Como uma professora foi redescoberta por traduzir o livro ‘impossível’ de James Joyce


Tradução de ‘Ulisses’ feita por Bernardina Pinheiro, única mulher na América Latina a encarar os desafios linguísticos do monumento literário, passa por revalorização após ficar entre outras duas traduções. Neste Bloomsday, conheça sua história

Por Marcos Candido

A professora Bernardina da Silveira Pinheiro (1922-2021) lidava com uma despedida quando começou a tradução das obras de James Joyce (1882-1941).

Em 1993, o filho e ator Felipe Pinheiro havia morrido aos 28 anos, vítima de uma parada cardíaca. Por coincidência, ela havia recém terminado a tradução de O Retrato de um Artista Enquanto Jovem e recebia um grupo de jovens intelectuais no apartamento onde vivia, na zona norte do Rio de Janeiro, para ler os primeiros rascunhos do próximo e grandioso projeto dela: a tradução de Ulisses (ou de Ulysses, dependendo do tradutor), de Joyce.

Neste domingo, 16, é comemorado o Bloomsday (veja a programação do evento em São Paulo abaixo), dia mundial de celebração da obra do escritor irlandês. Lançado em 1922, Ulisses é considerado uma obra-prima da literatura mundial e narra o dia 16 de junho de 1904, quando o personagem Leopold Bloom caminha 18 horas por Dublin até reencontrar a esposa, Molly.

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A professora e tradutora Bernardina Pinheiro em 2005, quando ela lançou sua tradução do clássico de James Joyce Foto: Tasso Marcelo/Estadão

A história aparentemente simples é narrada com oralidade do inglês da época, trechos em germânico, latim, trocadilhos e estilos que mudam ao longo de 18 capítulos e mais de mil páginas. A complexidade da leitura tornou a obra em um marco cultuado na literatura mundial - e, para muitos idiomas, quase impossível de ser traduzido.

A tradução de Bernardina levou mais de uma década para ser concluída e só foi publicada em 2005, pela editora Objetiva. Apesar disso, durante o centenário da maior obra de James Joyce, em 2022, a professora Dirce Waltrick do Amarante, da Universidade Federal de Santa Catarina, ela também tradutora de Joyce, se revoltou com a ausência de uma reedição do trabalho de Bernardina.

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“Ela ficou obscurecida”, diz. “Eu comecei a questionar: por que não convidaram a obra da Bernardina para a festa? Iriam deixá-la fora do banquete”, diz.

Segundo ela, no meio acadêmico foi plantada a ideia de que Ulisses de Bernardina teria facilitado demais o texto e divulgado com menor apelo comercial pela editora. “Foi uma questão de mercado”, ressalta.

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Até então, a única tradução de Ulisses havia sido feita pelo filólogo Antônio Houaiss, em 1966. “A tradução de Houaiss aposta na erudição”, explica o professor Caetano Galindo, também tradutor de Ulysses (ele adotou a grafia com y) para o português. Ou seja, pode tornar a experiência ainda mais difícil.

Segundo ele, a proposta de Bernardina e a de Houaiss estão em polos opostos. “Ele vai traduzir shrill para estrídulo [estampido], uma palavra que ninguém usa, mas que tem o mesmo radical e isso importa para ele. A tradução da Bernardina foi um trabalho de democratização e de se concentrar em aspectos mais populares, orais e mais acessíveis”, diz.

Bernardina acrescenta notas de rodapé e um mapa de Dublin, além de utilizar uma linguagem contemporânea do português brasileiro dos anos 2000. A atualização do texto em relação ao de Houaiss, porém, não torna o labirinto de Joyce mais inofensivo.

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Galindo diz que é impossível simplificar Ulisses. Como exemplo, cita o 13º capítulo. A princípio, trata-se de uma visita de Bloom a uma maternidade. Por trás, porém, Joyce tenta demonstrar o processo de fecundação entre o germânico e o latim que formou o inglês.

