Quino parou com sua criação há 50 anos, mas suas tiras continuam vivas e mordazes até hoje. Em 1962, uma agência de publicidade na Argentina encomendou a Joaquín Salvador Lavado, o Quino, a criação de personagem para uma campanha – o nome deveria conter obrigatoriamente a sílaba Ma, pois o patrocinador era a firma Mansfield.
E assim nasceu Mafalda. A campanha publicitária nunca foi levada a cabo, mas um diretor da agência, ao se mudar para um trabalho na imprensa, solicitou a utilização da personagem para a revista Primeira Plana, em 1964. Foi um sucesso imediato. E conquistou a Europa e América Latina.
Umberto Eco escreveu: “O universo de Mafalda é o latino, o que a torna mais compreensível do que muitos personagens norte-americanos”. Quino nunca parou com seus cartuns e charges, mas em 1973 optou por descontinuar seu maior sucesso. “A tira virou um carimbo”, explicou. Referia-se ao visual, que tinha se tornado estandartizado, o que não lhe agradava como artista. Mas o fato é que seu conteúdo crítico político continua vivo até hoje nos livros que republicam suas manifestações surpreendentes, reflexões adultas de uma menina filósofa.
No Brasil, esses volumosos álbuns de luxo, cartonados e coloridos, são editados pela Martins Fontes - Selo Martins numa coletânea única, chamada de Toda Mafalda. Também houve edições em livros de bolso. Além disso, a editora reedita os cartuns (geniais) atuais do cartunista, que foram publicados no jornal O Clarín, aos domingos.
Quino foi homenageado neste ano no atual maior festival de comics do mundo, em Angoulême, na França. Ele não pôde viajar até lá, por motivos de saúde. Está com problema grave de glaucoma. Recentemente, o autor ressurgiu para o público em Buenos Aires, e foi recebido com delicadeza. Quino vive na capital da Argentina, mas tem residências também em Madri e Milão. Na ocasião do evento francês, deu seu depoimento por escrito: “O que me surpreende é que boa parte dos temas, para não dizer todos, continua atual e compreensível”, alegrou-se.
O Mundo Segundo Mafalda
Quando jovem, Quino passou sua lua de mel com Alicia, sua atual esposa e agente literária, no Brasil. E já naquela ocasião colecionou amigos e admiradores mútuos no Rio de Janeiro, como Ziraldo, Millôr, Fortuna, Jaguar e muitos outros. Eu o conheci em Lucca, quando aquela cidade italiana era o centro mundial dos comics, a Cannes dos quadrinhos.
Anos depois, tive a chance de convidá-lo a participar de eventos culturais brasileiros, muitas vezes em São Paulo. Numa dessas ocasiões, no Sesc Anchieta, a plateia reunia quase todos os cartunistas do Rio e São Paulo, encantados com a presença do ídolo deles. Também no Sesc Lapa, pediu que Ziraldo fizesse parte da mesa, modestamente destacando o brilho do nosso cartunista diante do público.
Era muito querido por aqui, creio mesmo que somente Saul Steinberg teria tal acolhida.
Como o filósofo beagle Snoopy, da tira de Charles Schulz, a originalidade da tira latino-americana de Quino estava no fato de uma menina ter a visão crítica do mundo como um adulto letrado, mas sem os vícios desse. Essa surpresa seduzia o leitor e dava o tom de humor e reflexão da obra. Mafalda se transformou no símbolo da crítica política da América Latina.
A Alemanha produziu desenhos animados com Mafalda para TV, exibidos aqui na extinta TV Tupi. Quino, porém, sempre preferiu os desenhos feitos por um amigo seu de Cuba. O licenciamento de produtos de sua criação continua até hoje. E Mafalda vive hoje na América e na Europa em reedições contínuas, recebidas com louvor e excelente críticas.
Mafalda, ao completar 50 anos, continua como um clássico dos quadrinhos, com conteúdo ácido e profundidade política e social provando a alta qualidade da arte da historieta agora reconhecida no mundo todo. Aos domingos, a página literária do New York Times lista os livros mais vendidos nas livrarias e as graphic novels no topo das listas, paralelamente à literatura.
Juntamente com os grandes criadores dessa arte característica do século 20, Quino muito contribuiu para esse reconhecimento. Como escreveu o mestre Will Eisner, trata-se de “uma arte que permanece, 50 anos depois, esperando pela sua completa aceitação por parte dos juízes culturais de nossa cultura”. Os povos europeus e latino-americanos já escolheram Mafalda como um ícone da nossa cultura, irreversivelmente. Mesmo que Quino não queira mais desenhá-la.