O erro cometido pela Companhia das Letras, que não finalizou a inscrição dos livros de seus autores no 16º Prêmio São Paulo de Literatura, e foi revelado pelo Estadão na noite desta terça-feira, 25, surpreendeu o mercado editorial e o meio literário.
A editora cumpriu as etapas online, mas não continuou o processo enviando os livros físicos e alguns documentos impressos. São etapas obrigatórias, segundo o edital, e o não cumprimento inabilita a inscrição. Neste caso, não há possibilidade de recurso. A editora reconheceu o erro em nota ao Estadão, e disse que vai fazer o possível para reverter a decisão.
No final da tarde desta quarta-feira, 26, os organizadores do prêmio responderam ao questionamento da reportagem, sobre se haveria alguma forma de reverter a decisão, com a seguinte nota: “A Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas informa que a Companhia das Letras reconheceu o erro ao não cumprir todas as etapas do edital, mas que reconsiderar qualquer inabilitação para que isso seja revertido é ferir o regulamento do Prêmio São Paulo de Literatura”.
Maior prêmio literário em valor individual no Brasil, ele paga R$ 200 mil ao autor do melhor romance e mais R$ 200 mil ao autor do melhor romance de estreia. Isso pode ser transformador na carreira de um escritor (leia abaixo depoimentos sobre o que ter ganhado significou para Rafael Gallo, Paula Fábrio, Jacques Fux e Tiago Ferro).
Burocracia
Problemas assim, e de outros tipos, são comuns na hora da inscrição e já deixaram muitos livros, de editoras grandes, médias ou pequenas e de escritores independentes, de fora de premiações literárias - cada uma tem seu regulamento e sua burocracia. Como a Companhia das Letras tem sempre autores entre os finalistas e é responsável pela edição de muitas das obras que venceram nessas 15 edições, e porque o erro atingiu absolutamente todos os seus autores - do veterano Luiz Ruffato ao estreante Lázaro Ramos -, a comoção foi grande entre leitores, nas redes sociais, e nos bastidores, entre profissionais do mercado editorial.
Nas redes sociais, o editor Eduardo Lacerda comentou o caso, e sugeriu que todos os prêmios deveriam ter uma etapa de saneamento de falhas.
“Estamos tratando de cultura, de literatura, de pessoas, não de prazos de banco e cartório. Se as falhas não são de má-fé (erro para fraudar o prêmio), dar um prazo de 5 dias para a correção não prejudica o cronograma, nem lisura de nenhum prêmio. Pessoas cometem erros”, ele escreveu.
Isso não quer dizer, porém, que ele defenda uma revisão da desclassificação da Companhia das Letras. Em outro comentário, ele escreveu: “Se esse procedimento começar neste ano mostraria que infelizmente a força econômica de uma editora teria mais importância que procedimentos justos para todas as outras”. A Patuá também já teve obras inabilitadas, apesar de recursos.
O Estadão tentou contato com alguns dos 28 escritores da Companhia das Letras, mas eles preferiram não se manifestar.
Jarid Arraes, no entanto, usou sua conta no Twitter para responder àqueles que estão torcendo contra ou comemorando o erro da editora. Ela é autora de Corpo Desfeito, inabilitado. “Rindo pq tem gente falando que “não tem pena de autor de grande editora”. Eu que passei alguns anos independente e fui enganada por editora independente, só posso rir lembrando da pandemia, eu com câncer, sem trabalho e em editora grande. Dá um tempo, zé fuleragem!”
Outros erros e esquecimentos
O escritor carioca Marcelo Moutinho ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional com seu livro de contos Ferrugem no final de 2017 e, no ano seguinte, ele poderia participar do Oceanos. Mas a Record não inscreveu a obra. Na ocasião, a editora se desculpou, em nota, e o então editor-executivo Carlos Andreazza alegou um erro de cadastramento. “Assumimos o erro, damos publicidade ao fato – para que a ausência da obra entre os finalistas (em que, acreditamos, estaria) tenha explicação clara (...) Como editor de Moutinho na Record, lamento tremendamente pelo prejuízo que lhe causamos”, dizia a nota divulgada em 2018.
Em 2014, Roberto Taddei ficou de fora do Prêmio São Paulo, no qual poderia concorrer como estreante, com Terminália, um livro que foi o resultado do mestrado em escrita criativa que fez em Nova York, mas a Prumo/Rocco não inscreveu a obra. Não foi a primeira vez que a editora esqueceu de fazer a inscrição.
Em 2011, todos os autores da Rocco ficaram de fora do Portugal Telecom (que se transformaria depois no Prêmio Oceanos). Entre eles estavam Adriana Lisboa (Azul-Corvo), Patrícia Melo (Ladrão de Cadáveres), Silviano Santiago (Anônimos) e André de Leones (Como Desaparecer Completamente).
