Como ser uma pessoa criativa depois de ter criado uma pessoa? Como Tolstoi escrevia com 13 filhos?


Tolstoi deve ter concluído suas obras-primas trancando a porta do escritório. Mas o que as crianças faziam enquanto ele estava lá? Alguém sabe da sra. Tolstoi? Como continuar escrevendo na exaustão da maternidade? E como criar uma rotina criativa realista?

Por Monica Hesse

Oito ou nove anos atrás, uma grande amiga me ligou para pedir conselhos. Ela estava tentando escrever um romance, mas também tinha acabado de virar mãe e trabalhava em emprego de tempo integral e estava exausta. Eu, que já havia publicado alguns livros sem maiores preocupações, ofereci minha imensa sabedoria. Você precisa se esforçar mais, eu lhe disse com firmeza. Precisa levar sua escrita a sério – senão, ninguém vai levar você a sério. Reserve duas horas todas as noites. Tome um café e supere a exaustão. Você vai conseguir.

Os anos se passaram. Eu também tive um bebê. E também me propus a escrever um livro e, ao mesmo tempo, ser mãe e trabalhar em tempo integral. Em algum momento no meio dessa empreitada, liguei para minha amiga e perguntei se meu conselho tinha sido tão ruim quanto eu estava começando a perceber. Não, ela respondeu com uma risadinha, na verdade tinha sido muito pior. Ela tinha ficado chocada com a minha insensibilidade, mas aí concluiu que eu simplesmente não sabia o que estava dizendo e que, quando soubesse, pediria desculpas.

Nossa, amiga, mil desculpas.

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O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe - mas às vezes as coisas se misturam.  Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Meu primeiro livro pós-bebê foi lançado agora, e venho pensando, quase sem parar, na relação entre criatividade e maternidade. Eu adorava ler artigos com títulos como As Rotinas Diárias de Dez Artistas Famosos, até que me dei conta de que Liev Tolstoi deve ter concluído suas obras-primas trancando a porta do escritório para garantir produtividade ininterrupta. Mas o que seus 13 filhos faziam enquanto ele estava lá dentro? Alguém sabe da sra. Tolstoi? Para as mulheres que conheço, não há como reservar algumas horas ao final do dia de trabalho. O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe. E o final do dia da mãe nunca vem, porque as crianças de dois anos acordam alegremente às cinco da manhã, e a garganta inflamada chega para todas nós.

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Onde ficava a vida da mente nessa programação diária? O TikTok não parava de me mostrar vídeos de mães ostentando suas “rotinas de beleza realistas”, mas o que eu queria mesmo eram rotinas de criatividade realistas: mães que não davam a mínima para modeladores de cachos, mas que, de alguma forma, tinham composto uma sonata para violoncelo enquanto trabalhavam cinco dias por semana no consultório de dentista.

Nos meus dias mais sombrios do começo da maternidade, conheci uma mulher no parquinho que tinha acabado de fazer alguma coisa extraordinária (Prova de triatlo? Exposição de arte?) e, quando perguntamos como ela tinha arranjado tempo, ela deu de ombros e disse, modestamente: “Ah, você sabe”. (Avós morando em casa? Anfetamina?)

A questão maior é que não estávamos tentando descobrir como competir em provas de triatlo. Estávamos só tentando entender como ser uma pessoa.

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Quando você tem bebê ou criança pequena, parece completamente vital e impossível se lembrar de que você é uma pessoa por si só, com seus próprios sonhos e necessidades. Mas ser uma pessoa por si só é um legado sagrado para dar a uma criança. Minha mãe é artesã. Quando eu era pequena, ela pintava ovos ucranianos no gélido quartinho dos fundos, com o aquecedor a seus pés. Suas obras eram exibidas e vendidas em galerias de todo o centro-oeste americano. Eu sabia na época – e sei agora – que minha mãe morreria e mataria por mim. Mas também sabia que ela amava outras coisas. E já amava essas coisas antes de eu chegar. Ela tinha segredos e sabedoria para passar adiante.

Seu trabalho não tinha nada a ver comigo, mas era um dom. Pagou os acampamentos aonde eu e meu irmão íamos no verão. Foi exibido no Instituto de Arte de Chicago, ao lado de obras de Seurat e Hopper. Quando minha mãe morrer, vou desembrulhar cuidadosamente o papel de seda que envolve as incríveis obras de arte que ela me deu ao longo dos anos – e vou chorar.

