Imagine escrever um livro sem a letra mais frequente do alfabeto – ou somente com uma única vogal? Imagine escrever um texto que pode ser lido de frente para trás e de trás para frente da mesma forma? Imagine conceber um romance com 99 capítulos, cada um com 42 restrições? Imagine sempre escrever cercado por regras matemáticas (e traumas), explorando os limites da linguagem, da literatura e da própria existência?
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Pois bem, estamos diante da obra inesgotável de Georges Perec. Um excêntrico escritor que morreu em 1982, mas nos deixou incalculáveis enigmas – talvez para serem descobertos, admirados, ou transcriados pelos seus tresloucados e translunáticos tradutores.
Nascido em 1936, o escritor judeu francês fez parte do OuLiPo. O Ouvroir de Littérature Potentielle, ou Oficina de Literatura Potencial, foi criado em 1960 como uma resposta-embate aos surrealistas, já que propunha um fazer literário a partir do uso de restrições (do francês, contraintes) matemáticas, e não mais pela espera de uma inspiração “divina” ou por meio de uma escrita automática.
Perec, um dos principais membros, concebeu trabalhos usando restrições estruturais – lipogramas, palíndromos, quadrados mágicos e dezenas de jogos. Ler Perec é se adentrar pelo inesperado universo de uma literatura que busca governar o mundo contingente e acalmar o coração dessa criança traumatizada pela perda prematura de seus pais.
A mãe do escritor morreu em Auschwitz e seu pai, no fronte de guerra quando ele tinha seis anos. O garoto viveu angustiado, buscando memórias do pouco convívio que teve com eles. Essas saudades, e também algumas restrições, aparecem em seus tocantes W ou a Memória da Infância e Ellis Island, recentemente publicado pelo Círculo de Poemas na tradução de Vinicius Carneiro e Mathilde Moaty.
A obra de Perec envolve aspectos matemáticos e traumáticos. Em Palindrome, um livreto com cinco mil palavras que foi parar no Guiness Book, Perec concebe uma literatura capaz de ser lida de frente para trás e de trás para frente. Talvez uma forma absurda de se confrontar com seus traumas de infância, de pensar como seria a vida se o passado e o presente pudessem retornar e tomar caminhos diferentes que não os do Holocausto e dos Pogroms.
Em A Vida Modo de Usar, o tal do livro que contém 99 capítulos e 42 restrições em cada um deles, um preâmbulo nos alerta que a literatura e a vida podem ser apenas um quebra-cabeças de um exímio (e maléfico?) Criador:
Trecho de 'A vida modo de usar', de Georges Perec
Perec nos questiona: seria possível imaginar todas as possibilidades de leitura e controlar a recepção da obra? Seria plausível entender o sofrimento humano? Seria imaginável que algo ou alguém manipulasse todos os eventos do mundo? A resposta, apresentada por ele em toda obra, é um categórico não.
E para demonstrar essa intraduzibilidade e a contingência da dor, em 1969, Perec publica o La Disparition (O Sumiço). Um livro com 300 e tantas páginas em que nunca aparece a letra “e” (lipograma), a mais frequente da língua francesa. Loucura? Insanidade? Projeto impossível?
Pais, letras e ausências
Ele dizia que, ao se ver privado pelos nazistas do convívio com as pessoas mais importantes do mundo - père (pai) e mère (mãe) -, teria também que ser capaz de escrever um livro sem a letra mais importante do alfabeto. Pais e letras sempre presentes, embora faltantes. Já em 1972, Perec retorna e retoma essas perdas, essas ausências presentes, ao escrever o Les Revenentes. O desparecido “e” se fez novamente presente e potente.
Nesses livros repletos de restrições, uma pergunta é imposta: como é possível algum tipo de tradução? Como traduzir texto, restrição, palavra e emoção? Como expressar nossas indescritíveis e interiores dores? Talvez seja isso que Perec tenha tentado mostrar explicitamente e estruturalmente. E talvez seja por isso a necessidade de um transcriador brilhante como o poeta e tradutor Zéfere (além dos outros perequianos obsessivos como Vinícius Carneiro) para encantar ainda mais a obra de Perec.
Em O sumiço (Autêntica, 2015), Zéfere retirou o “e” criando um transromance (que foi agraciado com o Jabuti e o Prêmio da BN). E, assim como Perec, Zéfere trouxe-o de volta de forma exaustiva em seu transinventado Qe Regressem, lançado recentemente e também pela Autêntica.