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Primeira edição de Ulisses, livro de James Joyce publicado em 1922.  Foto: Crédito: Sotheby's

“Você tem uma sucessão de parágrafos narrativos em que cada parágrafo pertence a um momento da história da literatura inglesa e produz a imitação do estilo de um escritor dessa narrativa”, diz.

“Há uma mudança de estilo e de gênero, que passa do romance gótico ao romance sentimental de um parágrafo para o outro e isso é muito complicado de se reproduzir de verdade em tradução”, acrescenta o tradutor.

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O trabalho é tão complexo que, em países como a França, Ulisses precisou de um grupo de tradutores para ser lançado nos anos 20. Apesar disso, o texto original deste capítulo foi mantido como uma “homenagem.”

“Deixaram como tributo mesmo ou porque ninguém quis pegar? Porque, realmente, dá medo”, acrescenta Galindo. O receio em encarar o texto fez os franceses passarem cerca de 80 anos sem uma nova tradução.

Em determinados trechos, o uso de uma palavra está conectado a um trocadilho ou a uma piada que serão usados muito mais adiante por Joyce - o que torna a narrativa um grande quebra-cabeça para o tradutor.

Estátua de James Joyce em Dublin, onde o escritor viveu e situou sua obra mais cultuada: 'Ulisses' Foto: rninov - stock.adobe.com

“A tradução de Bernardina resgatou boa parte do humor impagável de Ulisses e que, talvez por um excesso de reverência literária, possa ter sido relegado a um segundo plano em outras traduções”, lembra o professor Roberto O’ Shea, da Universidade Federal de Santa Catarina, que no início dos anos 90 traduziu Dublinenses, de Joyce. “Ela encarou Ulisses com muito entusiasmo”, diz o amigo.

“[A Bernardina] precisava resolver questões semânticas, de aliteração. Há também uma questão eufônica em Joyce, que precisa ser observada rigorosamente porque tem funções estéticas, mas também temáticas. É um livro, no fim, sobre a própria linguagem”, diz O’ Shea.

O projeto de Bernardina ganhou tração quando ela se aposentou pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nos anos 90, onde chegou ao cargo de chefe do departamento de Letras durante a ditadura militar.

“Nos transferiram para um outro campus, ainda em reforma, pois as universidades eram vistas como ‘subversivas’ na época”, relembra a amiga Marlene Soares, professora aposentada pela UFRJ especialista em Shakespeare. “Íamos com dois sapatos: um para pisar no barro do prédio em construção e outro para voltar para casa.”

Reedição de ‘Ulisses’ sob protesto e a redescoberta de Bernardina

A tradução de Ulisses gerou celebrações entre amigos. Apesar disso, para a professora Dirce, como havia duas traduções disponíveis no mercado - a de Houaiss, de 66, e a de Galindo, de 2012 e reeditada em 2022 - a versão de Bernardina, de 2005, passou a largo sem reedições em datas comemorativas e era encontrada apenas em sebos.

“Muito mais do que academia, houve uma questão de mercado”, defende Dirce, que afirma que as traduções Houaiss e Galindo contaram com reedições em 2021 e campanhas de marketing que, para ela, “jogou uma pá de cal” na de Bernardina, que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti.

Sob protestos dos meios joycianos, uma nova reedição da tradução de Bernardina só foi publicada só um ano depois dos demais tradutores, no final de 2022, depois das comemorações pelo centenário da obra.

Desde então, a professora passa por uma uma espécie de redescoberta. Hoje, a obra também serve como apoio para uma tradução coletiva de Ulisses feita por estudiosos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que deve ser lançada ainda neste ano.

Edição relançada de 'Ulisses', traduzida por Bernardina Pinheiro, de 2022 Foto: Reprodução/Nova Fronteira

No dia 22 de junho, a partir das 10h30, a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano também vai realizar um encontro sobre literatura irlandesa com convidados no Morumbi, onde uma mesa vai debater o protagonismo das personagens femininas de Joyce, como Molly Bloom (de Ulisses) e Ana Livia Plurabelle (de Finnegans Wake), onde o trabalho de Bernardina, única tradutora de Ulisses na América Latina, também deverá marcar presença na discussão.

