Conheça a história do maior espião dos serviços secretos militares brasileiros que atuou até 1995


‘Cachorros’, livro do jornalista Marcelo Godoy, do ‘Estadão’, revela como Severino Teodoro de Mello foi cooptado pelos militares, se tornou espião dentro Partido Comunista Brasileiro e continuou repassando informações até o governo FHC e dá detalhes sobre o assassinato de Rubens Paiva e outros

Por Julia Queiroz
Atualização:

Eram meados de 2015 e Marcelo Godoy havia há pouco lançado o seu livro A Casa da Vovó - Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), O Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar (Alameda). A obra, que viria a ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, era o resultado de dez anos de pesquisa.

O jornalista - colunista e repórter especial do Estadão - começava a questionar quais seriam os próximos passos de sua carreira como pesquisador. “Quem gosta de pesquisar não gosta de ficar parado. Uma ideia minha era retomar o projeto inicial que ficou parado quando comecei o livro, sobre o papel das polícias militares no período e como ela chegou a ser o que é hoje”, explica ele. Foi então que Godoy recebeu uma mensagem anônima em uma de suas redes sociais.

O sujeito, que usava um perfil falso e não dava qualquer sinal de sua identidade, questionava a razão pela qual o escritor não revelava os nomes verdadeiros de dois personagens de A Casa da Vovó: o agente Camilo e o agente Vinícius.

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“Dei uma resposta do ponto de vista editorial, com a justificativa para isso. Ele havia deixado um e-mail, então respondi normalmente, como respondo quem me procura”, diz. A réplica do sujeito, no entanto, veio com nome completo, formação e histórico dos agentes. Sobre o agente Vinicius, contudo, ele acrescentou: “E eu fui seu último controlador”.

Isso chamou a atenção de Godoy. “Todas as pessoas que viveram aquele período podem te contar coisas que elas não vivenciaram em primeira pessoa. Algo que foi contado a elas, fatos notórios, entre os quais muita coisa que é lenda ou não se sustenta. Mas aquilo que o cara fala, em primeira pessoa, ‘eu fiz, e foi assim’, aí a coisa começa a mudar de figura”, explica o jornalista.

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Um ano de conversa se passou até que, por meio das pistas e informações dadas pelo homem, Godoy conseguisse identificá-lo. Era Antonio Pinto, conhecido como Doutor Pirilo, um ex-oficial da Força Aérea Brasileira. Pirilo foi por décadas controlador de Severino Teodoro de Mello, integrante do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, capturado pelo COI, foi convertido em espião da inteligência militar - e permaneceu como tal até após a redemocratização. Era o agente Vinicius.

Comitê Central do PCB reunido em Paris em setembro de 1979: Em Integrantes do Comitê Central do PCB, reunidos em Paris em setembro de 1979: Em cima, da esquerda para a direita: Luiz Tenório Lima, Giocondo Dias, Severino Theodoro de Mello, Gregório Bezerra, Salomão Malina, Lindolfo Silva, Agliberto Vieira de Azevedo, Almir Neves, Orestes Timbaúba. Sentados, na mesma direção: Hércules Corrêa, Givaldo Siqueira, Armênio Guedes e José Albuquerque Salles. Foto: Arquivo Voz da Unidade

A descoberta deu início a mais dez anos de pesquisa que culminaram agora no lançamento do livro Cachorros, A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República (Alameda), nesta 1º de agosto, a partir das 18h30, no restaurante Rota do Acarajé, em São Paulo. A obra reúne, a partir de inúmeras entrevistas, documentos e transcrições, a história destes dois homens.

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O livro é dividido em três partes: a trajetória de Pirilo nas forças de repressão da ditadura militar, a atuação de Mello no PCB e a militância comunista e, então, o momento em que a vida dos dois cruza e Mello, após sua prisão e liberação, torna-se o agente Vinicius. Segundo Godoy, eles são um fio condutor para contar uma parte importante da história do nosso País.

“Contar um pouco dessa história de como a ilegalidade do Partido Comunista foi feita e de como essa agremiação foi reprimida em função da manutenção da sua ilegalidade é também contar a forma como a política pública nesse período foi envenenada por essa restrição”, explica. “Isso, de certa forma, não só limitava a democracia [no período da redemocratização], como também criava um ambiente de suspeita nas relações políticas.”

