A vida do pequeno livreiro não é fácil. Na primeira vez que a reportagem tentou falar com Bruno Eliezer, ele estava saindo de bicicleta para entregar as encomendas do dia na região de Santa Cecília. Na segunda, a conversa foi interrompida quando dois cachorros entraram na livraria, arrastando sua dona que ainda não conhecia a nova loja da Aureliano Coutinho – tinha água para eles, livros para ela. Nenhuma venda foi feita. Na terceira, aconteceu uma coisa que não se vê mais. Gustavo, um assíduo cliente de 11 anos, entrou falante. “Sua encomenda chegou”, disse o livreiro. O garoto então começou a explicar que não poderia levar o livro. Contou que até tinha juntado o dinheiro, mas descobriu que a mãe tinha usado para outra coisa. “Leva, você paga depois. Você é um cliente muito importante para a gente”, ouviu de Bruno, e foi embora feliz.
Aos 32, o mineiro virou livreiro por necessidade. Vivendo em São Paulo, ele começou vendendo seus próprios livros, montou banquinhas no Mackenzie, criou a livraria online Ponta de Lança, de usados, comprou mais títulos, às vezes bibliotecas pessoais inteiras, para poder vender mais. Com o ultimato da companheira, alugou uma sala para esse acervo. Depois outra. Mas era tudo muito silencioso e solitário. Eis que um bar na frente de sua casa fecha e ele consegue reverter o negócio que estava praticamente fechado. Em vez de ganhar mais uma lavanderia, o bairro ganhou uma livraria. A Ponta de Lança abriu as portas em agosto.
São 2.500 títulos novos, alguns do catálogo da extinta Cosac Naify, uma máquina de café, muitos boletos e uma enorme vontade de fazer dar certo. “Sinto que se eu não criar esse mundo onde quero viver, de arte e cultura, vou adoecer. Vou batalhar muito”, diz Bruno. A conta ainda não fecha e ele sabe que o equilíbrio financeiro é o maior desafio – são baixos os índices de leitura e não dá para competir, em preço, com o varejo online. “Mas uma livraria jamais pode ter um viés apenas comercial. Ela é o centro que propaga transformações. E isto não é apenas uma livraria, é um projeto de país.” Clubes de leitura já estão começando ali, e para quem não tem dinheiro o livreiro mostra a estante de doações.
Ponta de Lança é apenas uma entre as livrarias de rua que abriram as portas em 2021 em São Paulo – um movimento que já tinha se iniciado antes da pandemia da covid-19, ficou suspenso no ano passado e vai na contramão da crise que desafia o mercado editorial há alguns anos. Um movimento que se intensifica num momento em que as pessoas começaram a valorizar, mais, as coisas locais.
“É o lado positivo da crise. Essas situações extremas colocam à prova nossa capacidade de adaptação – como seres humanos e profissionais do mundo do livro. Ainda há menos livrarias no País do que em 2014, mas não estamos mais diante de uma catástrofe.
Vivemos um processo de renovação, de mudança de pele. É como ver renascer um jardim”, comenta Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias. Para ele, “as livrarias são um sinal de civilização”, e os pequenos negócios têm uma importância imensa na construção da cidadania.
A um quilômetro da Ponta de Lança, uma distância que se percorre em pouco mais de 10 minutos a pé, está a Gato Sem Rabo, que abriu as portas em junho só com livros escritos por mulheres. Para a proprietária Johanna Stein, tem sido enriquecedor investigar as possibilidades desse espaço que está sendo construído coletivamente. “Uma livraria é um lugar de trocas muito simbólico diante dos tempos que estamos vivendo. Queremos imaginar uma livraria do tipo que não existe mais, mas também não existe ainda.”
Também a uma distância a pé da Ponta de Lança e da Gato Sem Rabo fica o Yerba Café e Livraria, que nasceu de uma parceria que não vingou com a Casa Plana e segue de forma independente desde maio. Como o café já paga as contas, a livraria é um complemento e o que se ganha com ela é investido nela. Uma das sócias, Beatrice Morbin Klingelhoefer conta que esta “pequena livraria de esquerda e de literatura”, como ela define, está faturando muito mais do que imaginavam. “Hoje, comprar em uma livraria é um lance de impulso. Durante a semana, as pessoas vêm tomar um café e levam um livro. No fim de semana, isso inverte.”
Norte e sul
Em Santana, o movimento da Disal, ali desde agosto, também surpreendeu. Nem vitrine ela tem, mas presta um serviço importante num bairro carente de espaços assim. O Brooklin também não tinha uma livraria de rua até Victoria Mantoan, jornalista e moradora da região, inaugurar, dia 6, a Livraria do Brooklin. “Aqui é um lugar onde você vai encontrar livros que não está procurando, que não sabia que queria ler. Vai ter com quem conversar sobre eles, vai poder comprar, sentar, tomar um café, uma taça de vinho, uma cerveja”, explica.
Oeste
Saudosos dos bons tempos da Mercearia São Pedro têm um novo ponto de encontro perto do metrô Vila Madalena, na Ria Livraria, de Marcos Benuthe (ele tocou a Mercearia com o irmão até eles brigarem). Tem livro, cerveja, pastel, escritores... “Ia me aposentar, mas decidi fazer essa pequena livraria para manter a chama acesa. Só por insistência das pessoas que têm energia e não querem se dar por vencidas é que vamos existindo”, diz Marquinhos.
Na Pompeia, dois novos negócios miram as crianças – o leitor do presente, e do futuro. “Esses três meses superaram minhas expectativas mais otimistas”, diz Alfredo Caseiro, dono da Pé de Livro. Há uma relação afetiva sendo construída com os vizinhos e um de seus clientes pediu para fazer a festinha de aniversário lá. E assim será.
Aberta há um mês, e a 10 minutos da loja de Alfredo, a Miúda, de Julia Souto e Tereza Grimaldi, foi bem acolhida. Elas contam que escolheram uma casa com porta para a rua porque buscam quebrar, ou discutir, o paradigma de que as crianças são passivas diante dos movimentos da cidade. “Ter uma livraria de rua voltada à infância é uma narrativa política”, dizem. E para ficar no radar: logo a Cabeceira chega à Vila Romana.