Nos últimos anos de vida, Bernardina ainda recebia amigos em casa, que levavam presentes - ela tinha uma predileção em ganhar panos de prato - e passava horas a discutir política e Joyce. Junto às traduções de Houaiss e Galindo, a de Bernardina fez o Brasil ser um dos países com a maior quantidade de traduções de Ulisses no mundo.

Bernardina morreu no dia 7 de outubro, no Rio de Janeiro, aos 99 anos, vítima de uma pneumonia, em 2021. Segundo amigos, doou o acervo de livros para a Escola Letra Freudiana, no Rio de Janeiro, onde anualmente celebrava o Bloomsday.

Além de Felipe, do qual os amigos afirmam ter sido um dos maiores golpes que teve durante a vida, Bernardina teve quatro filhos, seis netos e 11 bisnetos. Também deixou o desejo de traduzir As Viagens de Gulliver, escrito em 1726 pelo também irlandês Jonathan Swift, onde um viajante se aventura por uma terra de gigantes.

As três edições de Ulisses

Ulisses

  • Autor: James Joyces
  • Trad.: Bernardina da Silveira Pinheiro
  • Editora: Nova Fronteira (1016 páginas págs.; R$ 199)

Ulysses

  • Autor: James Joyce
  • Trad.: Caetano W. Galindo
  • Editora: Cia. das Letras (1112 págs.; R$ 89,90)

Ulisses

  • Autor: James Joyce
  • Trad.: Antônio Houaiss
  • Editora: Civilização Brasileira (846 págs.; R$ 109)

Veja a programação do Bloomsday de SP

O 37º Bloomsday de São Paulo será realizado no jardim da Casa das Rosas (Av. Paulista, 37) neste domingo, 16, com o tema Riocorrente. A entrada é gratuita e não há necessidade de inscrição.

  • Abertura, com o curador Rodrigo Bravo
  • Leitura por Rodrigo Bravo e Solange P. P. Carvalho – no original e na tradução de Caetano Galindo – de trecho do capítulo 4 de Ulysses sobre o rio Liffey
  • Leitura dramática do poema The Brook, de Alfred Lord Tennyson, em inglês e português, por Rodrigo Bravo
  • Lucio Agra lê o trecho inicial de Finnegans Wake em inglês (o fragmento 1 do Panaroma do Finnegans Wake, de Augusto e Haroldo de Campos) na tradução de Augusto de Campos
  • Vitória Siviero lê trecho do poema A meditação sobre o Tietê (de Mário de Andrade)
  • Reynaldo Damazio lê trecho do poema O rio (de João Cabral de Melo Neto)
  • Julio Mendonça lê trecho do conto A terceira margem do rio (de Guimarães Rosa)
  • Apresentação de músicas tradicionais irlandesas pelo grupo Tunas Celtic Band, acompanhados pela dançarina Letícia Pires

A professora Bernardina da Silveira Pinheiro (1922-2021) lidava com uma despedida quando começou a tradução das obras de James Joyce (1882-1941).

Em 1993, o filho e ator Felipe Pinheiro havia morrido aos 28 anos, vítima de uma parada cardíaca. Por coincidência, ela havia recém terminado a tradução de O Retrato de um Artista Enquanto Jovem e recebia um grupo de jovens intelectuais no apartamento onde vivia, na zona norte do Rio de Janeiro, para ler os primeiros rascunhos do próximo e grandioso projeto dela: a tradução de Ulisses (ou de Ulysses, dependendo do tradutor), de Joyce.

Neste domingo, 16, é comemorado o Bloomsday (veja a programação do evento em São Paulo abaixo), dia mundial de celebração da obra do escritor irlandês. Lançado em 1922, Ulisses é considerado uma obra-prima da literatura mundial e narra o dia 16 de junho de 1904, quando o personagem Leopold Bloom caminha 18 horas por Dublin até reencontrar a esposa, Molly.