Qe Regressem
O sarcástico, divertido e pornográfico Qe regressem é mais uma mistura de Perec (e agora do translunático Zéfere). Gênio do hibridismo literário, do malabarismo com letras, números, listas, formas e restrições, inventor e usurpador da intertextualidade e do plágio-homenagem, Perec romanceia um texto policial com pitadas eróticas e enigmas ilógicos.
Livro para ser lido e relido em voz alta – e com um sorriso atento nos olhos. Porém, é através do monovocalismo que Perec revela o que está escondido: o seu lado criança. Desse garoto traumatizado e saudoso. Père e mère sempre presentes nele, Perec. (Aqui eu também fiz uma brincadeira perequiana).
Esses artifícios obsessivos matemáticos em Perec funcionaram como uma tentativa insistente de elaboração. Um experimento que o salvou por meio da escrita, mas o condenou a uma morte prematura aos 46 anos vítima de um sufocamento por um câncer pulmonar. Fica o convite para se divertir e se sufocar com os malabarismos restritivos de Perec.
*Jacques Fux é também um obsessivo perequiano. Além de ter feito doutorado e pós-doc sobre o autor, escrito dois livros teóricos, fez uso de restrições em seus livros ‘Antiterapias’ (Prêmio São Paulo) e ‘As Coisas de Que Não me Lembro, Sou’ (Prêmio FNLIJ e finalista do Jabuti).
Leia trecho de ‘Qe Regressem’:
“Qe nem reses em xeqe, sete Mercedes-Benz verdes, de qe pendem crepes beges qe empecem de ver qem vem neles, descem West End Street e vertem leste em Temple Street. Nem seqer céleres, vêm entre sebes e senes em qe, bem leve, se bem qe veemente, estende-se Exeter Temple,1 qe, de repente, em frente, enche de gente, gente qe qer ver qe qer qe se revele nesses Mercedes.
– Qem qe é?
– É preste, Preste-Mestre! Excellence!
– Cê é demente, é? Deve ser vedete! – frendem, sem dentes, três senescentes.
– Qer perder três pence? Qer ver qe é Mel Ferrer? – Crê esse zé qe deve ser expert em westerns.
– Nem vem qe nem tem! É Peter Sellers! – desmentem sete pedestres sedentes de TV.
– Mel Ferrer! Peter Sellers! Never! – fremes. – É Bérengère de Brémen-Brévent.
– Bérengère de Brémen-Brévent!! – exegese qe gentes repetem, se bem qe sem te crerem.
– É – recresces –, é Bérengère, Bérengère “The Qeen”, Bérengère “The Legs”, esse ser qe tem reverentes em Dresden e Leeds, qe fez qe lhe venerem de pé em Rex, Sélect e Pleyel! Bérengère, esse ente celeste, vedete entre vedetes, célebre em qermesses e refesteles! Nem seqer tem gente qe lhe desqer, nem prestes se retêm em frente de Bérengère; sempre qe se despe, três, sete, cem deles se perdem, lelés!
– E qe é qe esse xenhenhém tem qe ver em Sé? Nem prece lhe serve! – desmerece Bérengère esse beré-beré de qepe e veste e qe, de repente, repreendes:
– Qe mente reles qe cê tem! Se Bérengère vem em Exeter, é qe qem rege este Temple é descendente de sêmen e de ventre de qe descende Herbert Merelbeke, e, de Herbert, descende Thérèse Merelbeke, qe teve Bérengère de mestre, e Bérengère sempre prefere Thérèse entre qem lhe teve de mestre.
Sem entender bem, ele mexe e remexe nesse pencenê de hester dele.
– E qem é qem nesse trem de descendente e de mestre qe prefere qem nem seqer se vê qem é?!?
Esse desdém dele te fere, te fez ferver, e é premente ser zen, render-te, desprender-te dele e desses seres qe nem ele. Qeres ver Hélène. Em frente!
Pedestremente, segges e sentes qe tem gente qe nem serpente, sem qe pesqes bem qem e qe qer qe se segrede e enrede:
– …Sé de Exeter, efervescente, é revés…
– …É Bérengère qe tem reveses: deve.
– …Qer vender belenggendéns qe lhe pertencem.
– Rende bem se vender?
– …E tem qem recepte?
– Sé de Exeter tem gente qe se entremete!
– …eh-eh!…
Sentes qe vem frente qente, se bem qe vente. E verbetes se perdem…”
Qe Regressem
Autor: Georges Perec
Tradução: Zéfere
Editora: Autêntica (144 págs.; R$ 69,80 | E-book: R$ 48,90)