Esqueça as batalhas épicas, a disputa por territórios, a busca por artefatos mágicos perigosos e as jornadas míticas de grandes heróis. As características e tramas que geralmente associamos à literatura fantástica ficam em segundo plano em um novo gênero que vem crescendo no mercado editorial: a cozy fantasy.
O termo que, em português, significa algo como “fantasia aconchegante”, descreve histórias que se passam em um ambiente com elementos mágicos (seja um universo inventado ou o mundo real, sempre com magia), mas cujo foco está na vida e no dia a dia dos personagens.
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“Tem toda a ambientação mágica de um livro de fantasia épica, com fadas, bruxas, demônios, vampiros ou ogros, mas sem batalhas homéricas, sem a luta do bem contra o mal. São personagens comuns, vivendo aventuras pequenas em um mundo mágico”, explica Rafaella Machado, editora-executiva da Galera e Verus, selos do Grupo Editorial Record.
Ela cita alguns exemplos: “Bruxas que querem encontrar o amor. Fadas que abrem uma pequena livraria em uma cidadezinha. Goblins que se odeiam mas precisam trabalhar juntos em um feitiço. São leituras mais leves, livros menores, mas que não economizam na ambientação, na magia e na construção de universos”.
As histórias
No final de 2023, a Galera publicou A Sociedade Supersecreta de Bruxas Rebeldes, da autora britânica Sangu Mandanna. O livro segue uma bruxa que esconde seus poderes, mas é convidada a visitar o local onde Merlim perdeu as barbas e ensinar três jovens bruxas a dominar a própria magia. Lá, ela acaba encontrando uma nova família e um novo amor.
A obra é a primeira mencionada por Katarina Jukoski Oliveira, consultora de marketing de 25 anos, em um vídeo publicado por ela no YouTube para falar sobre livros de cozy fantasy. Natural de Cachoeira do Sul (RS), ela mantém um canal na plataforma em que compartilha suas leituras, resenhas e opiniões sobre o mercado editorial.
“Essa é uma história que tem tudo para deixar a gente com o coração preenchido”, diz Kata no vídeo. Ao Estadão, ela explica: “Pessoalmente, acredito que a cozy fantasy traz tudo que gosto de ler em uma história. Sei que posso encontrar elementos característicos da fantasia como seres, criaturas, magia e muitos outras características que me transmitem a sensação de paz e tranquilidade e que fazem com que eu me sinta ainda mais próxima das narrativas”.
Outra história que fez muito sucesso no exterior é Cafés & Lendas, de Travis Baldree, impulsionado também pelo BookTok (o nicho de livros do TikTok). “A protagonista do livro, Viv, é uma orc que deseja algo completamente inesperado para uma fantasia tradicional: se aposentar”, diz Marina Ginefra, editora assistente de aquisição da Intrínseca, que publicou o livro no Brasil em março.
“Depois de anos de grandes aventuras, ela conheceu uma bebida mágica e exótica chamada café. Assim, durante o livro ela tem a missão de administrar uma cafeteria e isso inclui descobrir a melhor forma de anunciar seus produtos, testar receitas e conhecer seus clientes. Só que os inimigos do passado de Viv vão fazer de tudo para impedir que ela e seus novos amigos tenham sucesso”, conta.
Marina explica que a Intrínseca resolveu investir no livro porque “ainda são poucas as cozy fantasies no Brasil e Cafés & Lendas é o maior nome desse subgênero dos últimos tempos”. Para ela, a obra é “divertida, diferente e extremamente cativante, além de abordar temas como inclusão e recomeços”.
Cozy fantasy: como surgiu e por que cresceu?
Marina explica que a cozy fantasy não é, necessariamente, uma novidade. Mas o interesse do público, sim - e vem crescendo nos últimos anos. Há quem diga que O Hobbit (HarperCollins) foi um dos precursores do subgênero, apesar de ter características das fantasias épicas.
Um dos primeiros livros a fazer grande sucesso com os elementos mais comuns da cozy fantasy foi A Casa do Mar Cerúleo, de T.J. Klune, publicado no Brasil em 2021 pela Morro Branco. Para Victor Gomes, diretor editorial da editora, The Goblin Emperor, de Katherine Addison (pseudônimo de Sarah Monette), foi “uma fantasia que quebrou os paradigmas da época e antecipou esse movimento ao apresentar um protagonista realmente bom e uma sensação otimista perpetuando a obra”. O livro será publicado no Brasil neste ano pela Morro Branco.
“A obra teve grande destaque dentro do gênero, acumulando diversas premiações e servindo de inspiração para diversos livros que vieram a seguir, mas se manteve relativamente isolada por diversos anos”, diz Victor. Para ele, a maior virada veio com a pandemia de covid-19.
“Se em não ficção tivemos um aumento exponencial de obras de autoajuda, negócios e teor espiritual, em ficção ficou claro que os leitores como um todo precisavam de um conforto, de algo que pudesse minimamente ajudar a curar as sequelas de tudo que se passou, e foi justamente nesse contexto que encontrei A Casa no Mar Cerúleo, um abraço em forma de livro”, explica. Na história, um homem é convocado para visitar um orfanato onde moram seis crianças “extraordinárias”.
Marina Ginefra, da Intrínseca, também cita a pandemia como um fator de contribuiu para o crescimento de histórias “mais leves”. Ela e Victor apontam que outros subgêneros também surgiram ou cresceram por conta desse movimento, como a Romantasy (saiba mais aqui) e a Healing Fiction (saiba mais aqui).