Quero isso para a minha filha. Quero que ela saiba que a maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la.

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E ao querer tudo isso desesperadamente, criei uma rotina que me permitiu manter o controle sobre as partes de mim que eu era antes de ser mãe. Uma rotina de criatividade realista, por assim dizer.

A maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la. Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Escrevo entre 22h e meia-noite – de vez em quando vira entre duas e quatro da manhã. Escrevo de 300 a 400 palavras toda vez que estou no metrô. E mais 30 a 40 palavras toda vez que vou buscar minha filha na creche, no intervalo de três minutos entre eu tocar a campainha e alguém aparecer para me deixar entrar. Eu escrevo mal. Escrevo muito, muito mal, me lembrando vagamente de uma citação que certa vez ouvi atribuída à autora Jodi Picoult: “Sempre se pode editar uma página ruim, mas nunca se pode editar uma página em branco”.

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Parece uma rotina de Tolstói, de Virginia Woolf ou de qualquer outra pessoa sobre a qual eu tenha lido em algum artigo sobre artistas famosos? Não parece. Mas as páginas ruins são editadas, e depois ficam boas.

Buscar a criatividade como mãe que trabalha fora de casa significa, em outras palavras, deixar de lado qualquer noção romântica sobre o que é criatividade.

Significa não esperar que a inspiração apareça, mas, em vez disso, atacar a inspiração, bater a cabeça dela no chão e pular em cima. A inspiração é um luxo e, quando você entende isso, também consegue entender que a capacidade de criar algo por pura força de vontade – sem inspiração, sem rotina, sem tempo – é um ato muito mais criativo do que esperar a musa.

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Se minha grande amiga me ligasse agora, acho que isso é o que eu diria a ela: Você não vai ser Mark Twain, ninguém vai tocar o sininho para chamar você para o jantar que você não preparou. Você não vai fazer as vigorosas caminhadas de duas horas de Tchaikovsky pelo campo, nem passar a manhã comprando objetos inspiradores como Andy Warhol.

Mas você vai criar algo, não tanto superando a exaustão, mas convivendo com ela. E depois vai olhar além dela. E depois vai parar. E depois recomeçar. E depois ter uma disciplina sobre-humana, e depois comer um pacote inteiro de bolacha, e depois terminar uma coisa bonita às duas da manhã e entrar de fininho no quarto das crianças para ver outra coisa bonita. E depois vai pensar em como as coisas que nos deixam mais cansadas são as que nos dão mais motivo para criar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Oito ou nove anos atrás, uma grande amiga me ligou para pedir conselhos. Ela estava tentando escrever um romance, mas também tinha acabado de virar mãe e trabalhava em emprego de tempo integral e estava exausta. Eu, que já havia publicado alguns livros sem maiores preocupações, ofereci minha imensa sabedoria. Você precisa se esforçar mais, eu lhe disse com firmeza. Precisa levar sua escrita a sério – senão, ninguém vai levar você a sério. Reserve duas horas todas as noites. Tome um café e supere a exaustão. Você vai conseguir.

Os anos se passaram. Eu também tive um bebê. E também me propus a escrever um livro e, ao mesmo tempo, ser mãe e trabalhar em tempo integral. Em algum momento no meio dessa empreitada, liguei para minha amiga e perguntei se meu conselho tinha sido tão ruim quanto eu estava começando a perceber. Não, ela respondeu com uma risadinha, na verdade tinha sido muito pior. Ela tinha ficado chocada com a minha insensibilidade, mas aí concluiu que eu simplesmente não sabia o que estava dizendo e que, quando soubesse, pediria desculpas.

Nossa, amiga, mil desculpas.

O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe - mas às vezes as coisas se misturam.  Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Meu primeiro livro pós-bebê foi lançado agora, e venho pensando, quase sem parar, na relação entre criatividade e maternidade. Eu adorava ler artigos com títulos como As Rotinas Diárias de Dez Artistas Famosos, até que me dei conta de que Liev Tolstoi deve ter concluído suas obras-primas trancando a porta do escritório para garantir produtividade ininterrupta. Mas o que seus 13 filhos faziam enquanto ele estava lá dentro? Alguém sabe da sra. Tolstoi? Para as mulheres que conheço, não há como reservar algumas horas ao final do dia de trabalho. O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe. E o final do dia da mãe nunca vem, porque as crianças de dois anos acordam alegremente às cinco da manhã, e a garganta inflamada chega para todas nós.

