do que, por exemplo, a antiga Gestapo nazista. Havia um agente para cada 166 habitantes. E, se forem computados os informantes eventuais, a agência teria chegado ao inacreditável número de um colaborador para cada 6,5 habitantes.

Não eram raros os casos em que um agente espionava outro, sem que nenhum dos dois soubesse que o espionado era colega, ou de cônjuges bisbilhotando cônjuges, como aconteceu com a ativista pró-paz Vera Langsfeld, espionada pelo próprio marido. Entre as profissões preferidas para serem recrutadas como informantes estavam, por exemplo, condutores de bondes, clérigos, zeladores e professores; ou seja, as pessoas que, em função de suas atividades, estavam em posição privilegiada para ouvir a conversa alheia.

A Stasi também tinha forte atuação externa, com muito mais agentes no exterior do que, por exemplo, o MI6 britânico. A grande diferença é que, do ponto de vista da Stasi, praticamente só a Alemanha Ocidental interessava: no país vizinho, a agência conseguiu se infiltrar em praticamente todas as esferas que considerava importantes, incluindo órgãos do governo e do serviço secreto, com um longo histórico de informações obtidas e de sabotagens praticadas.

Pessoas em frente a uma projeção no ex-quartel general da Stasi em Berlim, na Alemanha, em foto de 4 de novembro de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Espionagem era, naturalmente, apenas uma parte do trabalho. A Stasi também prendia, interrogava, matava e, nos casos mais leves, dedicava-se a chantagear e destruir a estrutura psicológica, a reputação ou a vida familiar de quem quisesse. A agência também dava treinamentos em nações amigas: o serviço secreto cubano, por exemplo, foi construído com apoio e orientação da Stasi, assim como muitos agentes sírios, do regime de Hafez al-Assad (pai do atual líder, Bashar al-Assad) foram formados pela agência.

Tudo isso já se sabia. A novidade aqui é o grupo de escrita criativa de poemas. A questão é tentar entender de que maneira isso se encaixava nesse intrincado e pesado jogo de arapongagem e atividades clandestinas. Que utilidades teriam visto nisso os dirigentes da Stasi?

A resposta começa na própria origem da Alemanha Oriental. Os primeiros dirigentes do país eram comunistas veteranos que haviam se exilado na União Soviética depois da ascensão dos nazistas ao poder, e lá permaneceram durante a II Guerra. E muitos deles, como todo bom socialista da primeira metade do século 20, acreditavam no poder transformador social das artes. Ou seja, parecia haver uma genuína crença de que formar poeticamente os agentes faria bem a eles.

Guerra cultural

Mas a principal razão para o clube de escrita criativa era bem mais pragmática: como a Guerra Fria era também cultural, a Stasi – assim como a CIA do lado ocidental – patrocinava revistas e eventos culturais supostamente independentes. E era importante contar com agentes capazes de se integrar naquele universo, agindo como poetas de verdade e, também, podendo ler nas entrelinhas o que escreviam os poetas dos quais se desconfiava.

Segurança caminha entre prateleiras contendo documentos da do antigo Ministério de Segurança do Estado da Alemanha Oriental, conhecido como Stasi, em foto de 12 de março de 2019.  Foto: Fabrizio Bensch/Reuters

Se o clube de escrita conseguiu ter alguma efetividade, é outra questão. Uwe Berger, a pessoa que coordenou a reunião citada no início deste texto e principal “professor” do grupo, era um poeta e romancista medíocre que só conseguiu publicar seus pouco mais de 40 livros, recebendo alguns dos prêmios literários mais importantes do país, por conta de suas relações com a Stasi.

Fidelidade

Ele produzia relatórios sobre a fidelidade ideológica de cada aluno, e sobre quaisquer pessoas com quem convivesse. Como seria esperado num país em que quase todo mundo era espião, Berger, quando ocupava o cargo de conselheiro da União de Escritores da Alemanha Oriental, denunciou seu então presidente – o seu rival Hermann Kant – sem saber que ele também era um agente.

Pelos exemplos mostrados por Oltermann, a conclusão – que não chega a surpreender – é que, se nem todos os poemas eram claramente engajados, do ponto de vista literário nenhum era grande coisa. Por exemplo: “Venha / Vamos conversar / e fazer seu mundo melhor / Venha / Vamos bater um papo / Sobre meus recentes esforços / Venha / Se você estiver por baixo / Venha..., mas não para se lamentar / porque então / será melhor não ter vindo.” (Jürgen Polinske, Venha; ou as linhas finais de um outro, este de Alexander Ruika, aluno inicialmente elogiado, que acabou despertando suspeitas e amargou um tempo na prisão: “Nós seguimos seus passos / Nós julgamos, proferimos sentenças / e nós perdoamos / Nós somos / uma Instituição.”

Em 1990, com a queda do Muro, o fim da Stasi e da própria Alemanha Oriental, encerram-se também as atividades do clube de escrita criativa. O “professor” Uwe Berger, desmascarado após a reunificação alemã, amargaria, até falecer em 2014, uma velhice de ostracismo e irrelevância, não conseguindo mais publicar. A eventual efetividade dos “alunos” como espiões de outros poetas é algo difícil de aferir num país que perseguia e prendia escritores por qualquer motivo; e, de qualquer modo, nos anos seguintes, nenhum deles teve algo parecido com uma carreira literária. Imaginar que de um grupo de agentes secretos da famigerada Stasi sairia alguma poesia decente talvez seja mesmo um pouco demais. E para além da história do clube, no qual o mal – antes de ser o banal de Hannah Arendt – era medíocre, o que brota do livro de Oltermann é um curioso retrato do que foi a vida intelectual na extinta Alemanha Oriental.

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