Katarina atesta esse sentimento por parte dos leitores, dizendo que os livros de cozy fantasy dão “a certeza de que sairemos da leitura com o sentimento de ‘coração quentinho’, felicidade ou até mesmo de nostalgia, que vêm conquistando cada vez mais espaço nos nossos corações depois de vivermos um período tão forte de perdas, solidão e distanciamento”.
Quem faz?
A primeira vez que a escritora Ana Cristina Ayer, de 52 anos, que já publicou 35 livros infantis sob o pseudônimo Índigo, ouviu o termo cozy fantasy foi durante uma reunião com Rafaella Machado, em 2022, para falar do livro Sete Bruxas e Um Gato Temporário, que sai pelo selo Galera Junior, da Record, em 8 de abril.
É o primeiro romance de Índigo direcionado para jovens e adolescentes (por isso, ela acrescentou o sobrenome Ayer ao pseudônimo) e tem todos os elementos do subgênero. Na trama, toda bruxa tem um gato, mas Bijoux (ou Élvio), é um “gato temporário”, que substitui os gatos oficiais quando é chamado. Quando ele visita a residência de Caliandra, uma bruxa de meia-idade, e um feitiço da errado, Bijoux percebe que queria ter uma companheira assim como os outros. Além de tudo, a história é uma fantasia urbana, ambientada entre Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
“[A Rafaella] falou: ‘nossa, isso é tudo que a gente está procurando’”, lembra Índigo. “Sempre fui muito apaixonada por temas mágicos e sempre gostei de investigar essas coisas. É o meu universo favorito, mas foi o primeiro momento em que eu realmente mergulhei nesse assunto”, conta. Apesar disso, ela conta que nunca foi cativada pelas batalhas e jornadas épicas da fantasia tradicional.
“Aquele tom grave e apocalíptico nunca me conquistou como leitura. Eu acho que [a cozy fantasy] combina os dois mundos: todo o encantamento do mundo mágico, mas sem entrar nesse outro registro”, opina. Ela também acredita que a perspectiva mais intimista dessas histórias é atrativa para o leitor, porque ele realmente entra no cotidiano dos personagens.
A fantasia épica vai acabar?
O crescimento da cozy fantasy não significa que as fantasias épicas vão acabar. Para as fontes consultadas pelo Estadão, as duas coisas podem coexistir e até se ajudar. “A fantasia se reinventou enquanto gênero nos últimos cinco a 10 anos, trazendo um novo público e leitores que antes estavam de fora e não se viam contemplados nessas histórias”, diz Rafaella Machado, da Record.
Ela aponta que, hoje, mais mulheres e pessoas da comunidade LGBT+ escrevem e leem fantasia, um gênero que antes era predominantemente masculino. Isso ajuda na diversidade e faz com que o mercado se abra para esses subgêneros.
Ela diz, ainda, que a cozy fantasy pode, inclusive, atrair novos leitores para as fantasias épicas. “É interessante constatar que a fantasia conforto atrai também leitores iniciantes no gênero fantástico, que sempre tiveram curiosidade de explorar universos mágicos, mas ainda não têm fôlego para uma série grande de fantasia épica. Como são histórias que focam muito na experiência humana e cotidiana, atraem o leitor de comédia romântica, de drama e de ficção contemporânea”, diz.
Victor Gomes, da Morro Branco, tem uma visão parecida: “Os diferentes subgêneros de fantasia podem ser complementares e ofertarem aos leitores nuances diferentes, dependendo do que eles estiverem buscando naquele momento. Conheço diversos leitores que leem mais de um livro por vez, então nada mais benéfico do que você poder alternar entre algo que vai lhe instigar e desafiar como Piranesi de Susanna Clarke, ou A Quinta Estação, de N.K. Jemisin, com as visões mais otimistas de T.J Klune, Becky Chambers e Katherine Addison”.
10 livros de cozy fantasy
- Café & Lendas, de Travis Baldree (Intrínseca, 337 págs.; R$ 49,92 | E-book: R$ 34,94)
- Um Feitiço de Amor, de Kate Robb (Verus, 308 págs.; R$ 39,90 | E-book: R$ 28,51)
- A Sociedade Supersecreta de Bruxas Rebeldes, de Sangu Mandanna (Galera Record, 308 págs.; R$ R$ 52,43 | E-book: R$ 36,70)
- Sete Bruxas e um Gato Temporário, de Índigo Ayer (Galera Junior, 304 págs.; R$ 49,90 | E-book: R$ 34,90)
- A Casa no Mar Cerúleo, de TJ Klune (Morro Branco, 384 págs.; R$ 67,92 | E-book: R$ 55,90)
- Salmo Para um Robô Peregrino, de Becky Chambers (Morro Branco, 176 págs.; R$ 50,92 | E-book: R$ 41,90)
- Beleza Monstruosa, de Adrielli Almeida (Autopublicado, 97 págs.; E-book: R$ 12,90)
- Enciclopédia das Fadas de Emily Wilde, de Heather Fawcett (Planeta Minotauro, 304 págs.; R$ 45,40 | E-book: R$ 43,13)
- Quando as Estrelas Caem, de Mariana Lucioli (Outro Planeta, 272 págs.; R$ 35,90 | E-book: R$ 34,10)
- Tress, a Garota do Mar Esmeralda, de Brandon Sanderson (Trama, 440 págs.; R$ 100,00 | E-book: R$ 84,90)