Fala-se muito da “viragem” sofrida pelo húngaro György Lukács (1885-1971) por conta da revolução bolchevique de 1917. Antes, há o autor marcadamente hegeliano de obras como A Teoria do Romance, escrita entre 1914 e 1915 “sob um estado de ânimo de permanente desespero com a situação mundial” (nas palavras do próprio), pois, se a provável derrocada do czarismo e dos impérios Alemão e Austro-Húngaro parecia aprazível, “quem nos salva da civilização ocidental?”.
Nessa quimérica expectativa de uma “salvação”, há o elemento motivador daquele que abraça ideologicamente uma religião ou religiosamente uma ideologia. Houve, portanto, uma conversão ao marxismo, e a Estética, cuja publicação em quatro volumes a Boitempo inicia agora com A Peculiaridade do Estético (tradução de Nélio Schneider), é uma das obras mais célebres de Lukács após tal “viragem”.
Claro que a trajetória do pensador transcende uma divisão tão arbitrária e empobrecedora, e mesmo a referida “viragem” precisaria ser esmiuçada. Ainda há, por exemplo, um forte teor hegeliano em História e Consciência de Classe (1923).
O pensamento de Lukács
Em se tratando da Estética, foi importantíssimo o período que Lukács passou em Moscou no começo dos anos 1930. O professor José Paulo Netto, que assina a apresentação do volume, fala em uma “refundação” das concepções filosóficas do autor, que se voltaria para uma investigação de cunho ontológico.
Na URSS, ele teve acesso a textos inéditos de Marx, entre outros, e iniciou uma colaboração com o teórico literário soviético (nascido em Melitopol, na Ucrânia) Mikhail Lifschitz. A partir da leitura cerrada do material disponível no Instituto Marx-Engels, eles postularam a existência de uma teoria estética embrionária em textos marxianos e marxistas fundamentais.
“Refundado”, Lukács revisita aspectos d’A Teoria do Romance sob uma ótica dialético-materialista - os mais exaltados falam em “superação”, palavrinha que nunca cai bem em discussões filosóficas. Ele e Lifschitz compartilhavam de uma visão tradicionalista da arte, algo curioso, mas não incomum, em revolucionários.
Exemplo dessa disposição conservadora é o desprezo do húngaro por alguns dos maiores inovadores da forma literária, como Kafka (que comparava desfavoravelmente a Thomas Mann), Musil e Joyce. Ele preferia a estética realista, e exaltou Walter Scott e Balzac n’O Romance Histórico (1938).
Antes de abordar a Estética, convém ressaltar que algumas das posições de Lukács, sobretudo no que diz respeito aos crimes de Stalin, eram indefensáveis na época e, salvo engano (nunca se sabe, não é mesmo?), continuam indefensáveis hoje.
A desculpa oferecida por ele de que não criticou a farsa sanguinária dos “processos de Moscou” e outros crimes do regime stalinista por estar empenhado na oposição a Hitler é pusilânime. Talvez esse tipo de covardia seja incontornável para quem abraça uma perquirição de cores onto-historiais.
Algo similar pode ser observado no outro lado do espectro, no antissemitismo que Martin Heidegger evacuou nos Cadernos Negros. Os dizeres do historiador Paulo Bertran (em outro contexto) são lapidares: “A história é a grande prostituta de todos nós: história e desejo de história é o que perseguimos. A história arrogante, antrópica, insana”.
Materialismo dialético e a estética
O objetivo da Estética é delineado logo de saída por Lukács: “a fundamentação filosófica do tipo de pôr estético, a dedução da categoria específica da estética e a sua delimitação em relação a outros campos”.
O livro, publicado originalmente em 1963, era a primeira parte de um projeto que incluiria outros dois volumes, jamais escritos. Mas não há sensação de incompletude, até porque ele se deslocou para o campo ético e a rarefação ontológica. Assim, a teoria do reflexo, desenvolvida no início da obra, é crucial para a compreensão dos desdobramentos teóricos na Estética e em trabalhos posteriores.
Lukács vê no “comportamento cotidiano do homem” tanto o começo quanto o fim de “toda atividade humana”, pois, “quando se imagina o cotidiano como um grande rio, pode-se dizer que, nas formas superiores de recepção e reprodução da realidade, ciência e arte ramificam-se a partir dele”.
Em outras palavras, as objetivações irrompem do cotidiano e a ele regressam, enriquecendo-o, afirmando e reafirmando a autoconsciência humana. Tal processo se daria em uma realidade estruturalmente única, o que tornaria o materialismo dialético perfeito para problematizar a estética.
Por vezes, o idealismo com que Lukács “polemiza” parece mais um espantalho. Ele ignora, por exemplo, o aspecto realista de passagens importantes da Crítica da Razão Pura, como na Dedução Transcendental e na Refutação do Idealismo — a experiência interna e a experiência dos objetos externos como interdependentes.
Há outros problemas, como a noção de que o marxismo “lança nova luz sobre o presente e o passado, sobre toda a experiência humana”, pois “os fatos fundamentais da realidade (...) vêm à tona e podem tornar-se conteúdo da consciência humana”. Os perigos do anacronismo são bem conhecidos. O filósofo Paul Franks aponta que “o interesse da filosofia em sua história não é somente histórico”. Logo, uma história anacrônica do pensamento (como a marxista) não é apenas imprecisa: ela polui quaisquer respostas às questões desde sempre colocadas.
Portanto, ao ler a Estética, é saudável ignorar os espantalhos e se fixar no que há de melhor na contribuição de Lukács: a reiteração da arte como um reflexo da realidade e o resgate de uma acepção humanizadora da ciência, colmatando o abismo surgido na modernidade entre o estético e o científico.
Dada a centralidade do problema e o andamento da história conceitual, talvez seja possível limpar a abordagem lukacsiana de certas “determinações” poluidoras e aí, sim, chegar a uma ontologia realista capaz de sustentar a peculiaridade de seu olhar reflexivo.
*André de Leones é autor do romance Vento de Queimada (2023 - Record), entre outros.