Repórter e colunista do 'Estadão', Marcelo Godoy lança Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República Foto: Alex Silva/Estadão
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O espião

Depois de identificar Pirilo, Godoy disse ao ex-militar que muitas pessoas, até hoje, não acreditavam que Mello era um espião. “Ele falou assim: ‘Ah é? Eu conversei com ele na semana passada’. Respondi então para ele me passar o telefone dele. Passou e com algumas recomendações: ‘olha, você vai ligar para ele, quem vai atender o telefone vai ser a mulher dele e ela vai perguntar quem quer falar com Mello. Diga que é o amigo do Pirilo’. Naquele momento, eu não sabia o que era, mas depois ficou muito claro para mim que era uma espécie de código”, conta o jornalista.

Dito e feito, o ex-espião atendeu, não perguntou quem era Godoy ou o motivo da ligação, e respondeu a todos os questionamentos do escritor. “Fiz isso do lado de um integrante da Comissão de Mortes e Desaparecidos Políticos. Primeiro, porque eu acho que era importante que alguém testemunhasse isso. E segundo, porque era possível que o Mello tivesse conhecimento do destino de alguns dos desaparecidos do partido”, lembra.

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Mello contou detalhes de como foi sua cooptação em 1974 e por quanto tempo - e como - ele trabalhou como espião dentro do PCB. O acordo feito entre ele e os captores dizia que ele seria solto, mas teria de guiar os integrantes da repressão em encontros clandestinos com outros militantes do partido. Ao menos uma dezena de dirigentes foram capturados, torturados e/ou assassinados pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE) graças ao trabalho do agente Vinicius.

“Em um primeiro momento, ele foi colocado diante da alternativa de trair ou morrer, ou seja, para ficar vivo ele tinha que trair os seus camaradas. E optou por ficar vivo”, diz Godoy. “É compreensível do ponto de vista humano, mas ele poderia, como outros agentes e como camaradas dele me falaram, fugir e arriscar. Recuperar a liberdade e tentar avisar o primeiro colega com quem manteve contato. Mas não fez isso.”

Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana.  Foto: Marcelo Godoy/Estadao
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“Ele não só permite durante meses que os militares o sigam, como vai estabelecendo toda uma rede de contatos. Cada uma dessas pessoas que se encontrava com ele também tinha [contatos]. Ou seja, é uma coisa exponencial. Chega um momento em que se tem centenas e centenas de pessoas mapeadas e que, de alguma forma, podiam ser vigiadas pelos militares”, completa.

Durante os dez anos de pesquisa para Cachorros, Godoy conversou com dezenas de participantes de ambos os lados da equação, que ajudaram a comprovar e dar dimensão às ações de Pirilo e Mello. “Em comum, a maioria dos entrevistados ainda cultivava as mesmas crenças que fundamentaram suas ações no passado. Mais uma vez revelaram segredos, contaram torturas, desaparecimentos e mortes”, revela, na introdução do livro.

Como lidar com isso? “Para mim, é muito claro que compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucos que fazem barulho sem significado nenhum. Um militar que trabalhava no DOI-CODI nos anos 1970 não acordava pensando em fazer maldade com os presos. Na cabeça dele, ele tinha um trabalho. Como era racionalizado isso? Como ele se sentia? Todas as essas questões são importantes de serem estudadas e compreendidas.”

Compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucas que fazem barulho sem significado nenhum.

Marcelo Godoy

Revelações

Além das entrevistas, Godoy transcreveu dezenas de fitas de gravação de reuniões do partido comunista no Brasil e no exterior, pesquisou e analisou documentos em acervos de vários países e contou até com a ajuda de pesquisadores estrangeiros. “Você faz um plano inicial, mas é impossível ter um cronograma”, explica ele, sobre o tempo de pesquisa e escrita, que precisou ser balanceado com o trabalho diário como jornalista.

“A união da paixão jornalística, o contar histórias, com a minha paixão por História, justifica esse trabalho. Dá um sentido de permanência”, diz Godoy. O esforço culminou em revelações importantes não só sobre o período militar, mas sobre a manutenção das atividades de espionagem mesmo nos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A chamada Operação Pão de Açúcar funcionava como uma espécie de atuação paralela e continuou pagando salário a Mello até 1995.

Ficha de Severino Teodoro de Mello no arquivo do PCUS, em Moscou. Foto: Reproducao / RGANI

As descobertas de Godoy também incluem novos detalhes sobre, por exemplo, o Massacre da Lapa, que resultou na morte de três dirigentes do PCdoB, a perseguição ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8) e os assassinatos de Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, e de Rubens Paiva, duas das mortes mais emblemáticas do período militar.

Antonio Pinto, o Pirilo, e Severino Teodoro de Mello, o agente Vinicius, não viveram para ver o livro publicado. O primeiro, cujo enterro é o ponto de partida para a obra, morreu em 2018. O outro morreu em 2023, aos 105 anos, fato que Godoy só descobriu em janeiro deste ano e que costurou o fim do livro.

Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República

  • Autor: Marcelo Godoy
  • Editora: Alameda (552 págs.; R$ 149)
  • Lançamento: 1º de agosto, a partir das 18h30. Rota do Acarajé (Rua Martim Francisco, 529/533 - Santa Cecília/SP).

Eram meados de 2015 e Marcelo Godoy havia há pouco lançado o seu livro A Casa da Vovó - Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), O Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar (Alameda). A obra, que viria a ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, era o resultado de dez anos de pesquisa.

O jornalista - colunista e repórter especial do Estadão - começava a questionar quais seriam os próximos passos de sua carreira como pesquisador. “Quem gosta de pesquisar não gosta de ficar parado. Uma ideia minha era retomar o projeto inicial que ficou parado quando comecei o livro, sobre o papel das polícias militares no período e como ela chegou a ser o que é hoje”, explica ele. Foi então que Godoy recebeu uma mensagem anônima em uma de suas redes sociais.

O sujeito, que usava um perfil falso e não dava qualquer sinal de sua identidade, questionava a razão pela qual o escritor não revelava os nomes verdadeiros de dois personagens de A Casa da Vovó: o agente Camilo e o agente Vinícius.

“Dei uma resposta do ponto de vista editorial, com a justificativa para isso. Ele havia deixado um e-mail, então respondi normalmente, como respondo quem me procura”, diz. A réplica do sujeito, no entanto, veio com nome completo, formação e histórico dos agentes. Sobre o agente Vinicius, contudo, ele acrescentou: “E eu fui seu último controlador”.

Isso chamou a atenção de Godoy. “Todas as pessoas que viveram aquele período podem te contar coisas que elas não vivenciaram em primeira pessoa. Algo que foi contado a elas, fatos notórios, entre os quais muita coisa que é lenda ou não se sustenta. Mas aquilo que o cara fala, em primeira pessoa, ‘eu fiz, e foi assim’, aí a coisa começa a mudar de figura”, explica o jornalista.

Um ano de conversa se passou até que, por meio das pistas e informações dadas pelo homem, Godoy conseguisse identificá-lo. Era Antonio Pinto, conhecido como Doutor Pirilo, um ex-oficial da Força Aérea Brasileira. Pirilo foi por décadas controlador de Severino Teodoro de Mello, integrante do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, capturado pelo COI, foi convertido em espião da inteligência militar - e permaneceu como tal até após a redemocratização. Era o agente Vinicius.

Comitê Central do PCB reunido em Paris em setembro de 1979: Em Integrantes do Comitê Central do PCB, reunidos em Paris em setembro de 1979: Em cima, da esquerda para a direita: Luiz Tenório Lima, Giocondo Dias, Severino Theodoro de Mello, Gregório Bezerra, Salomão Malina, Lindolfo Silva, Agliberto Vieira de Azevedo, Almir Neves, Orestes Timbaúba. Sentados, na mesma direção: Hércules Corrêa, Givaldo Siqueira, Armênio Guedes e José Albuquerque Salles. Foto: Arquivo Voz da Unidade

A descoberta deu início a mais dez anos de pesquisa que culminaram agora no lançamento do livro Cachorros, A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República (Alameda), nesta 1º de agosto, a partir das 18h30, no restaurante Rota do Acarajé, em São Paulo. A obra reúne, a partir de inúmeras entrevistas, documentos e transcrições, a história destes dois homens.

O livro é dividido em três partes: a trajetória de Pirilo nas forças de repressão da ditadura militar, a atuação de Mello no PCB e a militância comunista e, então, o momento em que a vida dos dois cruza e Mello, após sua prisão e liberação, torna-se o agente Vinicius. Segundo Godoy, eles são um fio condutor para contar uma parte importante da história do nosso País.

“Contar um pouco dessa história de como a ilegalidade do Partido Comunista foi feita e de como essa agremiação foi reprimida em função da manutenção da sua ilegalidade é também contar a forma como a política pública nesse período foi envenenada por essa restrição”, explica. “Isso, de certa forma, não só limitava a democracia [no período da redemocratização], como também criava um ambiente de suspeita nas relações políticas.”

Repórter e colunista do 'Estadão', Marcelo Godoy lança Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República Foto: Alex Silva/Estadão

O espião

Depois de identificar Pirilo, Godoy disse ao ex-militar que muitas pessoas, até hoje, não acreditavam que Mello era um espião. “Ele falou assim: ‘Ah é? Eu conversei com ele na semana passada’. Respondi então para ele me passar o telefone dele. Passou e com algumas recomendações: ‘olha, você vai ligar para ele, quem vai atender o telefone vai ser a mulher dele e ela vai perguntar quem quer falar com Mello. Diga que é o amigo do Pirilo’. Naquele momento, eu não sabia o que era, mas depois ficou muito claro para mim que era uma espécie de código”, conta o jornalista.

