Como a história sombria de Boston inspirou novo livro de Dennis Lehane, autor de ‘A Ilha do Medo’


Autor de romances policiais de sucesso adaptados para o cinema, como ‘A Ilha do Medo’ e Sobre Meninos e Lobos’ usou as próprias lembranças para criar o cenário para ‘Golpe de Misericórdia’, chamado de obra-prima pelo The Wall Street Journal

Por Ubiratan Brasil
Foto: Benny Chiu
Entrevista comDennis LehaneEscritor

O verão de 1974 é marcante na trajetória do escritor americano Dennis Lehane. Então com 9 anos, em meio a um calor escaldante, o futuro autor de obras consagradas como Ilha do Medo e Sobre Meninos e Lobos presenciou um dos momentos mais sombrios da história da cidade de Boston.

Dirigindo para casa, seu pai pegou o caminho errado e se viu no meio de um violento protesto contra a decisão de um juiz que, a fim de atenuar as diferenças raciais, determinou que estudantes de escolas brancas seriam transportados de ônibus para escolas negras, e vice-versa.

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No primeiro dia de aula daquele mês de setembro, a maioria dos alunos ficou em casa. Um ônibus que levava uns poucos estudantes negros foi bombardeado com ovos, garrafas e tijolos. “O ódio estava em toda parte”, conta Lehane que, inspirado naqueles acontecimentos, escreveu Golpe de Misericórdia (Companhia das Letras), que traz uma descrição brutal da criminalidade e um retrato implacável do racismo nos Estados Unidos.

Baseado em suas lembranças ainda vívidas, Lehane, hoje com 58 anos, criou uma trama ficcional em que uma adolescente branca some e um jovem negro é encontrado morto no metrô. À primeira vista, não parece existir relação entre os dois eventos, mas os ânimos inflamados pela tentativa de integração escolar e o preconceito latente da população indicam o oposto.

É nesse contexto que surge Mary Pat Fennessy, uma mãe solteira de 42 anos que mora em conjuntos habitacionais no sul de Boston. Quando sua filha Jules não volta para casa na mesma noite em que um adolescente negro é morto em circunstâncias misteriosas, Mary Pat inicia a guerra solitária de uma mulher contra a máfia irlandesa, policiais corruptos e o racismo entranhado na história norte-americana.

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Cena do filme 'Ilha do Medo', com Mark Ruffalo e Leonardo DiCaprio. Paramount Pictures / Divulgação Foto:

Conhecido por tramas normalmente violentas e que, sob uma atmosfera sufocante, apresenta enredos investigativos, Lehane exibe aqui sua capacidade de investigar complexidades psicológicas. Sobre Golpe de Misericórdia, apontado pelo jornal Wall Street Journal como sua obra-prima, Lehane respondeu por e-mail as seguintes questões do Estadão.

‘Golpe de Misericórdia’ é uma obra de ficção, mas se baseia em eventos factuais. Você já pretendia escrever sobre essa época e, portanto, criou uma história em torno dela?

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Sempre quis ambientar um livro nesse período. Foi um verão transformador em minha própria vida.

O que você lembra pessoalmente sobre esse período da história de Boston?

Lembro-me do que você vê no livro – o calor, o ódio e a raiva, as coisas horríveis escritas nas paredes e nas laterais dos prédios, depois as imagens dos noticiários de adultos jogando pedras e garrafas em ônibus escolares cheios de crianças.

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Quanta pesquisa você fez para garantir que os detalhes estavam corretos?

Não muito. Confiei quase exclusivamente na minha memória. Pesquisei as datas e os preços das coisas, é claro, e me lembrei dos nomes de todas as diversas organizações que surgiram em torno dos movimentos anti-ônibus e pró-desagregação. Também localizei imagens de câmeras do senador Edward Kennedy sendo perseguido pela multidão até o prédio que leva o nome de seu falecido irmão, John. Mas, por outro lado, confiei apenas no que me lembrava daquele verão.

Você buscava dizer algo sobre a situação atual enquanto trabalhava neste livro?

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Um livro é sempre sobre a época em que foi escrito, tanto quanto sobre a época em que se passa. Não estamos vendo a diminuição do racismo atualmente. Muito pelo contrário. A internet tornou tudo muito mais fácil para aqueles que manteriam os pobres brigando entre si por algo tão ridículo quanto a diferença de cor, para que nunca descobrissem quem é seu verdadeiro inimigo.