A professora e tradutora Bernardina Pinheiro em 2005, quando ela lançou sua tradução do clássico de James Joyce Foto: Tasso Marcelo/Estadão

A história aparentemente simples é narrada com oralidade do inglês da época, trechos em germânico, latim, trocadilhos e estilos que mudam ao longo de 18 capítulos e mais de mil páginas. A complexidade da leitura tornou a obra em um marco cultuado na literatura mundial - e, para muitos idiomas, quase impossível de ser traduzido.

A tradução de Bernardina levou mais de uma década para ser concluída e só foi publicada em 2005, pela editora Objetiva. Apesar disso, durante o centenário da maior obra de James Joyce, em 2022, a professora Dirce Waltrick do Amarante, da Universidade Federal de Santa Catarina, ela também tradutora de Joyce, se revoltou com a ausência de uma reedição do trabalho de Bernardina.

“Ela ficou obscurecida”, diz. “Eu comecei a questionar: por que não convidaram a obra da Bernardina para a festa? Iriam deixá-la fora do banquete”, diz.

Segundo ela, no meio acadêmico foi plantada a ideia de que Ulisses de Bernardina teria facilitado demais o texto e divulgado com menor apelo comercial pela editora. “Foi uma questão de mercado”, ressalta.

Até então, a única tradução de Ulisses havia sido feita pelo filólogo Antônio Houaiss, em 1966. “A tradução de Houaiss aposta na erudição”, explica o professor Caetano Galindo, também tradutor de Ulysses (ele adotou a grafia com y) para o português. Ou seja, pode tornar a experiência ainda mais difícil.

Segundo ele, a proposta de Bernardina e a de Houaiss estão em polos opostos. “Ele vai traduzir shrill para estrídulo [estampido], uma palavra que ninguém usa, mas que tem o mesmo radical e isso importa para ele. A tradução da Bernardina foi um trabalho de democratização e de se concentrar em aspectos mais populares, orais e mais acessíveis”, diz.

Bernardina acrescenta notas de rodapé e um mapa de Dublin, além de utilizar uma linguagem contemporânea do português brasileiro dos anos 2000. A atualização do texto em relação ao de Houaiss, porém, não torna o labirinto de Joyce mais inofensivo.

Galindo diz que é impossível simplificar Ulisses. Como exemplo, cita o 13º capítulo. A princípio, trata-se de uma visita de Bloom a uma maternidade. Por trás, porém, Joyce tenta demonstrar o processo de fecundação entre o germânico e o latim que formou o inglês.

Primeira edição de Ulisses, livro de James Joyce publicado em 1922.  Foto: Crédito: Sotheby's

“Você tem uma sucessão de parágrafos narrativos em que cada parágrafo pertence a um momento da história da literatura inglesa e produz a imitação do estilo de um escritor dessa narrativa”, diz.

“Há uma mudança de estilo e de gênero, que passa do romance gótico ao romance sentimental de um parágrafo para o outro e isso é muito complicado de se reproduzir de verdade em tradução”, acrescenta o tradutor.

O trabalho é tão complexo que, em países como a França, Ulisses precisou de um grupo de tradutores para ser lançado nos anos 20. Apesar disso, o texto original deste capítulo foi mantido como uma “homenagem.”

“Deixaram como tributo mesmo ou porque ninguém quis pegar? Porque, realmente, dá medo”, acrescenta Galindo. O receio em encarar o texto fez os franceses passarem cerca de 80 anos sem uma nova tradução.

Em determinados trechos, o uso de uma palavra está conectado a um trocadilho ou a uma piada que serão usados muito mais adiante por Joyce - o que torna a narrativa um grande quebra-cabeça para o tradutor.

Estátua de James Joyce em Dublin, onde o escritor viveu e situou sua obra mais cultuada: 'Ulisses' Foto: rninov - stock.adobe.com

“A tradução de Bernardina resgatou boa parte do humor impagável de Ulisses e que, talvez por um excesso de reverência literária, possa ter sido relegado a um segundo plano em outras traduções”, lembra o professor Roberto O’ Shea, da Universidade Federal de Santa Catarina, que no início dos anos 90 traduziu Dublinenses, de Joyce. “Ela encarou Ulisses com muito entusiasmo”, diz o amigo.