Dito e feito, o ex-espião atendeu, não perguntou quem era Godoy ou o motivo da ligação, e respondeu a todos os questionamentos do escritor. “Fiz isso do lado de um integrante da Comissão de Mortes e Desaparecidos Políticos. Primeiro, porque eu acho que era importante que alguém testemunhasse isso. E segundo, porque era possível que o Mello tivesse conhecimento do destino de alguns dos desaparecidos do partido”, lembra.

Mello contou detalhes de como foi sua cooptação em 1974 e por quanto tempo - e como - ele trabalhou como espião dentro do PCB. O acordo feito entre ele e os captores dizia que ele seria solto, mas teria de guiar os integrantes da repressão em encontros clandestinos com outros militantes do partido. Ao menos uma dezena de dirigentes foram capturados, torturados e/ou assassinados pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE) graças ao trabalho do agente Vinicius.

“Em um primeiro momento, ele foi colocado diante da alternativa de trair ou morrer, ou seja, para ficar vivo ele tinha que trair os seus camaradas. E optou por ficar vivo”, diz Godoy. “É compreensível do ponto de vista humano, mas ele poderia, como outros agentes e como camaradas dele me falaram, fugir e arriscar. Recuperar a liberdade e tentar avisar o primeiro colega com quem manteve contato. Mas não fez isso.”

Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana.  Foto: Marcelo Godoy/Estadao

“Ele não só permite durante meses que os militares o sigam, como vai estabelecendo toda uma rede de contatos. Cada uma dessas pessoas que se encontrava com ele também tinha [contatos]. Ou seja, é uma coisa exponencial. Chega um momento em que se tem centenas e centenas de pessoas mapeadas e que, de alguma forma, podiam ser vigiadas pelos militares”, completa.

Durante os dez anos de pesquisa para Cachorros, Godoy conversou com dezenas de participantes de ambos os lados da equação, que ajudaram a comprovar e dar dimensão às ações de Pirilo e Mello. “Em comum, a maioria dos entrevistados ainda cultivava as mesmas crenças que fundamentaram suas ações no passado. Mais uma vez revelaram segredos, contaram torturas, desaparecimentos e mortes”, revela, na introdução do livro.

Como lidar com isso? “Para mim, é muito claro que compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucos que fazem barulho sem significado nenhum. Um militar que trabalhava no DOI-CODI nos anos 1970 não acordava pensando em fazer maldade com os presos. Na cabeça dele, ele tinha um trabalho. Como era racionalizado isso? Como ele se sentia? Todas as essas questões são importantes de serem estudadas e compreendidas.”

Compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucas que fazem barulho sem significado nenhum.

Marcelo Godoy

Revelações

Além das entrevistas, Godoy transcreveu dezenas de fitas de gravação de reuniões do partido comunista no Brasil e no exterior, pesquisou e analisou documentos em acervos de vários países e contou até com a ajuda de pesquisadores estrangeiros. “Você faz um plano inicial, mas é impossível ter um cronograma”, explica ele, sobre o tempo de pesquisa e escrita, que precisou ser balanceado com o trabalho diário como jornalista.

“A união da paixão jornalística, o contar histórias, com a minha paixão por História, justifica esse trabalho. Dá um sentido de permanência”, diz Godoy. O esforço culminou em revelações importantes não só sobre o período militar, mas sobre a manutenção das atividades de espionagem mesmo nos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A chamada Operação Pão de Açúcar funcionava como uma espécie de atuação paralela e continuou pagando salário a Mello até 1995.

Ficha de Severino Teodoro de Mello no arquivo do PCUS, em Moscou. Foto: Reproducao / RGANI

As descobertas de Godoy também incluem novos detalhes sobre, por exemplo, o Massacre da Lapa, que resultou na morte de três dirigentes do PCdoB, a perseguição ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8) e os assassinatos de Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, e de Rubens Paiva, duas das mortes mais emblemáticas do período militar.

Antonio Pinto, o Pirilo, e Severino Teodoro de Mello, o agente Vinicius, não viveram para ver o livro publicado. O primeiro, cujo enterro é o ponto de partida para a obra, morreu em 2018. O outro morreu em 2023, aos 105 anos, fato que Godoy só descobriu em janeiro deste ano e que costurou o fim do livro.

Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República

  • Autor: Marcelo Godoy
  • Editora: Alameda (552 págs.; R$ 149)
  • Lançamento: 1º de agosto, a partir das 18h30. Rota do Acarajé (Rua Martim Francisco, 529/533 - Santa Cecília/SP).

Eram meados de 2015 e Marcelo Godoy havia há pouco lançado o seu livro A Casa da Vovó - Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), O Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar (Alameda). A obra, que viria a ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, era o resultado de dez anos de pesquisa.

O jornalista - colunista e repórter especial do Estadão - começava a questionar quais seriam os próximos passos de sua carreira como pesquisador. “Quem gosta de pesquisar não gosta de ficar parado. Uma ideia minha era retomar o projeto inicial que ficou parado quando comecei o livro, sobre o papel das polícias militares no período e como ela chegou a ser o que é hoje”, explica ele. Foi então que Godoy recebeu uma mensagem anônima em uma de suas redes sociais.

O sujeito, que usava um perfil falso e não dava qualquer sinal de sua identidade, questionava a razão pela qual o escritor não revelava os nomes verdadeiros de dois personagens de A Casa da Vovó: o agente Camilo e o agente Vinícius.

“Dei uma resposta do ponto de vista editorial, com a justificativa para isso. Ele havia deixado um e-mail, então respondi normalmente, como respondo quem me procura”, diz. A réplica do sujeito, no entanto, veio com nome completo, formação e histórico dos agentes. Sobre o agente Vinicius, contudo, ele acrescentou: “E eu fui seu último controlador”.

Isso chamou a atenção de Godoy. “Todas as pessoas que viveram aquele período podem te contar coisas que elas não vivenciaram em primeira pessoa. Algo que foi contado a elas, fatos notórios, entre os quais muita coisa que é lenda ou não se sustenta. Mas aquilo que o cara fala, em primeira pessoa, ‘eu fiz, e foi assim’, aí a coisa começa a mudar de figura”, explica o jornalista.

Um ano de conversa se passou até que, por meio das pistas e informações dadas pelo homem, Godoy conseguisse identificá-lo. Era Antonio Pinto, conhecido como Doutor Pirilo, um ex-oficial da Força Aérea Brasileira. Pirilo foi por décadas controlador de Severino Teodoro de Mello, integrante do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, capturado pelo COI, foi convertido em espião da inteligência militar - e permaneceu como tal até após a redemocratização. Era o agente Vinicius.

Comitê Central do PCB reunido em Paris em setembro de 1979: Em Integrantes do Comitê Central do PCB, reunidos em Paris em setembro de 1979: Em cima, da esquerda para a direita: Luiz Tenório Lima, Giocondo Dias, Severino Theodoro de Mello, Gregório Bezerra, Salomão Malina, Lindolfo Silva, Agliberto Vieira de Azevedo, Almir Neves, Orestes Timbaúba. Sentados, na mesma direção: Hércules Corrêa, Givaldo Siqueira, Armênio Guedes e José Albuquerque Salles. Foto: Arquivo Voz da Unidade

A descoberta deu início a mais dez anos de pesquisa que culminaram agora no lançamento do livro Cachorros, A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República (Alameda), nesta 1º de agosto, a partir das 18h30, no restaurante Rota do Acarajé, em São Paulo. A obra reúne, a partir de inúmeras entrevistas, documentos e transcrições, a história destes dois homens.

O livro é dividido em três partes: a trajetória de Pirilo nas forças de repressão da ditadura militar, a atuação de Mello no PCB e a militância comunista e, então, o momento em que a vida dos dois cruza e Mello, após sua prisão e liberação, torna-se o agente Vinicius. Segundo Godoy, eles são um fio condutor para contar uma parte importante da história do nosso País.

“Contar um pouco dessa história de como a ilegalidade do Partido Comunista foi feita e de como essa agremiação foi reprimida em função da manutenção da sua ilegalidade é também contar a forma como a política pública nesse período foi envenenada por essa restrição”, explica. “Isso, de certa forma, não só limitava a democracia [no período da redemocratização], como também criava um ambiente de suspeita nas relações políticas.”

Repórter e colunista do 'Estadão', Marcelo Godoy lança Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República Foto: Alex Silva/Estadão

O espião

Depois de identificar Pirilo, Godoy disse ao ex-militar que muitas pessoas, até hoje, não acreditavam que Mello era um espião. “Ele falou assim: ‘Ah é? Eu conversei com ele na semana passada’. Respondi então para ele me passar o telefone dele. Passou e com algumas recomendações: ‘olha, você vai ligar para ele, quem vai atender o telefone vai ser a mulher dele e ela vai perguntar quem quer falar com Mello. Diga que é o amigo do Pirilo’. Naquele momento, eu não sabia o que era, mas depois ficou muito claro para mim que era uma espécie de código”, conta o jornalista.