Por falar sobre a linguagem: há muita crueza e vários termos raciais, difíceis de se usar hoje em dia, não?

É uma linguagem hoje condenável, mas era muito comum onde cresci e também no sul de Boston (que era o bairro mais próximo). Teria sido desonesto limpar a linguagem.

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O que esta história nos diz sobre como os seres humanos têm sucesso ou fracassam diante de dificuldades extremas?

Ah, essa é uma questão que remonta aos gregos antigos e à invenção do drama. As pessoas nunca são totalmente reveladas até vermos como reagem a circunstâncias extremas. É daí que vem a expressão ‘in extremis’, ou nos últimos instantes de vida. Mary Pat precisa ser reduzida a uma concha antes de poder enfrentar honestamente o preço de seu ódio, que ela transformou em um legado que manchou seus próprios filhos. Ela também descobre, pelo lado positivo, que é muito mais corajosa do que imaginava.

Você está mais interessado em quão diferente o passado é do presente, ou em quão semelhantes as diferentes épocas podem ser?

A raça humana não é uma raça, é um círculo. Cada geração faz a mesma bobagem que a anterior, só que de maneira diferente, muitas vezes com ferramentas mais avançadas.

O mal é um aliado da literatura? Palavras podem ser perigosas?

Os mitos podem ser perigosos, especialmente os fundamentais. Quando as pessoas preferem o mito aos fatos – e isso tem-se tornado cada vez mais comum neste século –, temos uma receita para a desumanização de outras culturas, cores ou credos. E, quando você desumaniza alguém, é muito fácil justificar assassiná-lo.

O verão de 1974 é marcante na trajetória do escritor americano Dennis Lehane. Então com 9 anos, em meio a um calor escaldante, o futuro autor de obras consagradas como Ilha do Medo e Sobre Meninos e Lobos presenciou um dos momentos mais sombrios da história da cidade de Boston.

Dirigindo para casa, seu pai pegou o caminho errado e se viu no meio de um violento protesto contra a decisão de um juiz que, a fim de atenuar as diferenças raciais, determinou que estudantes de escolas brancas seriam transportados de ônibus para escolas negras, e vice-versa.

No primeiro dia de aula daquele mês de setembro, a maioria dos alunos ficou em casa. Um ônibus que levava uns poucos estudantes negros foi bombardeado com ovos, garrafas e tijolos. “O ódio estava em toda parte”, conta Lehane que, inspirado naqueles acontecimentos, escreveu Golpe de Misericórdia (Companhia das Letras), que traz uma descrição brutal da criminalidade e um retrato implacável do racismo nos Estados Unidos.

Baseado em suas lembranças ainda vívidas, Lehane, hoje com 58 anos, criou uma trama ficcional em que uma adolescente branca some e um jovem negro é encontrado morto no metrô. À primeira vista, não parece existir relação entre os dois eventos, mas os ânimos inflamados pela tentativa de integração escolar e o preconceito latente da população indicam o oposto.

É nesse contexto que surge Mary Pat Fennessy, uma mãe solteira de 42 anos que mora em conjuntos habitacionais no sul de Boston. Quando sua filha Jules não volta para casa na mesma noite em que um adolescente negro é morto em circunstâncias misteriosas, Mary Pat inicia a guerra solitária de uma mulher contra a máfia irlandesa, policiais corruptos e o racismo entranhado na história norte-americana.

Cena do filme 'Ilha do Medo', com Mark Ruffalo e Leonardo DiCaprio. Paramount Pictures / Divulgação Foto:

Conhecido por tramas normalmente violentas e que, sob uma atmosfera sufocante, apresenta enredos investigativos, Lehane exibe aqui sua capacidade de investigar complexidades psicológicas. Sobre Golpe de Misericórdia, apontado pelo jornal Wall Street Journal como sua obra-prima, Lehane respondeu por e-mail as seguintes questões do Estadão.

‘Golpe de Misericórdia’ é uma obra de ficção, mas se baseia em eventos factuais. Você já pretendia escrever sobre essa época e, portanto, criou uma história em torno dela?

Sempre quis ambientar um livro nesse período. Foi um verão transformador em minha própria vida.