Com o episódio, Leones começou ele próprio a cuidar de suas inscrições. “Em 2017, tratei de inscrever pessoalmente meu romance Abaixo do Paraíso no Prêmio São Paulo de Literatura. Comprei os exemplares e fui pessoalmente fazer a inscrição”, conta o escritor.
“A visibilidade trazida por ganhar ou sequer chegar à lista de finalistas (como aconteceu com Eufrates) é algo muito importante para a carreira de qualquer escritor e, por decorrência, para a editora que publica os livros. Um autor trabalha por anos em cada livro. A partir do momento em que topou publicar a obra, o mínimo que a editora deve fazer é divulgá-la e trabalhar para que tenha visibilidade e seja lida — e isso inclui inscrevê-la nos prêmios. É algo elementar, pois um livro semifinalista, finalista ou vencedor certamente traz lucros (financeiros e de outro tipo) para a casa editorial”, completou.
O impacto do prêmio na vida dos escritores
Rafael Gallo ganhou o Prêmio São Paulo em 2016, na categoria melhor romance de estreia, com Rebentar (Record). Naquela época, a categoria era dividida e pagava R$ 100 mil para o autor estreante com menos de 40 anos e a mesma quantia para estreantes com mais de 40. Ele tinha menos de 40. “Tenho impressão que os principais impactos dos prêmios literários são os imateriais. Com o Prêmio São Paulo foi o que se deu para mim, e sei que para colegas também”, disse o autor ao Estadão.
Ele reconheceu que o dinheiro, claro, ajuda - em especial, na possibilidade de investir de volta no trabalho com a literatura, por meio de viagens para eventos, alguma divulgação a mais, ou proporcionar a si mesmo um tempo sem necessidade de outros trabalhos. “Mas uma luta mais importante, em geral, para escritores e escritoras, do que a financeira, é a de não ser soterrado no esquecimento ou na indiferença. Sinto que um prêmio literário, como o São Paulo, ajuda a evitar isso, quando joga luz sobre um livro, dentre tantos outros”, completou.
Depois do São Paulo e da divulgação de Rebentar, Gallo, que foi revelado pelo Prêmio Sesc em 2012, com Réveillon e Outros Contos, começou a trabalhar em seu segundo romance, Dor Fantasma (Globo). E ganhou mais um: o prestigioso Prêmio Saramago, em Portugal. O livro acaba de ser lançado no Brasil, e deve estar nas listas das premiações literárias no próximo ano.
O prêmio que Paula Fábrio ganhou em 2013, por Desnorteio, publicado pela Patuá, também como autora estreante (com mais de 40) e também de R$ 100 mil, segundo ela, abriu as portas do mundo literário. “Digo isso porque ter um livro de estreia publicado não significa ter leitores nem visibilidade. Desnorteio ganhou sua primeira resenha na imprensa (foi no Estadão; leia aqui) somente após o prêmio”, comentou.
Ela segue: “Além do reconhecimento, houve o valor recebido em dinheiro, que contribuiu para que eu escrevesse o livro seguinte com dedicação em tempo integral ao longo de dois anos. Todos os prêmios são importantes, mas aqueles como o São Paulo, que tem remuneração atrelada ao resultado, são fundamentais para a vida cultural do país”. Paula publicou, depois, Um Dia Toparei Comigo, No Corredor dos Cobogós e Estudo Sobre o Fim: Bangue-bangue à Paulista.
“O prêmio significou o início de um sonho de criança: o de me tornar escritor”, comenta Jacques Fux, o estreante até 40 anos da edição de 2013. “Como eu era um completo desconhecido, da área de exatas (apesar de estar fazendo um pós-doutorado em literatura) e havia investido na publicação do Antiterapias (o livro premiado), ganhar significou a possibilidade de seguir esse “novo” caminho literário. Ajudou a ter mais coragem para perseguir o meu sonho, a conseguir publicar por uma editora grande, a dar palestras e cursos – e é justamente assim que “vivo” hoje. O valor ganho do prêmio continua guardado; e sigo escrevendo e sonhando.”
Autor de O Pai da Menina Morta, Tiago Ferro também foi revelado pelo Prêmio São Paulo, em 2019, quando o regulamento já tinha mudado e a categoria estreante premiava um só autor, com R$ 200 mil. “Levando-se em consideração a média de vendas da literatura contemporânea brasileira, o valor do Prêmio São Paulo, R$ 200 mil, tem um grande impacto financeiro na história de uma obra vencedora. Além disso, projeta o livro para leitores que nem sempre acompanham cadernos de resenhas ou revistas especializadas em literatura. Enfim, de diversas maneiras é um prêmio que altera a trajetória de um livro”, disse.