Dito e feito, o ex-espião atendeu, não perguntou quem era Godoy ou o motivo da ligação, e respondeu a todos os questionamentos do escritor. “Fiz isso do lado de um integrante da Comissão de Mortes e Desaparecidos Políticos. Primeiro, porque eu acho que era importante que alguém testemunhasse isso. E segundo, porque era possível que o Mello tivesse conhecimento do destino de alguns dos desaparecidos do partido”, lembra.

Mello contou detalhes de como foi sua cooptação em 1974 e por quanto tempo - e como - ele trabalhou como espião dentro do PCB. O acordo feito entre ele e os captores dizia que ele seria solto, mas teria de guiar os integrantes da repressão em encontros clandestinos com outros militantes do partido. Ao menos uma dezena de dirigentes foram capturados, torturados e/ou assassinados pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE) graças ao trabalho do agente Vinicius.

“Em um primeiro momento, ele foi colocado diante da alternativa de trair ou morrer, ou seja, para ficar vivo ele tinha que trair os seus camaradas. E optou por ficar vivo”, diz Godoy. “É compreensível do ponto de vista humano, mas ele poderia, como outros agentes e como camaradas dele me falaram, fugir e arriscar. Recuperar a liberdade e tentar avisar o primeiro colega com quem manteve contato. Mas não fez isso.”

Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana.  Foto: Marcelo Godoy/Estadao

“Ele não só permite durante meses que os militares o sigam, como vai estabelecendo toda uma rede de contatos. Cada uma dessas pessoas que se encontrava com ele também tinha [contatos]. Ou seja, é uma coisa exponencial. Chega um momento em que se tem centenas e centenas de pessoas mapeadas e que, de alguma forma, podiam ser vigiadas pelos militares”, completa.

Durante os dez anos de pesquisa para Cachorros, Godoy conversou com dezenas de participantes de ambos os lados da equação, que ajudaram a comprovar e dar dimensão às ações de Pirilo e Mello. “Em comum, a maioria dos entrevistados ainda cultivava as mesmas crenças que fundamentaram suas ações no passado. Mais uma vez revelaram segredos, contaram torturas, desaparecimentos e mortes”, revela, na introdução do livro.

Como lidar com isso? “Para mim, é muito claro que compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucos que fazem barulho sem significado nenhum. Um militar que trabalhava no DOI-CODI nos anos 1970 não acordava pensando em fazer maldade com os presos. Na cabeça dele, ele tinha um trabalho. Como era racionalizado isso? Como ele se sentia? Todas as essas questões são importantes de serem estudadas e compreendidas.”

Compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucas que fazem barulho sem significado nenhum.

Marcelo Godoy

Revelações

Além das entrevistas, Godoy transcreveu dezenas de fitas de gravação de reuniões do partido comunista no Brasil e no exterior, pesquisou e analisou documentos em acervos de vários países e contou até com a ajuda de pesquisadores estrangeiros. “Você faz um plano inicial, mas é impossível ter um cronograma”, explica ele, sobre o tempo de pesquisa e escrita, que precisou ser balanceado com o trabalho diário como jornalista.

“A união da paixão jornalística, o contar histórias, com a minha paixão por História, justifica esse trabalho. Dá um sentido de permanência”, diz Godoy. O esforço culminou em revelações importantes não só sobre o período militar, mas sobre a manutenção das atividades de espionagem mesmo nos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A chamada Operação Pão de Açúcar funcionava como uma espécie de atuação paralela e continuou pagando salário a Mello até 1995.

Ficha de Severino Teodoro de Mello no arquivo do PCUS, em Moscou. Foto: Reproducao / RGANI

As descobertas de Godoy também incluem novos detalhes sobre, por exemplo, o Massacre da Lapa, que resultou na morte de três dirigentes do PCdoB, a perseguição ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8) e os assassinatos de Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, e de Rubens Paiva, duas das mortes mais emblemáticas do período militar.

Antonio Pinto, o Pirilo, e Severino Teodoro de Mello, o agente Vinicius, não viveram para ver o livro publicado. O primeiro, cujo enterro é o ponto de partida para a obra, morreu em 2018. O outro morreu em 2023, aos 105 anos, fato que Godoy só descobriu em janeiro deste ano e que costurou o fim do livro.

Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República

  • Autor: Marcelo Godoy
  • Editora: Alameda (552 págs.; R$ 149)
  • Lançamento: 1º de agosto, a partir das 18h30. Rota do Acarajé (Rua Martim Francisco, 529/533 - Santa Cecília/SP).