O que você lembra pessoalmente sobre esse período da história de Boston?

Lembro-me do que você vê no livro – o calor, o ódio e a raiva, as coisas horríveis escritas nas paredes e nas laterais dos prédios, depois as imagens dos noticiários de adultos jogando pedras e garrafas em ônibus escolares cheios de crianças.

Quanta pesquisa você fez para garantir que os detalhes estavam corretos?

Não muito. Confiei quase exclusivamente na minha memória. Pesquisei as datas e os preços das coisas, é claro, e me lembrei dos nomes de todas as diversas organizações que surgiram em torno dos movimentos anti-ônibus e pró-desagregação. Também localizei imagens de câmeras do senador Edward Kennedy sendo perseguido pela multidão até o prédio que leva o nome de seu falecido irmão, John. Mas, por outro lado, confiei apenas no que me lembrava daquele verão.

Você buscava dizer algo sobre a situação atual enquanto trabalhava neste livro?

Um livro é sempre sobre a época em que foi escrito, tanto quanto sobre a época em que se passa. Não estamos vendo a diminuição do racismo atualmente. Muito pelo contrário. A internet tornou tudo muito mais fácil para aqueles que manteriam os pobres brigando entre si por algo tão ridículo quanto a diferença de cor, para que nunca descobrissem quem é seu verdadeiro inimigo.

Por falar sobre a linguagem: há muita crueza e vários termos raciais, difíceis de se usar hoje em dia, não?

É uma linguagem hoje condenável, mas era muito comum onde cresci e também no sul de Boston (que era o bairro mais próximo). Teria sido desonesto limpar a linguagem.

O que esta história nos diz sobre como os seres humanos têm sucesso ou fracassam diante de dificuldades extremas?

Ah, essa é uma questão que remonta aos gregos antigos e à invenção do drama. As pessoas nunca são totalmente reveladas até vermos como reagem a circunstâncias extremas. É daí que vem a expressão ‘in extremis’, ou nos últimos instantes de vida. Mary Pat precisa ser reduzida a uma concha antes de poder enfrentar honestamente o preço de seu ódio, que ela transformou em um legado que manchou seus próprios filhos. Ela também descobre, pelo lado positivo, que é muito mais corajosa do que imaginava.

Você está mais interessado em quão diferente o passado é do presente, ou em quão semelhantes as diferentes épocas podem ser?

A raça humana não é uma raça, é um círculo. Cada geração faz a mesma bobagem que a anterior, só que de maneira diferente, muitas vezes com ferramentas mais avançadas.

O mal é um aliado da literatura? Palavras podem ser perigosas?

Os mitos podem ser perigosos, especialmente os fundamentais. Quando as pessoas preferem o mito aos fatos – e isso tem-se tornado cada vez mais comum neste século –, temos uma receita para a desumanização de outras culturas, cores ou credos. E, quando você desumaniza alguém, é muito fácil justificar assassiná-lo.

O verão de 1974 é marcante na trajetória do escritor americano Dennis Lehane. Então com 9 anos, em meio a um calor escaldante, o futuro autor de obras consagradas como Ilha do Medo e Sobre Meninos e Lobos presenciou um dos momentos mais sombrios da história da cidade de Boston.

Dirigindo para casa, seu pai pegou o caminho errado e se viu no meio de um violento protesto contra a decisão de um juiz que, a fim de atenuar as diferenças raciais, determinou que estudantes de escolas brancas seriam transportados de ônibus para escolas negras, e vice-versa.

No primeiro dia de aula daquele mês de setembro, a maioria dos alunos ficou em casa. Um ônibus que levava uns poucos estudantes negros foi bombardeado com ovos, garrafas e tijolos. “O ódio estava em toda parte”, conta Lehane que, inspirado naqueles acontecimentos, escreveu Golpe de Misericórdia (Companhia das Letras), que traz uma descrição brutal da criminalidade e um retrato implacável do racismo nos Estados Unidos.

Baseado em suas lembranças ainda vívidas, Lehane, hoje com 58 anos, criou uma trama ficcional em que uma adolescente branca some e um jovem negro é encontrado morto no metrô. À primeira vista, não parece existir relação entre os dois eventos, mas os ânimos inflamados pela tentativa de integração escolar e o preconceito latente da população indicam o oposto.