“[A Bernardina] precisava resolver questões semânticas, de aliteração. Há também uma questão eufônica em Joyce, que precisa ser observada rigorosamente porque tem funções estéticas, mas também temáticas. É um livro, no fim, sobre a própria linguagem”, diz O’ Shea.

O projeto de Bernardina ganhou tração quando ela se aposentou pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nos anos 90, onde chegou ao cargo de chefe do departamento de Letras durante a ditadura militar.

“Nos transferiram para um outro campus, ainda em reforma, pois as universidades eram vistas como ‘subversivas’ na época”, relembra a amiga Marlene Soares, professora aposentada pela UFRJ especialista em Shakespeare. “Íamos com dois sapatos: um para pisar no barro do prédio em construção e outro para voltar para casa.”

Reedição de ‘Ulisses’ sob protesto e a redescoberta de Bernardina

A tradução de Ulisses gerou celebrações entre amigos. Apesar disso, para a professora Dirce, como havia duas traduções disponíveis no mercado - a de Houaiss, de 66, e a de Galindo, de 2012 e reeditada em 2022 - a versão de Bernardina, de 2005, passou a largo sem reedições em datas comemorativas e era encontrada apenas em sebos.

“Muito mais do que academia, houve uma questão de mercado”, defende Dirce, que afirma que as traduções Houaiss e Galindo contaram com reedições em 2021 e campanhas de marketing que, para ela, “jogou uma pá de cal” na de Bernardina, que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti.

Sob protestos dos meios joycianos, uma nova reedição da tradução de Bernardina só foi publicada só um ano depois dos demais tradutores, no final de 2022, depois das comemorações pelo centenário da obra.

Desde então, a professora passa por uma uma espécie de redescoberta. Hoje, a obra também serve como apoio para uma tradução coletiva de Ulisses feita por estudiosos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que deve ser lançada ainda neste ano.

Edição relançada de 'Ulisses', traduzida por Bernardina Pinheiro, de 2022 Foto: Reprodução/Nova Fronteira

No dia 22 de junho, a partir das 10h30, a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano também vai realizar um encontro sobre literatura irlandesa com convidados no Morumbi, onde uma mesa vai debater o protagonismo das personagens femininas de Joyce, como Molly Bloom (de Ulisses) e Ana Livia Plurabelle (de Finnegans Wake), onde o trabalho de Bernardina, única tradutora de Ulisses na América Latina, também deverá marcar presença na discussão.

Nos últimos anos de vida, Bernardina ainda recebia amigos em casa, que levavam presentes - ela tinha uma predileção em ganhar panos de prato - e passava horas a discutir política e Joyce. Junto às traduções de Houaiss e Galindo, a de Bernardina fez o Brasil ser um dos países com a maior quantidade de traduções de Ulisses no mundo.

Bernardina morreu no dia 7 de outubro, no Rio de Janeiro, aos 99 anos, vítima de uma pneumonia, em 2021. Segundo amigos, doou o acervo de livros para a Escola Letra Freudiana, no Rio de Janeiro, onde anualmente celebrava o Bloomsday.

Além de Felipe, do qual os amigos afirmam ter sido um dos maiores golpes que teve durante a vida, Bernardina teve quatro filhos, seis netos e 11 bisnetos. Também deixou o desejo de traduzir As Viagens de Gulliver, escrito em 1726 pelo também irlandês Jonathan Swift, onde um viajante se aventura por uma terra de gigantes.