Onde ficava a vida da mente nessa programação diária? O TikTok não parava de me mostrar vídeos de mães ostentando suas “rotinas de beleza realistas”, mas o que eu queria mesmo eram rotinas de criatividade realistas: mães que não davam a mínima para modeladores de cachos, mas que, de alguma forma, tinham composto uma sonata para violoncelo enquanto trabalhavam cinco dias por semana no consultório de dentista.

Nos meus dias mais sombrios do começo da maternidade, conheci uma mulher no parquinho que tinha acabado de fazer alguma coisa extraordinária (Prova de triatlo? Exposição de arte?) e, quando perguntamos como ela tinha arranjado tempo, ela deu de ombros e disse, modestamente: “Ah, você sabe”. (Avós morando em casa? Anfetamina?)

A questão maior é que não estávamos tentando descobrir como competir em provas de triatlo. Estávamos só tentando entender como ser uma pessoa.

Quando você tem bebê ou criança pequena, parece completamente vital e impossível se lembrar de que você é uma pessoa por si só, com seus próprios sonhos e necessidades. Mas ser uma pessoa por si só é um legado sagrado para dar a uma criança. Minha mãe é artesã. Quando eu era pequena, ela pintava ovos ucranianos no gélido quartinho dos fundos, com o aquecedor a seus pés. Suas obras eram exibidas e vendidas em galerias de todo o centro-oeste americano. Eu sabia na época – e sei agora – que minha mãe morreria e mataria por mim. Mas também sabia que ela amava outras coisas. E já amava essas coisas antes de eu chegar. Ela tinha segredos e sabedoria para passar adiante.

Seu trabalho não tinha nada a ver comigo, mas era um dom. Pagou os acampamentos aonde eu e meu irmão íamos no verão. Foi exibido no Instituto de Arte de Chicago, ao lado de obras de Seurat e Hopper. Quando minha mãe morrer, vou desembrulhar cuidadosamente o papel de seda que envolve as incríveis obras de arte que ela me deu ao longo dos anos – e vou chorar.

Quero isso para a minha filha. Quero que ela saiba que a maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la.

E ao querer tudo isso desesperadamente, criei uma rotina que me permitiu manter o controle sobre as partes de mim que eu era antes de ser mãe. Uma rotina de criatividade realista, por assim dizer.

A maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la. Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Escrevo entre 22h e meia-noite – de vez em quando vira entre duas e quatro da manhã. Escrevo de 300 a 400 palavras toda vez que estou no metrô. E mais 30 a 40 palavras toda vez que vou buscar minha filha na creche, no intervalo de três minutos entre eu tocar a campainha e alguém aparecer para me deixar entrar. Eu escrevo mal. Escrevo muito, muito mal, me lembrando vagamente de uma citação que certa vez ouvi atribuída à autora Jodi Picoult: “Sempre se pode editar uma página ruim, mas nunca se pode editar uma página em branco”.

Parece uma rotina de Tolstói, de Virginia Woolf ou de qualquer outra pessoa sobre a qual eu tenha lido em algum artigo sobre artistas famosos? Não parece. Mas as páginas ruins são editadas, e depois ficam boas.

Buscar a criatividade como mãe que trabalha fora de casa significa, em outras palavras, deixar de lado qualquer noção romântica sobre o que é criatividade.

Significa não esperar que a inspiração apareça, mas, em vez disso, atacar a inspiração, bater a cabeça dela no chão e pular em cima. A inspiração é um luxo e, quando você entende isso, também consegue entender que a capacidade de criar algo por pura força de vontade – sem inspiração, sem rotina, sem tempo – é um ato muito mais criativo do que esperar a musa.

Se minha grande amiga me ligasse agora, acho que isso é o que eu diria a ela: Você não vai ser Mark Twain, ninguém vai tocar o sininho para chamar você para o jantar que você não preparou. Você não vai fazer as vigorosas caminhadas de duas horas de Tchaikovsky pelo campo, nem passar a manhã comprando objetos inspiradores como Andy Warhol.