Eram meados de 2015 e Marcelo Godoy havia há pouco lançado o seu livro A Casa da Vovó - Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), O Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar (Alameda). A obra, que viria a ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, era o resultado de dez anos de pesquisa.

O jornalista - colunista e repórter especial do Estadão - começava a questionar quais seriam os próximos passos de sua carreira como pesquisador. “Quem gosta de pesquisar não gosta de ficar parado. Uma ideia minha era retomar o projeto inicial que ficou parado quando comecei o livro, sobre o papel das polícias militares no período e como ela chegou a ser o que é hoje”, explica ele. Foi então que Godoy recebeu uma mensagem anônima em uma de suas redes sociais.

O sujeito, que usava um perfil falso e não dava qualquer sinal de sua identidade, questionava a razão pela qual o escritor não revelava os nomes verdadeiros de dois personagens de A Casa da Vovó: o agente Camilo e o agente Vinícius.

“Dei uma resposta do ponto de vista editorial, com a justificativa para isso. Ele havia deixado um e-mail, então respondi normalmente, como respondo quem me procura”, diz. A réplica do sujeito, no entanto, veio com nome completo, formação e histórico dos agentes. Sobre o agente Vinicius, contudo, ele acrescentou: “E eu fui seu último controlador”.

Isso chamou a atenção de Godoy. “Todas as pessoas que viveram aquele período podem te contar coisas que elas não vivenciaram em primeira pessoa. Algo que foi contado a elas, fatos notórios, entre os quais muita coisa que é lenda ou não se sustenta. Mas aquilo que o cara fala, em primeira pessoa, ‘eu fiz, e foi assim’, aí a coisa começa a mudar de figura”, explica o jornalista.

Um ano de conversa se passou até que, por meio das pistas e informações dadas pelo homem, Godoy conseguisse identificá-lo. Era Antonio Pinto, conhecido como Doutor Pirilo, um ex-oficial da Força Aérea Brasileira. Pirilo foi por décadas controlador de Severino Teodoro de Mello, integrante do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, capturado pelo COI, foi convertido em espião da inteligência militar - e permaneceu como tal até após a redemocratização. Era o agente Vinicius.

Comitê Central do PCB reunido em Paris em setembro de 1979: Em Integrantes do Comitê Central do PCB, reunidos em Paris em setembro de 1979: Em cima, da esquerda para a direita: Luiz Tenório Lima, Giocondo Dias, Severino Theodoro de Mello, Gregório Bezerra, Salomão Malina, Lindolfo Silva, Agliberto Vieira de Azevedo, Almir Neves, Orestes Timbaúba. Sentados, na mesma direção: Hércules Corrêa, Givaldo Siqueira, Armênio Guedes e José Albuquerque Salles. Foto: Arquivo Voz da Unidade

A descoberta deu início a mais dez anos de pesquisa que culminaram agora no lançamento do livro Cachorros, A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República (Alameda), nesta 1º de agosto, a partir das 18h30, no restaurante Rota do Acarajé, em São Paulo. A obra reúne, a partir de inúmeras entrevistas, documentos e transcrições, a história destes dois homens.

O livro é dividido em três partes: a trajetória de Pirilo nas forças de repressão da ditadura militar, a atuação de Mello no PCB e a militância comunista e, então, o momento em que a vida dos dois cruza e Mello, após sua prisão e liberação, torna-se o agente Vinicius. Segundo Godoy, eles são um fio condutor para contar uma parte importante da história do nosso País.

“Contar um pouco dessa história de como a ilegalidade do Partido Comunista foi feita e de como essa agremiação foi reprimida em função da manutenção da sua ilegalidade é também contar a forma como a política pública nesse período foi envenenada por essa restrição”, explica. “Isso, de certa forma, não só limitava a democracia [no período da redemocratização], como também criava um ambiente de suspeita nas relações políticas.”

Repórter e colunista do 'Estadão', Marcelo Godoy lança Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República Foto: Alex Silva/Estadão

O espião

Depois de identificar Pirilo, Godoy disse ao ex-militar que muitas pessoas, até hoje, não acreditavam que Mello era um espião. “Ele falou assim: ‘Ah é? Eu conversei com ele na semana passada’. Respondi então para ele me passar o telefone dele. Passou e com algumas recomendações: ‘olha, você vai ligar para ele, quem vai atender o telefone vai ser a mulher dele e ela vai perguntar quem quer falar com Mello. Diga que é o amigo do Pirilo’. Naquele momento, eu não sabia o que era, mas depois ficou muito claro para mim que era uma espécie de código”, conta o jornalista.