As três edições de Ulisses

Ulisses

  • Autor: James Joyces
  • Trad.: Bernardina da Silveira Pinheiro
  • Editora: Nova Fronteira (1016 páginas págs.; R$ 199)

Ulysses

  • Autor: James Joyce
  • Trad.: Caetano W. Galindo
  • Editora: Cia. das Letras (1112 págs.; R$ 89,90)

Ulisses

  • Autor: James Joyce
  • Trad.: Antônio Houaiss
  • Editora: Civilização Brasileira (846 págs.; R$ 109)

Veja a programação do Bloomsday de SP

O 37º Bloomsday de São Paulo será realizado no jardim da Casa das Rosas (Av. Paulista, 37) neste domingo, 16, com o tema Riocorrente. A entrada é gratuita e não há necessidade de inscrição.

  • Abertura, com o curador Rodrigo Bravo
  • Leitura por Rodrigo Bravo e Solange P. P. Carvalho – no original e na tradução de Caetano Galindo – de trecho do capítulo 4 de Ulysses sobre o rio Liffey
  • Leitura dramática do poema The Brook, de Alfred Lord Tennyson, em inglês e português, por Rodrigo Bravo
  • Lucio Agra lê o trecho inicial de Finnegans Wake em inglês (o fragmento 1 do Panaroma do Finnegans Wake, de Augusto e Haroldo de Campos) na tradução de Augusto de Campos
  • Vitória Siviero lê trecho do poema A meditação sobre o Tietê (de Mário de Andrade)
  • Reynaldo Damazio lê trecho do poema O rio (de João Cabral de Melo Neto)
  • Julio Mendonça lê trecho do conto A terceira margem do rio (de Guimarães Rosa)
  • Apresentação de músicas tradicionais irlandesas pelo grupo Tunas Celtic Band, acompanhados pela dançarina Letícia Pires

A professora Bernardina da Silveira Pinheiro (1922-2021) lidava com uma despedida quando começou a tradução das obras de James Joyce (1882-1941).

Em 1993, o filho e ator Felipe Pinheiro havia morrido aos 28 anos, vítima de uma parada cardíaca. Por coincidência, ela havia recém terminado a tradução de O Retrato de um Artista Enquanto Jovem e recebia um grupo de jovens intelectuais no apartamento onde vivia, na zona norte do Rio de Janeiro, para ler os primeiros rascunhos do próximo e grandioso projeto dela: a tradução de Ulisses (ou de Ulysses, dependendo do tradutor), de Joyce.

Neste domingo, 16, é comemorado o Bloomsday (veja a programação do evento em São Paulo abaixo), dia mundial de celebração da obra do escritor irlandês. Lançado em 1922, Ulisses é considerado uma obra-prima da literatura mundial e narra o dia 16 de junho de 1904, quando o personagem Leopold Bloom caminha 18 horas por Dublin até reencontrar a esposa, Molly.

A professora e tradutora Bernardina Pinheiro em 2005, quando ela lançou sua tradução do clássico de James Joyce Foto: Tasso Marcelo/Estadão

A história aparentemente simples é narrada com oralidade do inglês da época, trechos em germânico, latim, trocadilhos e estilos que mudam ao longo de 18 capítulos e mais de mil páginas. A complexidade da leitura tornou a obra em um marco cultuado na literatura mundial - e, para muitos idiomas, quase impossível de ser traduzido.

A tradução de Bernardina levou mais de uma década para ser concluída e só foi publicada em 2005, pela editora Objetiva. Apesar disso, durante o centenário da maior obra de James Joyce, em 2022, a professora Dirce Waltrick do Amarante, da Universidade Federal de Santa Catarina, ela também tradutora de Joyce, se revoltou com a ausência de uma reedição do trabalho de Bernardina.

“Ela ficou obscurecida”, diz. “Eu comecei a questionar: por que não convidaram a obra da Bernardina para a festa? Iriam deixá-la fora do banquete”, diz.

Segundo ela, no meio acadêmico foi plantada a ideia de que Ulisses de Bernardina teria facilitado demais o texto e divulgado com menor apelo comercial pela editora. “Foi uma questão de mercado”, ressalta.

Até então, a única tradução de Ulisses havia sido feita pelo filólogo Antônio Houaiss, em 1966. “A tradução de Houaiss aposta na erudição”, explica o professor Caetano Galindo, também tradutor de Ulysses (ele adotou a grafia com y) para o português. Ou seja, pode tornar a experiência ainda mais difícil.