Mas você vai criar algo, não tanto superando a exaustão, mas convivendo com ela. E depois vai olhar além dela. E depois vai parar. E depois recomeçar. E depois ter uma disciplina sobre-humana, e depois comer um pacote inteiro de bolacha, e depois terminar uma coisa bonita às duas da manhã e entrar de fininho no quarto das crianças para ver outra coisa bonita. E depois vai pensar em como as coisas que nos deixam mais cansadas são as que nos dão mais motivo para criar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Oito ou nove anos atrás, uma grande amiga me ligou para pedir conselhos. Ela estava tentando escrever um romance, mas também tinha acabado de virar mãe e trabalhava em emprego de tempo integral e estava exausta. Eu, que já havia publicado alguns livros sem maiores preocupações, ofereci minha imensa sabedoria. Você precisa se esforçar mais, eu lhe disse com firmeza. Precisa levar sua escrita a sério – senão, ninguém vai levar você a sério. Reserve duas horas todas as noites. Tome um café e supere a exaustão. Você vai conseguir.

Os anos se passaram. Eu também tive um bebê. E também me propus a escrever um livro e, ao mesmo tempo, ser mãe e trabalhar em tempo integral. Em algum momento no meio dessa empreitada, liguei para minha amiga e perguntei se meu conselho tinha sido tão ruim quanto eu estava começando a perceber. Não, ela respondeu com uma risadinha, na verdade tinha sido muito pior. Ela tinha ficado chocada com a minha insensibilidade, mas aí concluiu que eu simplesmente não sabia o que estava dizendo e que, quando soubesse, pediria desculpas.

Nossa, amiga, mil desculpas.

O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe - mas às vezes as coisas se misturam.  Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Meu primeiro livro pós-bebê foi lançado agora, e venho pensando, quase sem parar, na relação entre criatividade e maternidade. Eu adorava ler artigos com títulos como As Rotinas Diárias de Dez Artistas Famosos, até que me dei conta de que Liev Tolstoi deve ter concluído suas obras-primas trancando a porta do escritório para garantir produtividade ininterrupta. Mas o que seus 13 filhos faziam enquanto ele estava lá dentro? Alguém sabe da sra. Tolstoi? Para as mulheres que conheço, não há como reservar algumas horas ao final do dia de trabalho. O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe. E o final do dia da mãe nunca vem, porque as crianças de dois anos acordam alegremente às cinco da manhã, e a garganta inflamada chega para todas nós.

Onde ficava a vida da mente nessa programação diária? O TikTok não parava de me mostrar vídeos de mães ostentando suas “rotinas de beleza realistas”, mas o que eu queria mesmo eram rotinas de criatividade realistas: mães que não davam a mínima para modeladores de cachos, mas que, de alguma forma, tinham composto uma sonata para violoncelo enquanto trabalhavam cinco dias por semana no consultório de dentista.

Nos meus dias mais sombrios do começo da maternidade, conheci uma mulher no parquinho que tinha acabado de fazer alguma coisa extraordinária (Prova de triatlo? Exposição de arte?) e, quando perguntamos como ela tinha arranjado tempo, ela deu de ombros e disse, modestamente: “Ah, você sabe”. (Avós morando em casa? Anfetamina?)

A questão maior é que não estávamos tentando descobrir como competir em provas de triatlo. Estávamos só tentando entender como ser uma pessoa.

Quando você tem bebê ou criança pequena, parece completamente vital e impossível se lembrar de que você é uma pessoa por si só, com seus próprios sonhos e necessidades. Mas ser uma pessoa por si só é um legado sagrado para dar a uma criança. Minha mãe é artesã. Quando eu era pequena, ela pintava ovos ucranianos no gélido quartinho dos fundos, com o aquecedor a seus pés. Suas obras eram exibidas e vendidas em galerias de todo o centro-oeste americano. Eu sabia na época – e sei agora – que minha mãe morreria e mataria por mim. Mas também sabia que ela amava outras coisas. E já amava essas coisas antes de eu chegar. Ela tinha segredos e sabedoria para passar adiante.

Seu trabalho não tinha nada a ver comigo, mas era um dom. Pagou os acampamentos aonde eu e meu irmão íamos no verão. Foi exibido no Instituto de Arte de Chicago, ao lado de obras de Seurat e Hopper. Quando minha mãe morrer, vou desembrulhar cuidadosamente o papel de seda que envolve as incríveis obras de arte que ela me deu ao longo dos anos – e vou chorar.

Quero isso para a minha filha. Quero que ela saiba que a maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la.

E ao querer tudo isso desesperadamente, criei uma rotina que me permitiu manter o controle sobre as partes de mim que eu era antes de ser mãe. Uma rotina de criatividade realista, por assim dizer.

A maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la. Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Escrevo entre 22h e meia-noite – de vez em quando vira entre duas e quatro da manhã. Escrevo de 300 a 400 palavras toda vez que estou no metrô. E mais 30 a 40 palavras toda vez que vou buscar minha filha na creche, no intervalo de três minutos entre eu tocar a campainha e alguém aparecer para me deixar entrar. Eu escrevo mal. Escrevo muito, muito mal, me lembrando vagamente de uma citação que certa vez ouvi atribuída à autora Jodi Picoult: “Sempre se pode editar uma página ruim, mas nunca se pode editar uma página em branco”.

Parece uma rotina de Tolstói, de Virginia Woolf ou de qualquer outra pessoa sobre a qual eu tenha lido em algum artigo sobre artistas famosos? Não parece. Mas as páginas ruins são editadas, e depois ficam boas.

Buscar a criatividade como mãe que trabalha fora de casa significa, em outras palavras, deixar de lado qualquer noção romântica sobre o que é criatividade.

Significa não esperar que a inspiração apareça, mas, em vez disso, atacar a inspiração, bater a cabeça dela no chão e pular em cima. A inspiração é um luxo e, quando você entende isso, também consegue entender que a capacidade de criar algo por pura força de vontade – sem inspiração, sem rotina, sem tempo – é um ato muito mais criativo do que esperar a musa.

Se minha grande amiga me ligasse agora, acho que isso é o que eu diria a ela: Você não vai ser Mark Twain, ninguém vai tocar o sininho para chamar você para o jantar que você não preparou. Você não vai fazer as vigorosas caminhadas de duas horas de Tchaikovsky pelo campo, nem passar a manhã comprando objetos inspiradores como Andy Warhol.

Mas você vai criar algo, não tanto superando a exaustão, mas convivendo com ela. E depois vai olhar além dela. E depois vai parar. E depois recomeçar. E depois ter uma disciplina sobre-humana, e depois comer um pacote inteiro de bolacha, e depois terminar uma coisa bonita às duas da manhã e entrar de fininho no quarto das crianças para ver outra coisa bonita. E depois vai pensar em como as coisas que nos deixam mais cansadas são as que nos dão mais motivo para criar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Oito ou nove anos atrás, uma grande amiga me ligou para pedir conselhos. Ela estava tentando escrever um romance, mas também tinha acabado de virar mãe e trabalhava em emprego de tempo integral e estava exausta. Eu, que já havia publicado alguns livros sem maiores preocupações, ofereci minha imensa sabedoria. Você precisa se esforçar mais, eu lhe disse com firmeza. Precisa levar sua escrita a sério – senão, ninguém vai levar você a sério. Reserve duas horas todas as noites. Tome um café e supere a exaustão. Você vai conseguir.

Os anos se passaram. Eu também tive um bebê. E também me propus a escrever um livro e, ao mesmo tempo, ser mãe e trabalhar em tempo integral. Em algum momento no meio dessa empreitada, liguei para minha amiga e perguntei se meu conselho tinha sido tão ruim quanto eu estava começando a perceber. Não, ela respondeu com uma risadinha, na verdade tinha sido muito pior. Ela tinha ficado chocada com a minha insensibilidade, mas aí concluiu que eu simplesmente não sabia o que estava dizendo e que, quando soubesse, pediria desculpas.

Nossa, amiga, mil desculpas.

O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe - mas às vezes as coisas se misturam.  Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Meu primeiro livro pós-bebê foi lançado agora, e venho pensando, quase sem parar, na relação entre criatividade e maternidade. Eu adorava ler artigos com títulos como As Rotinas Diárias de Dez Artistas Famosos, até que me dei conta de que Liev Tolstoi deve ter concluído suas obras-primas trancando a porta do escritório para garantir produtividade ininterrupta. Mas o que seus 13 filhos faziam enquanto ele estava lá dentro? Alguém sabe da sra. Tolstoi? Para as mulheres que conheço, não há como reservar algumas horas ao final do dia de trabalho. O final do dia de trabalho é o início do dia da mãe. E o final do dia da mãe nunca vem, porque as crianças de dois anos acordam alegremente às cinco da manhã, e a garganta inflamada chega para todas nós.

Onde ficava a vida da mente nessa programação diária? O TikTok não parava de me mostrar vídeos de mães ostentando suas “rotinas de beleza realistas”, mas o que eu queria mesmo eram rotinas de criatividade realistas: mães que não davam a mínima para modeladores de cachos, mas que, de alguma forma, tinham composto uma sonata para violoncelo enquanto trabalhavam cinco dias por semana no consultório de dentista.