Dito e feito, o ex-espião atendeu, não perguntou quem era Godoy ou o motivo da ligação, e respondeu a todos os questionamentos do escritor. “Fiz isso do lado de um integrante da Comissão de Mortes e Desaparecidos Políticos. Primeiro, porque eu acho que era importante que alguém testemunhasse isso. E segundo, porque era possível que o Mello tivesse conhecimento do destino de alguns dos desaparecidos do partido”, lembra.

Mello contou detalhes de como foi sua cooptação em 1974 e por quanto tempo - e como - ele trabalhou como espião dentro do PCB. O acordo feito entre ele e os captores dizia que ele seria solto, mas teria de guiar os integrantes da repressão em encontros clandestinos com outros militantes do partido. Ao menos uma dezena de dirigentes foram capturados, torturados e/ou assassinados pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE) graças ao trabalho do agente Vinicius.

“Em um primeiro momento, ele foi colocado diante da alternativa de trair ou morrer, ou seja, para ficar vivo ele tinha que trair os seus camaradas. E optou por ficar vivo”, diz Godoy. “É compreensível do ponto de vista humano, mas ele poderia, como outros agentes e como camaradas dele me falaram, fugir e arriscar. Recuperar a liberdade e tentar avisar o primeiro colega com quem manteve contato. Mas não fez isso.”

Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana.  Foto: Marcelo Godoy/Estadao

“Ele não só permite durante meses que os militares o sigam, como vai estabelecendo toda uma rede de contatos. Cada uma dessas pessoas que se encontrava com ele também tinha [contatos]. Ou seja, é uma coisa exponencial. Chega um momento em que se tem centenas e centenas de pessoas mapeadas e que, de alguma forma, podiam ser vigiadas pelos militares”, completa.

Durante os dez anos de pesquisa para Cachorros, Godoy conversou com dezenas de participantes de ambos os lados da equação, que ajudaram a comprovar e dar dimensão às ações de Pirilo e Mello. “Em comum, a maioria dos entrevistados ainda cultivava as mesmas crenças que fundamentaram suas ações no passado. Mais uma vez revelaram segredos, contaram torturas, desaparecimentos e mortes”, revela, na introdução do livro.

Como lidar com isso? “Para mim, é muito claro que compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucos que fazem barulho sem significado nenhum. Um militar que trabalhava no DOI-CODI nos anos 1970 não acordava pensando em fazer maldade com os presos. Na cabeça dele, ele tinha um trabalho. Como era racionalizado isso? Como ele se sentia? Todas as essas questões são importantes de serem estudadas e compreendidas.”

Compreender não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreender essas pessoas. Eu não acredito que a história seja feita por loucas que fazem barulho sem significado nenhum.

Marcelo Godoy

Revelações

Além das entrevistas, Godoy transcreveu dezenas de fitas de gravação de reuniões do partido comunista no Brasil e no exterior, pesquisou e analisou documentos em acervos de vários países e contou até com a ajuda de pesquisadores estrangeiros. “Você faz um plano inicial, mas é impossível ter um cronograma”, explica ele, sobre o tempo de pesquisa e escrita, que precisou ser balanceado com o trabalho diário como jornalista.

“A união da paixão jornalística, o contar histórias, com a minha paixão por História, justifica esse trabalho. Dá um sentido de permanência”, diz Godoy. O esforço culminou em revelações importantes não só sobre o período militar, mas sobre a manutenção das atividades de espionagem mesmo nos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A chamada Operação Pão de Açúcar funcionava como uma espécie de atuação paralela e continuou pagando salário a Mello até 1995.

Ficha de Severino Teodoro de Mello no arquivo do PCUS, em Moscou. Foto: Reproducao / RGANI

As descobertas de Godoy também incluem novos detalhes sobre, por exemplo, o Massacre da Lapa, que resultou na morte de três dirigentes do PCdoB, a perseguição ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8) e os assassinatos de Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, e de Rubens Paiva, duas das mortes mais emblemáticas do período militar.

Antonio Pinto, o Pirilo, e Severino Teodoro de Mello, o agente Vinicius, não viveram para ver o livro publicado. O primeiro, cujo enterro é o ponto de partida para a obra, morreu em 2018. O outro morreu em 2023, aos 105 anos, fato que Godoy só descobriu em janeiro deste ano e que costurou o fim do livro.

Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República

  • Autor: Marcelo Godoy
  • Editora: Alameda (552 págs.; R$ 149)
  • Lançamento: 1º de agosto, a partir das 18h30. Rota do Acarajé (Rua Martim Francisco, 529/533 - Santa Cecília/SP).

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