Segundo ele, a proposta de Bernardina e a de Houaiss estão em polos opostos. “Ele vai traduzir shrill para estrídulo [estampido], uma palavra que ninguém usa, mas que tem o mesmo radical e isso importa para ele. A tradução da Bernardina foi um trabalho de democratização e de se concentrar em aspectos mais populares, orais e mais acessíveis”, diz.

Bernardina acrescenta notas de rodapé e um mapa de Dublin, além de utilizar uma linguagem contemporânea do português brasileiro dos anos 2000. A atualização do texto em relação ao de Houaiss, porém, não torna o labirinto de Joyce mais inofensivo.

Galindo diz que é impossível simplificar Ulisses. Como exemplo, cita o 13º capítulo. A princípio, trata-se de uma visita de Bloom a uma maternidade. Por trás, porém, Joyce tenta demonstrar o processo de fecundação entre o germânico e o latim que formou o inglês.

Primeira edição de Ulisses, livro de James Joyce publicado em 1922.  Foto: Crédito: Sotheby's

“Você tem uma sucessão de parágrafos narrativos em que cada parágrafo pertence a um momento da história da literatura inglesa e produz a imitação do estilo de um escritor dessa narrativa”, diz.

“Há uma mudança de estilo e de gênero, que passa do romance gótico ao romance sentimental de um parágrafo para o outro e isso é muito complicado de se reproduzir de verdade em tradução”, acrescenta o tradutor.

O trabalho é tão complexo que, em países como a França, Ulisses precisou de um grupo de tradutores para ser lançado nos anos 20. Apesar disso, o texto original deste capítulo foi mantido como uma “homenagem.”

“Deixaram como tributo mesmo ou porque ninguém quis pegar? Porque, realmente, dá medo”, acrescenta Galindo. O receio em encarar o texto fez os franceses passarem cerca de 80 anos sem uma nova tradução.

Em determinados trechos, o uso de uma palavra está conectado a um trocadilho ou a uma piada que serão usados muito mais adiante por Joyce - o que torna a narrativa um grande quebra-cabeça para o tradutor.

Estátua de James Joyce em Dublin, onde o escritor viveu e situou sua obra mais cultuada: 'Ulisses' Foto: rninov - stock.adobe.com

“A tradução de Bernardina resgatou boa parte do humor impagável de Ulisses e que, talvez por um excesso de reverência literária, possa ter sido relegado a um segundo plano em outras traduções”, lembra o professor Roberto O’ Shea, da Universidade Federal de Santa Catarina, que no início dos anos 90 traduziu Dublinenses, de Joyce. “Ela encarou Ulisses com muito entusiasmo”, diz o amigo.

“[A Bernardina] precisava resolver questões semânticas, de aliteração. Há também uma questão eufônica em Joyce, que precisa ser observada rigorosamente porque tem funções estéticas, mas também temáticas. É um livro, no fim, sobre a própria linguagem”, diz O’ Shea.

O projeto de Bernardina ganhou tração quando ela se aposentou pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nos anos 90, onde chegou ao cargo de chefe do departamento de Letras durante a ditadura militar.

“Nos transferiram para um outro campus, ainda em reforma, pois as universidades eram vistas como ‘subversivas’ na época”, relembra a amiga Marlene Soares, professora aposentada pela UFRJ especialista em Shakespeare. “Íamos com dois sapatos: um para pisar no barro do prédio em construção e outro para voltar para casa.”

Reedição de ‘Ulisses’ sob protesto e a redescoberta de Bernardina

A tradução de Ulisses gerou celebrações entre amigos. Apesar disso, para a professora Dirce, como havia duas traduções disponíveis no mercado - a de Houaiss, de 66, e a de Galindo, de 2012 e reeditada em 2022 - a versão de Bernardina, de 2005, passou a largo sem reedições em datas comemorativas e era encontrada apenas em sebos.