Nos meus dias mais sombrios do começo da maternidade, conheci uma mulher no parquinho que tinha acabado de fazer alguma coisa extraordinária (Prova de triatlo? Exposição de arte?) e, quando perguntamos como ela tinha arranjado tempo, ela deu de ombros e disse, modestamente: “Ah, você sabe”. (Avós morando em casa? Anfetamina?)

A questão maior é que não estávamos tentando descobrir como competir em provas de triatlo. Estávamos só tentando entender como ser uma pessoa.

Quando você tem bebê ou criança pequena, parece completamente vital e impossível se lembrar de que você é uma pessoa por si só, com seus próprios sonhos e necessidades. Mas ser uma pessoa por si só é um legado sagrado para dar a uma criança. Minha mãe é artesã. Quando eu era pequena, ela pintava ovos ucranianos no gélido quartinho dos fundos, com o aquecedor a seus pés. Suas obras eram exibidas e vendidas em galerias de todo o centro-oeste americano. Eu sabia na época – e sei agora – que minha mãe morreria e mataria por mim. Mas também sabia que ela amava outras coisas. E já amava essas coisas antes de eu chegar. Ela tinha segredos e sabedoria para passar adiante.

Seu trabalho não tinha nada a ver comigo, mas era um dom. Pagou os acampamentos aonde eu e meu irmão íamos no verão. Foi exibido no Instituto de Arte de Chicago, ao lado de obras de Seurat e Hopper. Quando minha mãe morrer, vou desembrulhar cuidadosamente o papel de seda que envolve as incríveis obras de arte que ela me deu ao longo dos anos – e vou chorar.

Quero isso para a minha filha. Quero que ela saiba que a maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la.

E ao querer tudo isso desesperadamente, criei uma rotina que me permitiu manter o controle sobre as partes de mim que eu era antes de ser mãe. Uma rotina de criatividade realista, por assim dizer.

A maternidade não precisa atrofiar a personalidade: ao contrário, pode expandi-la. Foto: nataliaderiabina - stock.adobe.com

Escrevo entre 22h e meia-noite – de vez em quando vira entre duas e quatro da manhã. Escrevo de 300 a 400 palavras toda vez que estou no metrô. E mais 30 a 40 palavras toda vez que vou buscar minha filha na creche, no intervalo de três minutos entre eu tocar a campainha e alguém aparecer para me deixar entrar. Eu escrevo mal. Escrevo muito, muito mal, me lembrando vagamente de uma citação que certa vez ouvi atribuída à autora Jodi Picoult: “Sempre se pode editar uma página ruim, mas nunca se pode editar uma página em branco”.

Parece uma rotina de Tolstói, de Virginia Woolf ou de qualquer outra pessoa sobre a qual eu tenha lido em algum artigo sobre artistas famosos? Não parece. Mas as páginas ruins são editadas, e depois ficam boas.

Buscar a criatividade como mãe que trabalha fora de casa significa, em outras palavras, deixar de lado qualquer noção romântica sobre o que é criatividade.

Significa não esperar que a inspiração apareça, mas, em vez disso, atacar a inspiração, bater a cabeça dela no chão e pular em cima. A inspiração é um luxo e, quando você entende isso, também consegue entender que a capacidade de criar algo por pura força de vontade – sem inspiração, sem rotina, sem tempo – é um ato muito mais criativo do que esperar a musa.

Se minha grande amiga me ligasse agora, acho que isso é o que eu diria a ela: Você não vai ser Mark Twain, ninguém vai tocar o sininho para chamar você para o jantar que você não preparou. Você não vai fazer as vigorosas caminhadas de duas horas de Tchaikovsky pelo campo, nem passar a manhã comprando objetos inspiradores como Andy Warhol.

Mas você vai criar algo, não tanto superando a exaustão, mas convivendo com ela. E depois vai olhar além dela. E depois vai parar. E depois recomeçar. E depois ter uma disciplina sobre-humana, e depois comer um pacote inteiro de bolacha, e depois terminar uma coisa bonita às duas da manhã e entrar de fininho no quarto das crianças para ver outra coisa bonita. E depois vai pensar em como as coisas que nos deixam mais cansadas são as que nos dão mais motivo para criar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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