É nesse contexto que surge Mary Pat Fennessy, uma mãe solteira de 42 anos que mora em conjuntos habitacionais no sul de Boston. Quando sua filha Jules não volta para casa na mesma noite em que um adolescente negro é morto em circunstâncias misteriosas, Mary Pat inicia a guerra solitária de uma mulher contra a máfia irlandesa, policiais corruptos e o racismo entranhado na história norte-americana.

Cena do filme 'Ilha do Medo', com Mark Ruffalo e Leonardo DiCaprio. Paramount Pictures / Divulgação Foto:

Conhecido por tramas normalmente violentas e que, sob uma atmosfera sufocante, apresenta enredos investigativos, Lehane exibe aqui sua capacidade de investigar complexidades psicológicas. Sobre Golpe de Misericórdia, apontado pelo jornal Wall Street Journal como sua obra-prima, Lehane respondeu por e-mail as seguintes questões do Estadão.

‘Golpe de Misericórdia’ é uma obra de ficção, mas se baseia em eventos factuais. Você já pretendia escrever sobre essa época e, portanto, criou uma história em torno dela?

Sempre quis ambientar um livro nesse período. Foi um verão transformador em minha própria vida.

O que você lembra pessoalmente sobre esse período da história de Boston?

Lembro-me do que você vê no livro – o calor, o ódio e a raiva, as coisas horríveis escritas nas paredes e nas laterais dos prédios, depois as imagens dos noticiários de adultos jogando pedras e garrafas em ônibus escolares cheios de crianças.

Quanta pesquisa você fez para garantir que os detalhes estavam corretos?

Não muito. Confiei quase exclusivamente na minha memória. Pesquisei as datas e os preços das coisas, é claro, e me lembrei dos nomes de todas as diversas organizações que surgiram em torno dos movimentos anti-ônibus e pró-desagregação. Também localizei imagens de câmeras do senador Edward Kennedy sendo perseguido pela multidão até o prédio que leva o nome de seu falecido irmão, John. Mas, por outro lado, confiei apenas no que me lembrava daquele verão.

Você buscava dizer algo sobre a situação atual enquanto trabalhava neste livro?

Um livro é sempre sobre a época em que foi escrito, tanto quanto sobre a época em que se passa. Não estamos vendo a diminuição do racismo atualmente. Muito pelo contrário. A internet tornou tudo muito mais fácil para aqueles que manteriam os pobres brigando entre si por algo tão ridículo quanto a diferença de cor, para que nunca descobrissem quem é seu verdadeiro inimigo.

Por falar sobre a linguagem: há muita crueza e vários termos raciais, difíceis de se usar hoje em dia, não?

É uma linguagem hoje condenável, mas era muito comum onde cresci e também no sul de Boston (que era o bairro mais próximo). Teria sido desonesto limpar a linguagem.

O que esta história nos diz sobre como os seres humanos têm sucesso ou fracassam diante de dificuldades extremas?

Ah, essa é uma questão que remonta aos gregos antigos e à invenção do drama. As pessoas nunca são totalmente reveladas até vermos como reagem a circunstâncias extremas. É daí que vem a expressão ‘in extremis’, ou nos últimos instantes de vida. Mary Pat precisa ser reduzida a uma concha antes de poder enfrentar honestamente o preço de seu ódio, que ela transformou em um legado que manchou seus próprios filhos. Ela também descobre, pelo lado positivo, que é muito mais corajosa do que imaginava.

Você está mais interessado em quão diferente o passado é do presente, ou em quão semelhantes as diferentes épocas podem ser?

A raça humana não é uma raça, é um círculo. Cada geração faz a mesma bobagem que a anterior, só que de maneira diferente, muitas vezes com ferramentas mais avançadas.

O mal é um aliado da literatura? Palavras podem ser perigosas?

Os mitos podem ser perigosos, especialmente os fundamentais. Quando as pessoas preferem o mito aos fatos – e isso tem-se tornado cada vez mais comum neste século –, temos uma receita para a desumanização de outras culturas, cores ou credos. E, quando você desumaniza alguém, é muito fácil justificar assassiná-lo.

Entrevista por Ubiratan Brasil

É jornalista que trabalha com cultura e esportes, mas apaixonado por musicais, na tela ou no palco, onde até o drama mais banal pode se transformar em um clássico

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