“Muito mais do que academia, houve uma questão de mercado”, defende Dirce, que afirma que as traduções Houaiss e Galindo contaram com reedições em 2021 e campanhas de marketing que, para ela, “jogou uma pá de cal” na de Bernardina, que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti.

Sob protestos dos meios joycianos, uma nova reedição da tradução de Bernardina só foi publicada só um ano depois dos demais tradutores, no final de 2022, depois das comemorações pelo centenário da obra.

Desde então, a professora passa por uma uma espécie de redescoberta. Hoje, a obra também serve como apoio para uma tradução coletiva de Ulisses feita por estudiosos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que deve ser lançada ainda neste ano.

Edição relançada de 'Ulisses', traduzida por Bernardina Pinheiro, de 2022 Foto: Reprodução/Nova Fronteira

No dia 22 de junho, a partir das 10h30, a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano também vai realizar um encontro sobre literatura irlandesa com convidados no Morumbi, onde uma mesa vai debater o protagonismo das personagens femininas de Joyce, como Molly Bloom (de Ulisses) e Ana Livia Plurabelle (de Finnegans Wake), onde o trabalho de Bernardina, única tradutora de Ulisses na América Latina, também deverá marcar presença na discussão.

Nos últimos anos de vida, Bernardina ainda recebia amigos em casa, que levavam presentes - ela tinha uma predileção em ganhar panos de prato - e passava horas a discutir política e Joyce. Junto às traduções de Houaiss e Galindo, a de Bernardina fez o Brasil ser um dos países com a maior quantidade de traduções de Ulisses no mundo.

Bernardina morreu no dia 7 de outubro, no Rio de Janeiro, aos 99 anos, vítima de uma pneumonia, em 2021. Segundo amigos, doou o acervo de livros para a Escola Letra Freudiana, no Rio de Janeiro, onde anualmente celebrava o Bloomsday.

Além de Felipe, do qual os amigos afirmam ter sido um dos maiores golpes que teve durante a vida, Bernardina teve quatro filhos, seis netos e 11 bisnetos. Também deixou o desejo de traduzir As Viagens de Gulliver, escrito em 1726 pelo também irlandês Jonathan Swift, onde um viajante se aventura por uma terra de gigantes.

As três edições de Ulisses

Ulisses

  • Autor: James Joyces
  • Trad.: Bernardina da Silveira Pinheiro
  • Editora: Nova Fronteira (1016 páginas págs.; R$ 199)

Ulysses

  • Autor: James Joyce
  • Trad.: Caetano W. Galindo
  • Editora: Cia. das Letras (1112 págs.; R$ 89,90)

Ulisses

  • Autor: James Joyce
  • Trad.: Antônio Houaiss
  • Editora: Civilização Brasileira (846 págs.; R$ 109)

Veja a programação do Bloomsday de SP

O 37º Bloomsday de São Paulo será realizado no jardim da Casa das Rosas (Av. Paulista, 37) neste domingo, 16, com o tema Riocorrente. A entrada é gratuita e não há necessidade de inscrição.

  • Abertura, com o curador Rodrigo Bravo
  • Leitura por Rodrigo Bravo e Solange P. P. Carvalho – no original e na tradução de Caetano Galindo – de trecho do capítulo 4 de Ulysses sobre o rio Liffey
  • Leitura dramática do poema The Brook, de Alfred Lord Tennyson, em inglês e português, por Rodrigo Bravo
  • Lucio Agra lê o trecho inicial de Finnegans Wake em inglês (o fragmento 1 do Panaroma do Finnegans Wake, de Augusto e Haroldo de Campos) na tradução de Augusto de Campos
  • Vitória Siviero lê trecho do poema A meditação sobre o Tietê (de Mário de Andrade)
  • Reynaldo Damazio lê trecho do poema O rio (de João Cabral de Melo Neto)
  • Julio Mendonça lê trecho do conto A terceira margem do rio (de Guimarães Rosa)
  • Apresentação de músicas tradicionais irlandesas pelo grupo Tunas Celtic Band, acompanhados pela dançarina Letícia Pires

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